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Ciência aplicada à água

O homem das águas subterrâneas

Aldo Rebouças garante que há solução para a seca do Nordeste

CW_Reboucas1MIGUEL BOYAYANEm 1962, um quarto de século antes de a Organização das Nações Unidas publicar o relatório Bruntland – o primeiro documento a sugerir a inclusão do tema sustentabilidade na agenda de desenvolvimento dos países –, Aldo da Cunha Rebouças, um jovem geólogo formado pela Universidade Federal de Pernambuco, já alertava os órgãos públicos para o fato de que a má gestão e o uso inadequado da água comprometeriam a qualidade da oferta do produto. Ao longo de mais de 40 anos de pesquisa, ele defendeu obsessivamente a premissa de que “o conceito de água abundante, inesgotável e gratuita, uma dádiva de Deus ou de qualquer outra figura cósmica, da Igreja ou de políticos, dos coronéis ou do homem, da natureza”, era uma ficção obsoleta.

Brandiu esse alerta diante de vários governos. No final dos anos 1960 e início de 1970, foi diretor da Bacia Escola de Hidrogeologia da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene). “Constatei que o problema do Nordeste não é de seca, mas de cerca”, lembra. A região tem uma importante fonte de recursos hídricos: a água subterrânea. Boa parte dessa água está protegida da evaporação e poderia abastecer o dobro da população do Polígono das Secas, que compreende nove estados do Nordeste e o norte de Minas Gerais. “A água subterrânea está presente nos terrenos sedimentares e não precisa de nenhum tratamento especial, exceto a cloração”, explicou em entrevista à Radiobras, em 1999. Esse potencial, no entanto, é subaproveitado, apesar de as tecnologias de retirada dessa água serem relativamente simples e de baixo custo: basta uma bomba manual ou cataventos movidos a energia eólica que custam entre R$ 200 e R$ 400. Um inventário recente dos poços já perfurados revelou, no entanto, que cerca de 30 mil deles não estavam equipados para a extração de água.

Uma das soluções para o Nordeste, na sua avaliação, estaria na construção de poços artesianos inclinados, já que a região está localizada sobre uma fratura de rochas antigas, pré-cambrianas, de muito movimento. A outra, e a regra vale para todo o país, está na educação. “O cidadão brasileiro precisa ser informado ao máximo para utilizar de forma cada vez mais eficiente cada gota d’água disponível, reduzindo-se os desperdícios nas grandes cidades onde ainda se utilizam bacias sanitárias que necessitam de descargas que consomem de 18 a 20 litros, quando se tem modelos no comércio que necessitam de apenas 6 litros”, afirmou em entrevista ao Diário de Petrópolis, em 2003.

Hoje Rebouças assiste perplexo ao debate sobre a transposição do rio São Francisco. “Um absurdo”, como ele qualifica o projeto, movido por interesses políticos e pela velha rixa entre engenheiros – “que só se preocupam com a água que está acima do solo” – e geólogos – “que só se preocupam com a água subterrânea”. Sugere reiteradamente que é preciso investir mais no homem e menos em obras: “Não adianta construir barragens se os homens não sabem usá-las”, argumenta. Cita o exemplo de regiões em Israel e nos Estados Unidos, com o mesmo clima, e que são bastante prósperas. Para ele, a seca do Nordeste deveria ser encarada como uma oportunidade. “Tudo que se planta no semi-árido dá, ele não é um solo pior para o cultivo que os outros.”

Rebouças tem fundamentado suas teses sobre hidrologia na história da humanidade. Em 2003 recorreu a esses dois argumentos para criticar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva que elegeu o programa Fome Zero como política prioritária de governo, em detrimento de ações de democratização do saneamento e acesso à água potável. “Há 25 mil anos a.C., pelo menos, já se sabia que o uso cada vez mais eficiente da gota d’água disponível era a alternativa mais barata de combate à fome. Parece, todavia, que esta lição não foi aprendida até agora, à medida que ainda se procura combater a fome com a distribuição de alimentos, como fez a Coroa portuguesa nas suas tentativas iniciais de colonização do Brasil”, escreveu na época. No mesmo texto invocava o Código Hamurabi, editado na Babilônia entre 1850 e 1750 a.C., como o primeiro documento a “definir o direito de uso da água por todo e qualquer indivíduo, prescrevendo estímulos às práticas consideradas adequadas e castigos severos aos que infringissem essas condições”.

"Aqui no Brasil não falta água. Falta boa água", diz Aldo Rebouças

Eduardo Cesar“Aqui no Brasil não falta água. Falta boa água”, diz Aldo RebouçasEduardo Cesar

Hoje, aos 70 anos, involuntariamente aposentado por doença, acha que o Brasil – contemplado pela natureza com a maior descarga média de água doce de todo o mundo: 34 mil metros cúbicos per capita/ ano – não aprendeu a lição. “Aqui não falta água, falta água boa. Todas as águas estão contaminadas pelo esgotamento sanitário”, lamenta. “Assim, fica difícil explicar ao mundo de água escassa que até nas cidades mais importantes da região amazônica, tais como Manaus e Belém, quase metade das populações que aí vivem esteja sujeita aos mesmos problemas de saneamento básico que ocorrem nas regiões metropolitanas de Fortaleza, Recife ou São Paulo, por exemplo.”

Vai ainda mais longe em suas críticas: “Estamos perdendo tempo e enrolando o mundo, querendo que todos coloquem dinheiro aqui, quando tem um serviço público três vezes mais caro do que lá fora, já que a corrupção domina”. E vaticina: “O país vai precisar sofrer o que estão sofrendo os países carentes de água para aprender”.

A água foi objeto de suas teses de mestrado e doutorado, na Universidade de Strasbourg, na França; e de pós-doutorado, na Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Nas suas andanças pelo mundo, assistiu ao primeiro seminário patrocinado pela Unesco, em 1965, em Washington, que resultou num programa mundial de estudos sobre as águas subterrâneas. “Foi feito um balanço hidrológico e constatou-se que 30% da água do planeta era subterrânea. O homem já tinha pisado na Lua e ainda não sabia o que havia sob os seus pés…”

No início dos anos 1970, a nova descoberta fez a geologia “explodir” como a ciência do futuro, tendo como meca a França. Rebouças estava lá, desenvolvendo a tese de doutorado sobre a bacia Potiguar. “Mostrei que o projeto de desenvolvimento patrocinado pelo Banco Mundial estava instalado na região mais cara da bacia, sem nenhuma importância do ponto de vista hidrológico. A região correta, e mais barata, era a da Serra do Mel e de Serra Azul, onde estavam os minifúndios”, lembra.

Em meados de 1970 o Nordeste “não lhe coube mais”. Já casado com dona Suzana e com três filhos, Rebouças transferiu-se para a Universidade de São Paulo (USP), onde realizou o que considera a sua maior contribuição para a hidrologia brasileira: descreveu o aqüífero Guarani, um manancial de água doce subterrânea de proporções gigantescas, localizado na região centro-leste da América do Sul, que se estende pelo Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina. “Descobri que o cristalino tem muita água”, resume, modesto. Até então a ciência descrevia apenas uma parte dessa imensa formação, o aqüífero Botucatu. A descoberta de Rebouças foi batizada pelo geólogo uruguaio, Danilo Anton, em memória dos povos indígenas da região.

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