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Genômica

As descobertas se multiplicam

Recém-concluído, o mapeamento da Xanthomonas citri inaugura no país a genômica comparativa, a forma mais rápida de estudar os genes

Às vésperas do Natal, terminou o seqüenciamento do genoma da Xanthomonas citri, a bactéria causadora do cancro cítrico, um antigo e grave problema da citricultura mundial. Pelo prazo em que foi feito – apenas 14 meses -, esse trabalho evidencia o amadurecimento dos métodos de trabalho e da equipe – em boa parte, a mesma que havia participado, este ano, da montagem dos genomas de outra bactéria, a Xylella fastidiosa, que provoca a Clorose Variegada de Citrus (CVC) ou amarelinho, outra praga dos laranjais, e da cana-de-açúcar. O projeto da Xanthomonas também inaugura no país a genômica comparativa: começa-se a pôr lado a lado o material genético dos microrganismos, descobrir como os genes atuam e a encontrar meios para reduzir as perdas agrícolas.

Está bastante avançada, também, a classificação – ou, como se diz, a anotação – dos estimados 4.500 genes que compõem o único cromossomo da Xanthomonas, o segundo fitopatógeno mapeado no Brasil e um dos primeiros do mundo. Desses, 593 genes estão associados a processos metabólicos de produção de energia, 365 à síntese de aminoácidos e outras moléculas que auxiliam o funcionamento das enzimas, 486 à formação de macromoléculas (proteínas, carboidratos e lipídios), 310 a processos celulares (transporte de substâncias, divisão celular e mobilidade) e 292 se relacionam com a patogenicidade, virulência e adaptação da bactéria. No final de novembro, havia ainda 1.530 na categoria hipotéticos, de função incerta.

Essa etapa final pode terminar na mesma época da conclusão da montagem do esqueleto básico, com as grandes peças, do genoma de outra bactéria, que começou a ser mapeado em setembro: a Xanthomonas campestris, muito semelhante à que acaba de ser conhecida. Os pesquisadores acreditam que, talvez em março, já terão o genoma detalhado. O grupo amadureceu. “Desta vez ninguém se assustou, imaginando se ia ou não dar certo”, comenta João Meidanis, coordenador do Laboratório Central de Bioinformática, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que processa as informações dos laboratórios de seqüenciamento – e desde 1997acompanha os pioneiros da genômica no Brasil.

Além da confiança, também se ganhou tempo em algumas etapas. A Xylella foi mapeada inteiramente por meio de cosmídeos – seqüências de DNA que carregam e multiplicam partes do genoma que se quer estudar. Uma das pesquisadoras, Anete Pereira de Souza, da Unicamp, foi a Heidelberg, na Alemanha, para aprender a fazer a chamada biblioteca de cosmídeos, a matéria-prima do seqüenciamento do genoma, que representa o cromossomo todo.

Com a Xanthomonas foi diferente. Nos 11 laboratórios de seqüenciamento – espalhados na Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual Paulista (Unesp) e Unicamp, sob a coordenação de dois centrais, um na Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias (FCAV) na Unesp de Jaboticabal e outro no Instituto de Química da USP -, fez-se primeiro um scaffold – um mapa virtual ou esqueleto do genoma. O arcabouço foi montado com cerca de 2 mil cosmídeos, cada um com 35 mil a 50 mil pares de bases de nucleotídeos (adenina, citosina, guanina e timina).

Eram mapeadas as duas pontas de cada cosmídeo, de modo que depois pudessem ser encaixadas e dessem uma visão geral do genoma. Uma visão mais detalhada saía à medida que se aplicavam os shotguns – clones menores, de 1,5 mil a 3 mil pares de base, literalmente atirados sobre o genoma, que se sobrepõem inteiramente a ele, reproduzindo sua estrutura. Desde agosto do ano passado, quanto o trabalho começou, os pesquisadores produziram 205 mil shotguns , cujos processos de montagem eram conhecidos desde a Xylella.

A novidade é que desta vez os cosmídeos também foram feitos inteiramente no Brasil. Luiz Roberto Furlan, pesquisador do laboratório central de genoma da Unesp de Jaboticabal, não se esquecerá tão cedo do dia em que os coordenadores do projeto lhe entregaram a tarefa de construir a biblioteca de cosmídeos. Furlan, desde a época da faculdade mais conhecido por Cedral, por causa da cidade do interior paulista onde nascera, sabia a importância da missão, mas não tinha a menor idéia de como fazer. Viagens à Alemanha, nem pensar – tudo seria feito ali mesmo.

Resumindo: dois meses depois, Cedral havia recriado a metodologia e estava hábil em lidar com o vetor Lawrist, um pedaço de DNA circular que incorpora fragmentos do genoma. “Nem acreditei quando os primeiros cosmídeos deram certo”, diz ele. “Achei que tinha feito alguma coisa errada.”

Outra diferença é que o Laboratório de Bioinformática da Unicamp centralizou a análise do genoma, mas contou com o reforço de dois núcleos de bioinformática criados em Jaboticabal e na USP. Foi, enfim, mais fácil, embora a Xanthomonas tenha um genoma com 5,2 milhões de pares de bases, o dobro do da Xylella. A ele se dedicaram 51 pesquisadores, um grupo discreto se comparado com os 207 da Xylella e os 140 da cana-de-açúcar. Até agora, incluindo o seqüenciamento da campestris , investiram-se US$ 2,2 milhões, menos da metade do orçamento de US$ 5,4 milhões destinado pela FAPESP.

Apelidos
A tranqüilidade com que os pesquisadores trabalharam pode ser medida pelo apelido com que tratavam a Xanthomonas no dia-a-dia – era a Xanthô, simplesmente. Nos artigos científicos, era chamada de Xac, abreviação de Xanthomonas axonopodis pv citri (pv significa patovar, uma classificação baseada no tipo de planta atacada pela bactéria). A Xylella, até hoje, é apenas a Xylella, sem apelidos.

A equipe viveu momentos difíceis no final de maio deste ano, quando o esqueleto do genoma já estava pronto. Tinha 95 partes. O problema é que não se encaixavam direito. Nada desesperador para uma das coordenadoras do projeto, Ana Cláudia Rasera da Silva, do Instituto de Química da USP. Desde os 10 anos de idade ela passava dias inteiros sobre o tapete da sala de sua casa montando quebra-cabeças – de 2 ou 3 mil peças, como o de um castelo medieval cercado por florestas, que decora seu laboratório. Para ela, o genoma é “apenas um quebra-cabeça um pouco maior, com milhões de peças”. Ana Cláudia garante que, diante dos impasses, não perdeu a paciência nem o humor, em momento algum.

Na tela do computador, os trechos conhecidos estendiam-se em linhas retas e muitas vezes paralelas, por causa das partes comuns. Entre elas havia cerca de 30 áreas em branco, sem qualquer informação. A rigor, não deveriam existir: os milhares deshotguns atirados sobre o genoma pareciam suficientes para não deixar trecho nenhum descoberto.

Repetições preciosas
Passaram-se semanas até que Ana Cláudia e Meidanis conseguissem delinear o problema: as áreas em branco eram, na verdade, trechos repetidos – e o computador não sabia o que fazer com elas. Para entender o que eram essas repetições, Ana Cláudia, com a ajuda do pós-doutorando Marcelo Trindade e do professor Shaker Chuk Farah, ambos também do Instituto de Química da USP, partiram para o trabalho artesanal: eliminaram as partes repetidas – e as peças se encaixaram. Com o tempo, veriam que nelas estão as características mais gratificantes – e, se nos deixarmos levar pela narrativa dos pesquisadores, mais deslumbrantes – do genoma da Xanthomonas.

Metade das repetições eram transposons – os genes saltadores, que pulam de um ponto a outro do cromossomo ou mesmo de um cromossomo a outro. Parecem capazes de induzir os vizinhos a se expressar ou inativar outros genes. A equipe de Marie-Anne Van Sluys, do Instituto de Biociências da USP, já identificou 51 deles. Um é o Xatn1 (informalmente chamado dexatinho 1 ), que se repete 18 vezes no genoma; o xatinho 2 , apenas cinco. Segundo ela, há fortes indícios de que outro xatinho possa ter vindo de outra bactéria, a Pseudomonas, por meio de um mecanismo chamado transferência horizontal de genes, que ocorre entre espécies diferentes.

Custou-se a descobrir que a outra metade das repetições – também elucidadas por meio de cosmídeos – eram as estruturas secundárias do DNA. Formam alças, que funcionam como grampos e – o mais grave – impedem que uma enzima, a polimerase, deslize ao longo da molécula e a caracterize: é quando surgiam as áreas sem qualquer informação.

Em seis meses de trabalho, os pesquisadores conseguiram desfazer a maioria das alças. No final de novembro, faltavam apenas duas, que adiariam por algumas semanas a festa de conclusão do genoma. “Sabíamos desde o começo que seria difícil”, reconhece Jesus Aparecido Ferro, pesquisador da Unesp de Jaboticabal e um dos coordenadores do projeto.

Resolvidos quase todos os problemas, ospesquisadores querem agora entender os mecanismos de especificidade, que possam explicar, por exemplo, por que a Xanthomonas citri causa o cancro cítrico e a X. campestris, parecidíssima, ataca repolhos. Outra dúvida: Quão diferentes bactériasdo mesmo gênero podem ser? As primeiras comparações indicam que há uma alta semelhança dos genes, embora a organização deles seja bem diferente.

Dilemas evolutivos
Outra espécie próxima, a X. albilineans, que as equipes de Jaboticabal e de São Paulo pretendem seqüenciar no próximo ano, é lenta para se reproduzir, tal qual a Xylella, e só vive no xilema da cana-de-açúcar. Biologicamente, é mais parecida com a citri . Cogita-se que possa ser o elo perdido entre as duas espécies.

As comparações da Xylella com a Xanthomonas já começaram. As seqüências de aminoácidos – as moléculas que formam as proteínas – de ambas são bastante semelhantes. A primeira é, digamos, mais enxuta. Quase não tem transposons e alças, por exemplo. “A impressão é que a Xylella é uma Xanthomonas encolhida ou a Xanthomonas é uma Xylella ampliada”, brinca Ana Cláudia.

“De qualquer forma, ambos os organismos tiveram um ancestral em comum”, diz Sérgio Russo Matioli, especialista em evolução do Instituto de Biociências da USP. “Se tivermos evidências de que o genoma desse ancestral era do tamanho do de Xanthomonas, então houve uma diminuição em Xylella, caso contrário houve um aumento em Xanthomonas.” Porém, se a espécie original tivesse um genoma de tamanho intermediário, tanto poderia ter aumentado o genoma da linhagem que originou a Xanthomonas quanto diminuído o da linhagem que levou à Xylella.

Esse campo da evolução esbarra na dificuldade de encontrar registros fósseis de bactérias . Mesmo assim, o seqüenciamento de genomas completos tem ajudado bastante a compreender as novidades evolutivas. Tempos atrás, por exemplo, quando se concluiu o seqüenciamento da Escherichia coli, a bactéria usada como modelo de estudos genéticos e bioquímicos, descobriu-se algo espantoso: metade do genoma tinha função desconhecida.

Logo ganhou adesões a idéia de que essa parte do genoma poderia estar envolvida em atividades fora da placa de Petri, na qual os pesquisadores põem os microrganismos que desejam estudar. Por essa razão, Matioli lembra que, “se essa hipótese estiver correta”, apenas estudos que levem em consideração os ambientes naturais poderão esclarecer a função de todos os genes dos microrganismos.

Diferenças
Ana Cláudia confessa: “O genoma da Xanthomonas é mais sofisticado”. Um de seus argumentos é que a Xanthomonas tem uma densidade de bases guanina e citosina considerada alta (65%). Na Xylella é de 53%. Em conseqüência, o DNA da primeira é mais estável, mas também é mais difícil de ser interpretado pela enzima polimerase – por isso é que se custou a encontrar, entender e desfazer as alças. Mesmo assim, é um ponto polêmico. “Todo genoma tem seu charme”, lembra Meidanis. A seu ver, pesa muito, também, a familiaridade que se tinha com cada microrganismo. Da Xylella , lembra ele, “não se sabia quase nada”, ao passo que a Xanthomonas era razoavelmente conhecida, inclusive com alguns genes já descritos.

Vamos aos fatos. A Xylella se reproduz lentamente – de 20 a 30 dias. Depende de insetos, as cigarrinhas, para se deslocar, e sobrevive apenas no próprio inseto ou nos vasos condutores de seiva de plantas como as laranjeiras e videiras. É tentador, embora arriscado, dizer que a Xanthomonas vive em melhores condições: se reproduz mais rapidamente, a cada dois dias. E é uma bactéria de vida livre: espalha-se pelo ar, pela água e pelo solo.Nos próximos anos, é provável que as informações que brotam do genoma ajudem, principalmente, a encontrar os pontos fracos da Xanthomonas citri.

Aliás, já se começa a ver como a bactéria causa o cancro cítrico. São importantes, nesse processo, os genes avr (de avirulência, responsáveis pela patogenicidade). Há quatro cópias deles nos dois plasmídeos – DNA circulares, bem menores que o cromossomo. A célula vegetal só aciona os mecanismos de defesa se reconhecer as proteínas geradas pelo avr. Mas, ao que parece, a Xanthomonas consegue burlar os mecanismos de alerta, infiltrar-se e prosseguir a conquista da célula hospedeira.

Participam do processo de infecção cerca de 20 proteínas, o chamado sistema secretório tipo 3, inexistente na Xylella. “É possível que algumas proteínas cheguem ao núcleo e mudem a expressão gênica da planta”, diz Ronaldo Bento Quaggio, pesquisador de formação peculiar: é físico e trabalhou como cineasta (é formado também em Cinema) antes de entrar na pós-graduação e se tornar professor do Instituto de Química da USP. Ali também trabalha o pesquisador canadense Shaker Farah, que estima haver de 50 a 80 proteínas envolvidas na patogenicidade – o desenvolvimento do cancro cítrico.

As dúvidas somam-se a conquistas. Passado o susto inicial, Cedral avalia: “Houve um notável crescimento científico da equipe”. O laboratório da Unesp de Jaboticabal, por exemplo, prepara-se para produzir bibliotecas de DNA, agora de todos os tipos – shotguns, cosmídeos ou clones ainda maiores, empregados no estudo do genoma humano – para outras instituições.

Só se pôde pensar em prestação de serviços porque os métodos de trabalho mudaram bastante. Em Jaboticabal, a seleção das colônias com os clones – antes feita a mão, com palitos de dente – hoje é conduzida por um robô, dotado de um conjunto de agulhas que ele mesmo lava e esteriliza. O robô pode fazer de 80 a 100 placas de 96 poços (orifícios) em quatro horas. Manualmente, a mesma tarefa seria feita em um dia inteiro por oito a dez pessoas.

Perspectivas
Nos laboratórios dedicados ao genoma no Estado de São Paulo, ganha força a idéia de automatizar o seqüenciamento o máximo possível para a equipe se ater à análise dos resultados. Meta aparentemente viável: na Xylella o seqüenciamento ainda foi trabalhoso, com muitas etapas manuais, mas com as máquinas novas já é possível pôr o DNA para seqüenciar pela manhã e pegar o resultado no final da tarde. Pode estar aí – no trabalho de atribuir funções biológicas dos genes – o ponto forte da equipe brasileira. “Sabemos anotar”, assegura Cedral.  Algo semelhante ocorre, há anos, na Fórmula 1: intuitivos e audazes pilotos brasileiros ganhando corridas nos carros feitos em outros países.

Bactérias devastadoras

O currículo do gênero Xanthomonas não é nada modesto. Nem tanto pelo número de espécies, apenas 20, mas pelo alcance: atacam 392 plantas, com variedades específicas para feijão, arroz, mandioca, algodão, milho, cana, trigo e soja, por exemplo. “Há uma Xanthomonas para quase toda planta cultivada, sobretudo em climas quentes”, diz Rui Pereira Leite Jr., pesquisador do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar), que acompanha o trabalho do grupo paulista. Foi ele quem forneceu as amostras da X. citri para serem seqüenciadas. “Em climas frios, as Xanthomonas quase não aparecem.” Enquanto a Xylella é um problema restrito principalmente ao Brasil e à Argentina, as bactérias desse outro gênero destroem plantações na Ásia, na África e na América. No Brasil, é encontrada do Rio Grande do Sul ao Rio Grande do Norte.

O cancro cítrico é apenas uma das doenças causadas pelas Xanthomonas. Relatado pela primeira vez em 1889 no Japão, atualmente é endêmico em todo o Sudeste asiático. Chegou ao Brasil em 1957 e só avançou. “Se o cancro cítrico se instalar definitivamente no país, algumas variedades de citros não poderão mais ser cultivadas, como o limão-galego e siciliano, laranjas do tipo baía e hamlim e o pomelo ou grapefruit, que são mais suscetíveis à bactéria”, diz Leite Jr. Segundo ele, por causa dessa praga a Argentina já não cultiva essas variedades e no momento são os plantadores da Flórida, nos Estados Unidos, que perdem o sono de preocupação, diante da mesma possibilidade.

O cancro cítrico está associado à larva minadora dos citros (Phyllocnistis citrella), detectada no Brasil em 1996. A larva faz galerias nas folhas – por ali as Xanthomonas entram. Proliferando-se, originam lesões salientes nas folhas e nos frutos, que acabam por cair. Para evitar que a praga se espalhe, não há outro jeito: é preciso arrancar os pés contaminados. Em 1999, o Estado de São Paulo eliminou cerca de 1 milhão de pés. A conta a pagar também é alta: nos últimos dois anos, o controle e a erradicação custaram cerca de R$ 50 milhões. “O combate ao cancro cítrico melhorou bastante”, diz ele. “Se continuar assim, poderá manter a situação sob controle.”

O projeto
Genoma Xanthomonas
Modalidade
Projeto do Programa Genoma FAPESP
Coordenadores
Jesus Aparecido Ferro – Faculdadede Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp de Jaboticabal; Fernando de Castro Reinach e Ana Cláudia Rasera da Silva – Instituto de Química da USP
Investimento
US$ 2.210.328,17

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