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Ciência Geral

A arte de transformar

Isaias Raw revolucionou o ensino da ciência e a produção de insumos para a saúde

Ainda  aluno di ginásio, Raw transformou a garagem de casa num centro de produção de kits distribuídos em escolas

MIGUEL BOYAYANAinda aluno do ginásio, Raw transformou a garagem de casa num centro de produção de kits distribuídos em escolasMIGUEL BOYAYAN

Isaias Raw diverte-se fazendo ciência. E vive arquitetando meios e modos de compartilhar esse prazer com as novas gerações. Ainda aluno do ginásio, na década de 1940, transformou a garagem de sua casa em um laboratório que viraria base de operação, no futuro, de um programa revolucionário de educação em ciência: os famosos kits de Química, Eletricidade e Biologia. Durante anos esses kits foram distribuídos em escolas e, posteriormente, passaram a integrar o portfólio de produtos da editora Abril. Estudante da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), aos 20 e poucos anos construiu um Museu de História Natural e fundou a revista Cultus para difundir informações sobre a biologia moderna entre professores. Aos 75 anos, tanto fez até que conseguiu inaugurar, em 2002, o Museu de Microbiologia, no Instituto Butantan, cuja missão é estimular a curiosidade científica entre alunos e professores do ensino fundamental e médio. Um dos departamentos mais concorridos do museu é o seu laboratório, equipado com microscópios individuais e modernas versões dos velhos kits de experimentos científicos que incluem, entre outros, a manipulação de organismos unicelulares.

Não foram as iniciativas na área de educação em ciência que deram fama a Isaias Raw. No início da década de 1960, ele já era um bioquímico reconhecido internacionalmente. “Entrei na faculdade interessado em fazer pesquisa, não em ser médico”, explica o cientista. Isolou uma das enzimas do ciclo de oxidação de ácidos graxos, obteve a cristalização da crotonase, enzima do ciclo de oxidação de ácidos graxos, demonstrou a existência de uma via alternativa de transporte de elétrons na membrana externa da mitocôndria e – contribuição maior – provou que subpartículas mitocondriais eram capazes de conservar energia química na molécula de ATP. Suas observações confrontaram o dogma de que a mitocôndria deveria estar intacta para haver fosforilação e incomodaram os papas da bioquímica. A descoberta da existência de uma via alternativa de elétrons na membrana externa da mitocôndria só foi reconhecida em 1967. Foi também pioneiro na investigação de enzimas do metabolismo do Trypanosoma cruzi.

Na época, ele também dava aulas na Faculdade de Medicina. “Isaias era desafiador”, lembra Ricardo Brentani, diretor presidente da FAPESP e diretor do Instituto Ludwig de Pesquisa contra o Câncer, ex-aluno e discípulo de Isaias Raw. Na terça-feira, quando chegavam as revistas internacionais, Isaias comparecia à biblioteca bem antes do início do expediente – um privilégio exclusivo dos professores – e lia tudo que havia de novidade para depois instigar seus alunos com informações que eles não tinham. No laboratório, estimulava-os a experimentar qualquer idéia, mesmo que a única conclusão fosse a de que só se aprende fazendo errado. “Isaias foi fundamental na nossa formação como cientistas e como gente”, reconhece Brentani.

O cientista-professor teve seu momento de empreendedor: criou na Fundação para o Desenvolvimento do Ensino de Ciências (Funbec), então sob sua direção, uma indústria de equipamentos médicos e científicos, de onde saíram os primeiros eletrocardiógrafos, monitores, cardioversores, pHmetros e fotocolorímetros produzidos no país.

O bioquímico levou o Instituto Butantan a produzir 200 milhões de doses de vacinas anualmente

MIGUEL BOYAYANO bioquímico levou o Instituto Butantan a produzir 200 milhões de doses de vacinas anualmenteMIGUEL BOYAYAN

A qualidade da pesquisa credenciou-o para o cargo de professor de Química Fisiológica da Faculdade de Medicina em 1964, logo depois de ter saído da prisão, acusado de subversivo. Isaias Raw, aliás, foi preso duas vezes. A segunda, em 1969, o levou ao exílio. Desembarcou na Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, que ele considerava sua segunda pátria, com planos de contribuir para o ensino da ciência – mas a experiência foi frustrante. “É muito difícil interferir na educação de um outro país se você é estrangeiro”, reconheceu. Um ano depois estava no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Longe de seu grupo de pesquisa, decidiu dedicar-se à velha paixão: a educação em ciência. O programa foi capa da prestigiada Chemical News e virou livro. “Quando o programa morreu, fui convidado para ir para a Escola Pública da Universidade Harvard, no Departamento de Nutrição”, lembra. No exílio escreveu o livro From molecule to medicine-anemia, em que defendeu a idéia – colocada em prática anos antes, na USP – de integração da ciência básica e clínicas num curso de medicina experimental.

Voltou ao Brasil, em 1980, e não aceitou ser reintegrado aos quadros da USP. Alegou que o Departamento de Bioquímica que, na prática, tinha ajudado a fundar não necessitava mais dele. Foi acolhido por amigos no Laboratório Lavoisier de Análises Clínicas até ser contratado pelo Instituto Butantan. Aí começou outra empreitada: a de modernizar o instituto e transformá-lo num órgão de Estado com a missão de produzir insumos para a promoção da saúde.

Sob a liderança de Isaias Raw, o instituto ampliou seus quadros, investiu no desenvolvimento de pesquisa e nas plantas de novos produtos. Hoje o Butantan produz 200 milhões de doses de vacina por ano, entre elas a tríplice (coqueluche, difteria e tétano), a dupla (difteria e tétano), as vacinas contra hepatite B, contra a tuberculose e gripe, além de um surfactante para proteger crianças prematuras. Isso sem falar no projeto de construção de uma fábrica de hemoderivados, proteínas obtidas a partir do plasma, utilizadas no tratamento de doenças como a hemofilia A e B e como matéria-prima na produção de vacinas.

Walter Colli, professor titular do Instituto de Química da USP, assessor da diretoria científica da FAPESP, ex-aluno e companheiro de Isaias Raw, testemunhou o seu esforço transformador. “Em tudo o que tocou Isaias foi revolucionário”, ele afirmou no discurso em homenagem aos seus 75 anos. “Fez a subversão da inteligência contra a mediocridade; da provocação intelectual contra a acomodação; da verdade no discurso contra a impostura da retórica vazia; da modernidade progressista contra a tradição reacionária.”

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