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A TRAVESSIA

Evoluindo em tempos de crise

Apesar das sombras da ditadura militar e das crises que marcaram os anos 70, a FAPESP resistiu a pressões e continuou a crescer

Carvalho da Silva (à direira): figura central na vida da FAPESP e Crodowaldo Pavan (à esquerda): na luta por mais recursos

EDUARDO CESARCarvalho da Silva (à direita): figura central na vida da FAPESP e Crodowaldo Pavan (à esquerda): na luta por mais recursosEDUARDO CESAR

Uma época de trevas para a inteligência nacional, de evasão de cientistas e de dinheiro curto para tocar as atividades de pesquisa. Sinteticamente, esse foi o saldo amargo do período compreendido entre os anos 70 e início dos 80, na visão de seus “sobreviventes”, entre os quais cientistas, professores e funcionários de instituições acadêmicas. Mas foi também um período de intensa mobilização da comunidade acadêmica para defender a FAPESP, tanto no que diz respeito à sua autonomia, quanto aos recursos de que dispunha.

De um lado, as lutas se travavam no plano político. Freqüentemente, entre 1964 e 1973 – conta Shozo Motoyama no livro FAPESP – Uma História de Política Científica e Tecnológica – dirigentes da entidade iam aos quartéis para liberar pesquisadores presos.Mas o regime militar não invadiu diretamente o cotidiano da Fundação. Houve, é verdade, tentativas de intimidação e interferência (até para conseguir endereços de bolsistas “de esquerda”) – pressões a que a diretoria soube resistir. “Grupos que diziam ‘fulano vai entrar com pedido aqui, mas ele é de esquerda, então não pode ser apoiado”, relata William Saad Hossne, diretor científico duas vezes (1964/1967 e 1975/1979), além de membro do Conselho Superior (1983/1989). Em depoimento a outro livro (FAPESP – Fronteira da Prática Científica no Brasil: a Instituição e Memórias, a ser publicado pela Fundação), Hossne diz que foi preciso deixar claro, de maneira categórica, que a agência não era de direita nem de esquerda, era uma fundação que amparava a pesquisa.

De outro lado, era necessário reagir contra a limitação de recursos financeiros que punha em risco a pesquisa científica paulista (ainda mais porque a demanda crescia constantemente). Foi o que a comunidade acadêmica fez, também com sucesso. Na virada dos anos 70/80, seminários e debates saíam das salas de aula e pesquisa e ganhavam a opinião pública por meio da mídia. Em 1981, o geneticista Crodowaldo Pavan assumira como diretor-presidente da FAPESP (ele que fora membro do primeiro conselho superior da entidade). Com um mandato que duraria até 1984, Pavan (que também presidiu o CNPq e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência-SBPC) participou de todo esse esforço de convencimento de lideranças e autoridades.

A expansão provoca mudança: desde 1977, a FAPESP ocupa as instalações da Rua Pio XI, na Lapa

EDUARDO CESARA expansão provoca mudança: desde 1977, a FAPESP ocupa as instalações da Rua Pio XI, na LapaEDUARDO CESAR

O nó das dificuldades financeiras, desde o começo dos anos 70, estava no repasse das verbas (0,5% da arrecadação de impostos líquidos do Estado), feito com dois anos de atraso – o que era fatal num período de recrudescimento inflacionário.No ano de 1973 a inflação tinha caído a 15%; a partir de então, porém, voltou a subir, chegando a 110% em 1980 e a 211% em 1983. A defasagem daí decorrente, aliada ao fato de que, na maioria dos anos, o Tesouro excluía da base de cálculo a cota transferida aos municípios, resultou em um valor médio de 0,217%, em vez do mínimo de 0,5%. Para não atrasar o pagamento das bolsas e auxílios, a FAPESP utilizava as rendas de seu patrimônio, evitando comisso maiores prejuízos ao andamento dos trabalhos.

Nessa etapa de sua trajetória, sob a direção científica de Oscar Sala (1969/1975) e depois de William Saad Hossne, a Fundação observou umcrescimento considerável do número de solicitações de bolsas. Esse foi um dos reflexos das mudanças introduzidas pela reforma universitária de 1969, que passou a exigir títulos de mestre e doutor para os professores assistentes e adjuntos. Com isso, a pós-graduação galgou novos patamares, expandindo-se a taxas expressivas no país. Só para dar um exemplo, a FAPESP concedeu 646 bolsas de estudo em 1969; esse ritmo foi crescendo ano a ano, até chegar ao número de 1.016 bolsas em 1982.

Prédio da Faculdade de Medicina, primeira sede da Fundação

ACERVO FAPESPPrédio da Faculdade de Medicina, primeira sede da FundaçãoACERVO FAPESP

Paralelamente a isso, a Fundação procurava manter suas atividades, como os projetos de auxílios à pesquisa individual e os programas interdisciplinares. Impunha-se, porém, estabelecer rigorosas prioridades. Entre 1970 e 1988, segundo Alberto Carvalho da Silva, a FAPESP lançou sete projetos especiais atendendo a propostas de grupos de pesquisadores, em grande parte dos casos, filiados a diferentes instituições. Várias dessas propostas foram analisadas por especialistas do exterior. Em depoimento registrado no livro FAPESP – Fronteira da Prática Científica no Brasil: A Instituição e Memórias, a ser publicado pela Fundação, Oscar Sala diz que ela não se limitou a ser uma espécie de balcão de recepção de projetos.“Tomamos a iniciativa (…) em áreas que precisavam de maior desenvolvimento e maior atenção. Cito dois exemplos de projetos: o Radar Meteorológico e o BIOQ-FAPESP”.

Este último, implantado em 1971 e encerrado formalmente em 1980, pode ser considerado uma “pequena revolução”, porque induziu a formação de recursos humanos de altíssimo nível em bioquímica, permitiu um salto à frente no setor e gerou uma enorme força multiplicadora. A partir dele, pipocou a formação de grupos independentes dos originais, que montaram laboratórios de pesquisa e disseminaram as atividades por vários centros no interior do estado. Segundo avaliação de seus integrantes – bioquímicos da Universidade de São Paulo e da antiga Escola Paulista de Medicina – o BIOQ-FAPESP contribuiu para que a cidade de São Paulo se convertesse no maior centro do país para pesquisa e treinamento nesse setor.

Jornal da Tarde, 1981: a mobilização chega à mídia

ACERVO FAPESPJornal da Tarde, 1981: a mobilização chega à mídiaACERVO FAPESP

Quanto ao projeto Meteorologia com Radar (Radasp I e II), instalado em 1974, o objetivo foi modernizar uma área de interesse fundamental para a agricultura, especialmente num país das dimensões do Brasil, com um mosaico diversificado de climas. O radar foi instalado no Instituto de Pesquisas Meteorológicas da Fundação Educacional de Bauru e posteriormente incorporado à Universidade Estadual Paulista (Unesp).

O quadro financeiro adverso – quer dizer, o descompasso entre a demanda e a oferta de recursos – impôs dificuldades, mas não paralisou a FAPESP. Ao contrário, projetos de peso, em áreas como agricultura e nutrição, receberam suporte na década de 70. Além disso, houve investimentos em infra-estrutura e no setor de processamento de  dados. Mais ainda, a Fundação já não cabia nas instalações da Avenida Paulista – e com os frutos do rendimento de seu patrimônio, construiu a atual sede e mudou-se,em 1977,para a Rua Pio XI, na Lapa. Não pôde, porém, ampliar, como gostaria, a base de atuação e apoiar novas iniciativas. O quadro só viria a mudar decisivamente na década de 80.

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Saad Hossne: recebendo pedidos heterodoxos

MIGUEL BOYAYANSaad Hossne: recebendo pedidos heterodoxosMIGUEL BOYAYAN

Uma idéia revolucionária

“Na fase inicial, em que não se conhecia exatamente a FAPESP, houve fatos pitorescos como o de um pesquisador que me procurou pedindo uma entrevista e me disse que queria que o projeto dele fosse apoiado porque era um projeto revolucionário, de extrema importância em matéria de aeronáutica. E eu disse que apresentasse o projeto para ser estudado pelo setor competente. Ao que ele me respondeu que não apresentaria porque havia uma porção de espiões dentro da Aeronáutica, da Marinha, do Exército, dentro do mundo inteiro. Evidentemente isso me causou certa estranheza e prossegui a entrevista. Logo depois me foi dado perceber, talvez por ser médico, que havia um componente evidentemente psiquiátrico no comportamento dessa pessoa. E logo em seguida a família chegou, pediu desculpas e disse que ele tinha fugido de casa e que já tinha apresentado essa idéia revolucionária em vários locais”.

William Saad Hossne, diretor científico por dois períodos (1964/1967 e 1975/1979), em depoimento registrado no livro FAPESP – Fronteira da Prática Científica no Brasil: A Instituição e Memórias.

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