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Michael Lynch

Michael Lynch

Geneticista norte-americano mostra a importância do acaso no processo evolutivo

"Organismos mais complexos nem sempre têm genomas maiores", disse Lynch

“Organismos mais complexos nem sempre têm genomas maiores”, disse Lynch

Quando se fala em evolução, aquela que Charles Darwin trouxe a público por volta de 150 anos atrás, o mecanismo que salta à mente é a seleção natural: a sobrevivência dos mais fortes diante de recursos limitados. Não é à toa. O nome completo do livro que fundou a disciplina em 1859 é Sobre a origem das espécies por meio da seleção natural ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida. Entrou para a história como A origem das espécies. Mas o principal da evolução não está aí, disse Michael Lynch, da Universidade de Indiana, Estados Unidos, na palestra “Genômica e evolução” – a última da programação cultural da exposição Revolução genômica. Adiada por dificuldades na obtenção do visto para a entrada de Lynch no Brasil, a apresentação ocorreu em 4 de agosto, com a exposição do Ibirapuera já encerrada, no Centro de Estudos do Genoma Humano, na Universidade de São Paulo.

A palestra foi também mais técnica do que boa parte das apresentações da agenda cultural que se desenrolou ao longo dos últimos meses, um prato cheio para os biólogos que lotaram o auditório. Em seus estudos, Michael Lynch integra evolução, ecologia, genômica, biologia celular e parasitologia para entender os mecanismos da evolução e como surgiu a complexidade dos genomas que os projetos de seqüenciamento hoje revelam.

Para o evolucionista norte-americano a seleção natural é uma das quatro forças da evolução, e não necessariamente a mais importante delas. Outra é a mutação, que acontece ao acaso e é a fonte da variação genética sobre a qual a seleção natural age. A recombinação, que a cada geração mistura os dois genomas que se encontram na fecundação, também é aleatória. E a deriva genética é uma espécie de sorteio: formas mais raras de um gene têm menos chances de passar para a geração seguinte, mas, se derem sorte, podem se perpetuar e até se tornarem comuns.

Evolução ao acaso não rende boas histórias, e são boas histórias que até mesmo os biólogos buscam quando tentam explicar como a evolução torna determinada espécie mais adaptada ao ambiente em que vive. Mas a evolução, para o norte-americano, tem que ser tratada como ciência, não como ficção. Para isso tem de respeitar o procedimento de se testar cenários hipotéticos que, se não puderem ser refutados, tornam-se aceitos como a melhor explicação disponível. “Para que possamos entender de fato o que acontece na presença da seleção natural, temos de entender como se dão os processos quando ela não está presente”, disse Lynch, que prometeu mostrar “uma forma de explicar a evolução da arquitetura genômica e da estrutura dos genes que não invoca nenhum dos processos da seleção natural”.

Há 55 anos, disse o palestrante, pouco se sabia sobre o DNA. Hoje o quadro é muito diferente. “Temos o seqüenciamento de aproximadamente 500 ou 600 genomas, a maioria deles microorganismos”, afirmou, ressaltando que isso não significa que se compreenda como a evolução deu origem à diversidade que povoa o mundo hoje. “O campo da genômica comparativa é muito importante atualmente, mas biologia comparativa e biologia evolutiva não são a mesma coisa. Eu e outros pesquisadores estamos interessados em transformar a genômica comparativa em um campo mais explanatório da genômica evolutiva.”

Com alguns exemplos, Lynch mostrou que basta analisar os genomas de uma diversidade de organismos – desde bactérias até pessoas – para ver que quase não há relação entre a complexidade dos genomas e a dos organismos: o material genético dos paramécios, seres de uma única célula, é composto por 45 mil genes com instruções para produzir proteínas. Praticamente o dobro do número de genes dos seres humanos, embora um paramécio seja infinitamente mais simples do que uma pessoa com bilhões de células de especialidades diversas. Mesmo entre seres multicelulares, não parece haver uma correspondência entre a complexidade do organismo e o  número de genes. “Nós, humanos, temos entre 20 mil e 25 mil genes, dependendo de como são contados. O baiacu tem cerca de 50 mil. Muitos diriam que seres humanos são mais complexos que baiacus, mas não sei o que o baiacu pensa disso.”

DNA com enfeites

Organismos mais complexos não têm necessariamente genomas maiores, mas tendem a tê-los mais ineficazes, cheios do que Lynch chama de enfeites: fragmentos de DNA que não são traduzidos em proteínas e não têm função aparente. Genomas menores, como de vírus ou bactérias, são quase inteiramente (cerca de 95%) funcionais. Em animais e plantas terrestres, por exemplo, 1% do material genético se traduz em proteínas.

Lynch tenta descobrir o que há de especial nos diferentes organismos para dar origem a genomas tão diversos. Um aspecto importante é que quanto menor um ser vivo, mais abundante ele é. Populações de bactérias são várias ordens de grandeza maiores do que as de elefantes ou de baleias. Isso faz com que, em média, a biomassa de organismos diferentes seja parecida: todas as bactérias de uma dada espécie, por exemplo, têm juntas a mesma massa de todos os elefantes-africanos somados. Essas diferenças populacionais acabam por ter imensa importância em como a evolução age. Em populações mais densas, a competição acirrada é palco de intensa seleção natural. Populações pequenas, ao contrário, estão mais sujeitas à deriva genética: se uma bactéria em milhões sofrer uma mutação, um sorteio aleatório tem poucas chances de transmitir o gene alterado para a próxima geração. Já para um grupo de poucas dezenas de elefantes as probabilidades são bem diferentes.

O tamanho do genoma também tem uma relação direta com as forças não adaptativas da evolução. Quanto maior o material genético, menor a taxa de recombinação. Essa relação se explica pelos cromossomos, os pacotes em que o DNA se organiza – células humanas têm 23 pares deles. De maneira geral, genomas maiores têm cromossomos maiores, e não um número maior deles. Como cada par de cromossomos só troca material genético em um ponto a cada divisão – um evento de recombinação –, cromossomos maiores em vez de mais numerosos limitam a possibilidade de permutas. “Isso é importante porque espécies que têm alta taxa de recombinação quebram as combinações de genes, permitindo que a seleção opere individualmente em cada gene”, explicou, demonstrando que a seleção natural age com mais eficiência em genomas menores.

O trabalho feito no laboratório de Lynch indica também que, quanto maior o genoma, mais mutações acontecem. Simplesmente há mais espaço para erros de cópia. Além disso, o DNA de organismos com gerações mais curtas também tem mais chances de sofrer mutações. E espécies multicelulares têm uma particularidade: óvulos estão prontos desde o nascimento, enquanto espermatozóides estão sempre se formando. “Nós do sexo masculino somos a fonte de quase todas as mutações da espécie humana, pois ocorrem ao menos 3 mil divisões celulares. Por exemplo, considerando-se um pai na casa dos 50 anos, seu filho será um mutante e tanto. Eu tenho um filho de 10 anos, e sou cinqüentão. Aparentemente, ele está bem…”. Como a maior parte das mutações tem efeito negativo, abre-se aí espaço para a seleção natural agir.

Há mecanismos de reparo que corrigem erros na duplicação do DNA a cada divisão celular. Mas até esses são, segundo Lynch, menos eficientes nos eucariontes – organismos com organização celular mais complexa, em que o material genético está empacotado dentro de um núcleo – do que nos procariontes. Aparentemente, ao longo da evolução o próprio mecanismo de replicação do genoma sofreu mutações e se tornou menos eficiente em organismos multicelulares. Mais uma vez, Lynch usa a genética de populações para explicar por quê: “A desvantagem dos alelos mutadores é muito pequena, o que significa que a seleção natural não pode impedir que ocorram, a não ser que o tamanho da população seja enorme”. E mais – quanto mais complexo um organismo, mais fácil é acumular mutações no sistema de reparo.

Genes enxutos

Comparar os genes de procariontes e eucariontes dá indícios de onde vêm as diferenças entre a eficiência de replicação desses genomas. Lynch mostrou que nos procariontes os genes são enxutos e simples: trechos de DNA com indicações para fazer proteínas, flanqueados por fragmentos que regulam a ação daquele gene. Já nos eucariontes a história é outra. Cada gene é entremeado por trechos que não têm função – os íntrons, que ele chama de enfeites –, o que torna o processo de fazer proteínas um exercício de colagem, com mais espaço para erros e variações. “Não sei como é no Brasil, mas nos EUA temos um movimento chamado Design Inteligente, antigamente chamado criacionismo, mas a estrutura genética das células eucariontes é um belo exemplo de design não inteligente. Nossos genes estão divididos em pedaços, os trechos de DNA codificante são ilhas em um oceano de DNA intrônico”, brincou. Facilita o trabalho das mutações, que têm inúmeros alvos onde podem agir na surdina. Quanto mais complexo um organismo, ressaltou, com diferentes tipos de células, maior o espaço para que mutações se acumulem.

Por isso os enfeites são essenciais na evolução: “É importante lembrar que, se queremos entender a arquitetura evolutiva dos genes e sua complexidade, temos de considerar as mutações associadas à incorporação de adornos”. Como esses acréscimos genéticos não têm função, as mutações nesses trechos podem passar despercebidas, exceto se interferirem no funcionamento dos genes próximos.

O maior problema de estudar genômica comparativa é que os pesquisadores formulam uma teoria sobre como a diversidade surgiu, mas não têm como testá-la nos moldes científicos. “Não teremos dados independentes até que realmente encontremos vida em Marte ou em outros planetas”, explicou. Enquanto isso não acontece, ele estuda o DNA mitocondrial. E explica a opção: “As mitocôndrias, que são a usina de força das células eucariontes, têm um genoma independente, que surgiu da colonização de uma protobactéria há uns 3 bilhões de anos”. Assim como as bactérias, as mitocôndrias têm um genoma conciso e inteiramente codificante, sem adornos. Ao comparar o genoma mitocondrial de plantas com o de animais, Lynch mostrou altas taxas de mutação no DNA das mitocôndrias dos animais, e não nas das plantas. “Não sabemos por que isso ocorre, mas o DNA com a maior taxa de mutação nas células animais é o DNA mitocondrial, maior até mesmo do que no genoma nuclear. O DNA com menos mutações está nas mitocôndrias de plantas.”

Outro foco dos estudos de Lynch são os elementos de transposição, trechos de DNA que se duplicam e podem se espalhar por todo o genoma – no genoma humano eles são 70% do material genético. “O elemento mais comum no genoma humano é o elemento Alu. Se um explorador de outra galáxia chegasse à Terra e seqüenciasse o genoma humano, encontraria o elemento Alu e teria de concluir que isso é o que nos faz humanos.”

Mas mesmo que o genoma de animais pareça inflado em comparação ao das bactérias, estudos sobre a evolução da arquitetura genômica indicam que o genoma dos mamíferos vem diminuindo ao longo do tempo. Há 100 milhões de anos, o genoma médio de um mamífero tinha 6 bilhões de pares de bases. O genoma humano atual tem metade disso. “Se economizássemos e fizéssemos o seqüenciamento somente daqui a 15 milhões de anos, nosso genoma teria um terço do tamanho”, afirmou. Para explicar esse fenômeno é preciso recorrer à geologia, à história do planeta. No limite entre os períodos Cretáceo e Terciário se extinguiram os dinossauros e começou a era dos mamíferos, que se tornaram bem maiores do que seus ancestrais. O Eoceno, em seguida, trouxe um período mais quente no qual, segundo Lynch, havia plantas até nas regiões polares e os mamíferos se disseminaram por todo o planeta. Vem daí a hipótese para explicar o encolhimento dos genomas nos últimos 40 milhões de anos: as populações se tornaram maiores e a seleção natural, em conseqüência, mais eficiente. “Acho isso muito interessante, pois pensamos na paleontologia e na evolução do genoma como áreas completamente diferentes no campo da biologia evolutiva. Há razões para que as relacionemos.”

Para Lynch, a seleção natural é um mecanismo evolutivo importante. Mas é sobretudo o acaso – na forma de mutações genéticas e mortandade causada por catástrofes ambientais, por exemplo – que determina a complexidade do genoma. “Resumindo, o ambiente genético populacional das espécies realmente dita que tipo de evolução pode ou não ocorrer.” É a capacidade da seleção natural de tirar vantagem das diferentes arquiteturas genômicas que dá origem ao processo evolutivo.

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