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Análises Clínicas

Diagnóstico antecipado

Novos testes ajudam na prevenção e tratamento de doenças hereditárias e no controle de infecções oportunistas

MIGUEL BOYAYANDezenas de testes genéticos são feitos semanalmente na USPMIGUEL BOYAYAN

Descobrir com antecedência a possibilidade de um problema genético ou a incidência de um vírus oportunista pode ser a chave para tratamentos adequados, prevenção de doenças futuras ou de rejeição de órgãos em pacientes transplantados. A metodologia para isso, como a medição de cargas virais e testes genéticos, até há pouco tempo restrita à pesquisa laboratorial, começa a chegar à população por meio da transferência para laboratórios especializados em exames clínicos da tecnologia desenvolvida em dois dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP.

O primeiro dos Cepids a transferir esse tipo de tecnologia é o Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer, vinculado ao Hospital do Câncer AC Camargo e ao Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer, que firmou parceria com a Diagnósticos da América (Dasa), empresa responsável pelos laboratórios Delboni Auriemo, Lavoisier e Elkis e Furlanetto, em São Paulo, Lâmina e Bronstein, no Rio de Janeiro, além do Laboratório da Santa Casa de Curitiba.

Carga viral
Com base no acordo, a Dasa já disponibiliza ao público dois tipos de exame, um para medição da carga viral de dois tipos de vírus – o citomegalovírus (CMV) e o Epstein-Barr vírus (EBV), que podem provocar infecções em vários órgãos de pessoas imunodeprimidas – e outro para testes genéticos. Os testes para medição de carga viral visam diminuir a rejeição e as complicações em pacientes transplantados. Já os genéticos destinam-se a identificar indivíduos com probabilidade de desenvolvimento de tumores de origem hereditária.

O teste de carga viral, desenvolvido pelo grupo do Hospital do Câncer/Instituto Ludwig, é diferente dos exames usuais, que apenas constatam a presença dos vírus. Com essa nova metodologia é possível não apenas saber se há ou não partículas virais, mas também conhecer a quantidade dessas partículas presentes. Esse diferencial pode ser mais bem entendido tomando como exemplo o EBV, presente em 80% da população, mas geralmente sem atividade no organismo.

No entanto, quando o indivíduo portador do EBV torna-se imunodeprimido, em decorrência de enfermidades como câncer ou Aids, por exemplo, ou porque passou por um transplante que o obrigue a um tratamento com drogas para diminuir os níveis de rejeição do órgão transplantado, esse vírus pode se multiplicar no organismo, causando infecções que podem ser fatais se não detectadas no início.

De acordo com André Luiz Vettore, coordenador do laboratório de genética do câncer do Instituto Ludwig, a eficiência desse exame está em medir a carga viral, revelando se ela está aumentando ou não. “Se um paciente com determinada carga viral sofre um transplante e esta carga continua a mesma, monitorada em curtos intervalos de tempo, não há perigo. Mas, se existir um aumento, o paciente precisará ser tratado com drogas antivirais o quanto antes, aumentando suas chances de recuperação”, diz. O teste que está sendo oferecido pela Dasa pode medir e monitorar a carga viral por dias, semanas ou meses, conforme a necessidade.

Vettore conta que a idéia de desenvolver exames de carga viral do EBV e do CMV surgiu da colaboração com pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo. Ambos os testes utilizam a técnica de avaliação em tempo real da reação em cadeia da polimerase, conhecida como Real Time-PCR, do inglês Real Time Polymerase Chain Reaction.

As amostras de DNA são obtidas a partir dos linfócitos do sangue, coletado dentro do processo comumente utilizado para a simples detecção de carga viral. A novidade está na adaptação da técnica para medir e acompanhar a presença do EBV e do CMV. “Trata-se de um exame que não estava disponível no Brasil, cuja importância é a de poder monitorar o paciente, impedindo o desenvolvimento de infecções que podem matá-lo”, afirma Vettore.

Para ele, a importância dos testes é ressaltada pelo fato de que, devido ao custo, os medicamentos antivirais são ministrados, muitas vezes, somente depois de constatada sua absoluta necessidade. “A vantagem do teste e do monitoramento está em o médico saber com maior antecedência qual é a necessidade do paciente, aumentando a rapidez do diagnóstico e a precisão do acompanhamento, mesmo com uma carga viral mais baixa.” Ele ressalta que, no caso do CMV, foram feitos estudos em pacientes transplantados de medula e de rim, enquanto o EBV teve seu comportamento monitorado em pacientes com doença linfoproliferativa pós-transplante.

O desenvolvimento dos testes e sua avaliação em mais de 400 pacientes duraram cerca de um ano. A pesquisa sobre o EBV foi parte de um artigo baseado na tese de doutorado do pesquisador Otávio Baiocchi, da Unifesp, publicado na revista norte-americana Haematologica. Outros dois trabalhos, desta vez sobre o CMV, também deverão ser publicados.

Mapas genéticos
Outra tecnologia desenvolvida no Hospital do Câncer e que também passa por um processo de transferência é a de testes genéticos, utilizados para diagnósticos de pessoas que nascem com algum tipo de síndrome hereditária, ou seja, com alterações em alguns genes, o que aumenta a possibilidade de desenvolver um ou mais tumores ao longo da vida. Ainda que apenas 5% a 10% dos casos de câncer sejam hereditários, a importância dos testes genéticos está em poder detectar a alteração no paciente e acompanhar outras pessoas da mesma família antes de surgir a doença.

Em alguns casos já é possível saber quais genes estão relacionados a determinadas síndromes, como nos tumores hereditários de mama, cujos genes associados são o BRCA1 e o BRCA2. O teste genético consiste em fragmentar o gene do paciente em pedaços pequenos e avaliá-los em um equipamento de cromatografia líquida de alta performance, que revela quais fragmentos podem conter alteração.

Os pedaços “suspeitos” são encaminhados para outro aparelho, o seqüenciador de DNA, onde suas seqüências são decifradas e comparadas com uma normal para verificar se realmente existe alteração. Selecionando previamente os pedaços que podem apresentar alteração, diminui-se o custo do exame, pois, em média, apenas 10% do gene precisa ser seqüenciado.

Mesmo assim, a presença de alterações genéticas na família não significa que todos os indivíduos venham a desenvolver o mesmo tipo de mal, já que o câncer é muito ligado ao envelhecimento natural do organismo. “Por isso é preciso atentar para a idade em que os tumores aparecem”, observa Vettore. Ele avalia que o diagnóstico precoce facilita o tratamento da doença. Atualmente esses testes são feitos apenas fora do país, por laboratórios que recebem o material coletado aqui.

Estimativas do pesquisador apontam para um custo de até R$ 10 mil nesse procedimento, podendo cair para um terço desse valor quando disponibilizado comercialmente. “Hoje esses exames são caros e não são cobertos pelos planos de saúde, mas isso vai valer a pena com o tempo, pois os custos para um diagnóstico precoce são menores do que as despesas com o tratamento das doenças.”

Esse raciocínio é partilhado com Nelson Gaburo Júnior, coordenador do laboratório de diagnósticos moleculares da Dasa. Para ele, a metodologia obtida com as pesquisas centralizadas no Hospital do Câncer deve alcançar grande aplicabilidade, pois poderá, além de beneficiar pacientes, aumentar o nível de conhecimento sobre doenças e possíveis tratamentos. “Para a prestação do serviço, a Dasa pretende envolver tantos técnicos quantos forem necessários. Os testes já estão sendo oferecidos e nossa expectativa é de que o número de pedidos cresça rapidamente.”

Custos menores
Diminuir os custos dos testes genéticos e torná-los acessíveis à população também é a expectativa dos pesquisadores de outro Cepid, o Centro de Estudos do Genoma Humano da USP (CEGH-USP). Para tanto, o centro busca firmar um convênio com o Ministério da Saúde, para que os pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS) possam realizar testes genéticos em doenças neuromusculares e outras doenças genéticas sem custos adicionais.

Enquanto não se estabelece um convênio nacional, o CEGH já realiza testes gratuitos, graças a um acordo firmado com a Secretaria da Saúde de São Paulo em parceria com a Associação Brasileira de Distrofia Muscular (Abdim). Além disso, já se articula parceria com o Laboratório Fleury, também de São Paulo, que passará a oferecer os testes aos seus conveniados. Com isso, busca-se obter recursos financeiros que ajudem na manutenção do centro, onde são realizados estudos moleculares há 15 anos, com apoio da FAPESP.

Semanalmente, entre 50 e 100 consultas são realizadas pelo CEGH, além de dezenas de testes genéticos, número que, a partir de agora, tende a aumentar, de acordo com Mayana Zatz, coordenadora do centro. “O convênio com o Fleury prevê que o laboratório colete as amostras e as encaminhe ao centro, onde serão feitos os testes. A transferência de tecnologia se dará por meio de cursos, mas os resultados dos testes, em um primeiro momento, continuarão sendo feitos aqui no centro de genoma”, conta a pesquisadora, para quem o maior benefício dessa metodologia será a redução dos custos dos exames, que podem cair mais de 50%.

Referência internacional
Atualmente estão em atividade no CEGH dez grupos de pesquisa, dos quais resultaram exames específicos para mais de 30 doenças. Entre eles está o de doenças neuromusculares, que se tornou referência na América Latina. O grupo desenvolveu testes genéticos aplicados a dezenas de doenças neuromusculares. Uma delas é a distrofia muscular Duchenne, doença provocada por um gene que causa fraqueza muscular progressiva e se manifesta nos primeiros anos de vida, levando à impossibilidade de locomoção.

Localizado no cromossomo X, o gene que provoca a doença só é encontrado em mulheres, podendo ou não ser repassado aos filhos. Ao detectar uma alteração genética em um menino, o exame revela se a mãe da criança é portadora do gene (o que ocorre em dois terços dos casos) e se existe risco de transmissão hereditária para outros filhos.O teste utiliza um equipamento de PCR para analisar o DNA e localizar o ponto exato onde acontece a mutação que causa a doença. Na maioria dos casos trata-se de uma deleção, ou seja, a falta de um pedaço no gene, defeito molecular mais comum neste caso de distrofia muscular.

Além da distrofia de Duchenne, o grupo também pesquisa dezenas de outras formas de distrofias musculares (são mais de 30) e outras doenças neuromusculares, como a neuropatia de Charcot-Marie, que provoca atrofia dos membros inferiores. Diferentemente da distrofia de Duchenne, a causa mais freqüente da doença de Charcot-Marie, que geralmente acomete adultos, é uma duplicação de um gene, ou seja, há excesso de material genético.

Isso acontece porque, em vez de ter duas cópias do gene (uma herdada da mãe e outra do pai), a pessoa afetada fica com três cópias. Essa cópia a mais altera a bainha de mielina (que envolve os nervos), causando uma atrofia secundária do músculo. Outra doença neuromuscular pesquisada é a atrofia espinhal progressiva, que nas formas mais graves provoca dificuldade para manter a cabeça ereta, para sugar, deglutir e até respirar, devido à fraqueza da musculatura respiratória.

Todos os exames disponíveis no Centro de Estudos do Genoma Humano foram desenvolvidos a partir de projetos de pesquisa, o que funciona como uma espécie de controle de qualidade. Cerca de 80% a 90% dos casos de doenças neuromusculares podem ser diagnosticados com exames moleculares, o que é extremamente importante para o tratamento precoce e a prevenção de novos casos a partir do aconselhamento genético. Além disso, o diagnóstico molecular evita a realização de procedimentos invasivos e pouco informativos.

A perspectiva da coordenadora agora é de que os testes sejam oferecidos à população sem custos adicionais. “A viabilização da contratação de técnicos pela universidade veio em decorrência do apoio da FAPESP aos projetos. Já conseguimos descobrir quais são as mutações mais freqüentes na população e desenvolver exames para detectá-las, mas, para que estes benefícios cheguem a todos, ainda é preciso que o SUS decida oferecê-lo em seu programa de atendimento público.”

O projeto
1.
Centro de Estudos do Genoma Humano; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids); Coordenadora Mayana Zatz – USP; Investimento R$ 1.000.000,00 por ano
2. Centro Antonio Prudente para Pesquisa e Tratamento do Câncer; Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids); Coordenador; Ricardo Brentani – Hospital do Câncer/Instituto Ludwig; Investimento R$ 1.100.000,00 por ano

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