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Alimentos

Frutas refeitas

Novas formulações atendem aos mais refinados paladares

de Fortaleza

fotos eduardo cesar e wikimediaAceita um abacaxi light, com 40% menos calorias que o abacaxi normal? Um pedaço de manga, já descascada e ainda com cheiro de manga, protegida por uma película comestível feita de polpa de manga? Talvez um chip ainda mais amarelo que os de batata, feito de polpa de laranja ou de mamão? Para beber, prefere um suco de caju probiótico – similar a um iogurte probiótico, mas à base de fruta – ou uma bebida fermentada de caju, cuja cor lembra o vinho branco de uva e o sabor de uma sidra? Muitas novidades à base de frutas brasileiras estão amadurecendo nos laboratórios da Embrapa Agroindústria Tropical e da Universidade Federal do Ceará (UFC) em Fortaleza. É o resultado do trabalho de equipes que atuam em várias frentes ao mesmo tempo, da microbiologia aos testes com consumidores.

Para mostrar um dos novos produtos em fase final de desenvolvimento na Embrapa, o químico Edy Sousa de Brito coloca sobre a mesa duas jarras de suco de bacuri, fruta do Nordeste de casca amarela e polpa branca. “Experimente”, diz Edy, alagoano que vive há 10 anos em Fortaleza, colocando em um copo um pouco de um dos sucos. É saboroso, mas bastante espesso – deve ficar ótimo em sorvetes ou cremes. “Agora este”, e oferece a outra versão: igualmente saborosa, mas fluida, líquida, bem mais atraente que a primeira. “Um tratamento enzimático”, ele explica, “é que dá essa fluidez e mantém o sabor maravilhoso do bacuri”.

O químico industrial Gustavo Adolfo Saavedra Pinto, também da Embrapa, trabalhou durante seis anos até encontrar a combinação mais adequada de enzimas que removessem apenas a viscosidade do suco de bacuri. Não bastou que apenas ele e sua equipe achassem ótimo o que tinham feito. Por duas vezes, em testes sensoriais realizados em uma sala ampla da própria Embrapa, dotada de seis cabines individuais, 100 consumidores que nunca tinham experimentado suco de bacuri desaprovaram as formulações iniciais – e Pinto teve de rever a escolha de enzimas. Os provadores aprovaram só no terceiro teste, com outra combinação de enzimas como as pectinases, que quebram as pectinas, carboidratos que deixam os líquidos espessos.

Não foi o bastante. Em dezembro de 2010, Gustavo e duas pesquisadoras de seu grupo, Andreia Aquino e Janice Lima, foram a Belém, no Pará, para testar a formulação que esperavam que fosse a final com outros 100 provadores, dessa vez consumidores habituais de suco de bacuri. “Deram notas mais baixas que os provadores de Fortaleza, mas aprovaram”, conta a engenheira de alimentos Deborah dos Santos Garruti, que cuida das análises sensoriais – de cor, aroma, sabor ou textura dos novos sucos ou frutas – com um mínimo de 50 provadores por vez.

Em outro laboratório, Henriette Azeredo e Delane Rodrigues preparam filmes de polpa de frutas – o de acerola forma discos vermelhos sobre uma lâmina transparente, de polpa de acerola e alginato, um extrato de algas usado como espessante. Mangas em pedaços – ou minimamente processadas – feitas por Ebenezer de Oliveira Silva ganharam uma cobertura de um filme de purê de manga e alginato – e os provadores gostaram do conjunto. “O filme substitui a casca, protege e mantém o aroma da manga”, diz Henriette. “Algumas frutas, como a manga, dão filmes ótimos, mas outras, como a acerola, precisam de mais pectina para fazer um filme mais resistente.” Por meio de uma nova máquina que deve começar a funcionar em breve em um laboratório mais espaçoso, ela pretende fazer fitas de frutas, com um a dois milímetros de espessura, que possam servir de lanches. É o caminho para, conforme seus planos, produzir barrinhas de frutas – se derem certo, as de abacaxi, por exemplo, dispensarão os consumidores de descascar, livrar-se das cascas e deixar a pia em ordem antes de se pôr a comer.

William Sallum, presidente da Associação Brasileira dos Produtores e Envasadores de Néctares e Sucos (Abrasuco), ao conhecer as inovações em curso em Fortaleza, considerou-as “bastante específicas e progressistas”. São também bem-vindas, em vista da concorrência entre as empresas: “Maneiras diferentes de agregar valor são muito importantes para os fabricantes de sucos”. Desde já, essas pesquisas, ligadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) de Frutos Tropicais, com sede na Universidade Federal de Sergipe, estão revalorizando as frutas, que fascinam Edy pela quantidade generosa de vitaminas e outros nutrientes importantes e por serem fontes de prazer para todos os sentidos – são bonitas, coloridas, cheirosas, saborosas e agradáveis ao toque.

Silvestre Silva

Bacuri, para sucos fluidos, se tratados com enzimasSilvestre Silva

O fascínio não é de hoje. O explorador português Pero de Magalhães Gandavo sentiu-se desarvorado diante dos gostos das frutas que conheceu enquanto viveu no Brasil. Em seu Tratado da terra do Brasil, publicado em 1576, sem poder fotografar, ele teve de descrever coisas tão estranhas quanto uma banana, que “parecem-se na feição com pepinos, (…) nascem numas árvores mui tenras e não são muito altas, (…) é uma fruta mui saborosa e das boas que há nesta terra, tem uma pele como de figo, a qual lhes lançam fora quando as querem comer” e, algo que pode ter escapado aos nossos olhos de nativos, “têm dentro de si uma coisa estranha, a qual é que quando as cortam pelo meio com uma faca ou por qualquer parte que seja, acha-se nelas um sinal à maneira de Crucifixo” (os resquícios das sementes da banana lembram remotamente uma cruz). Séculos depois, em 1968, a rainha Elizabeth II visitou o Brasil e quase perdeu a pose ao deliciar-se com um sorvete de bacuri.

Diante de tantos sabores possíveis, Edy acha desnecessário estimular o consumo de frutas com base apenas no valor nutricional. Mas foi a abundância de substâncias antioxidantes que mudou o destino do açaí, que parecia condenado a jamais vencer as fronteiras amazônicas. “Há 30 anos ninguém apostava no açaí como fruta que pudesse conquistar novos mercados”, diz o engenheiro agrônomo José Edmar Urano de Carvalho, pesquisador da Embrapa Amazônia Oriental, de Belém. “Muitos consumidores não estão preocupados com o sabor, mas em como a fruta pode contribuir para a melhoria da saúde.”

Embaladas pela busca de saúde ou novos sabores ou tentando atender aos hábitos modernos, como a falta de tempo e paciência para descascar uma laranja, essas inovações alimentam um mercado consumidor em expansão. Em 2006, a Coca-Cola comprou a fabricante de sucos Del Valle pelo equivalente a US$ 470 milhões, indicando seu interesse em obter rapidamente uma posição forte no mercado nacional de sucos prontos, que movimenta cerca de R$ 250 milhões por ano. Muita fruta ainda pode virar suco. Todo ano, no mundo, os plantadores colhem quase 800 milhões de toneladas de frutas, principalmente bananas (103 milhões de toneladas), melancia (93 milhões) e uva (65 milhões). Depois da China e da Índia, o Brasil é o terceiro maior produtor mundial de frutas, colhendo anualmente cerca de 40 milhões de toneladas, das quais 850 mil seguem para outros países, principalmente da Europa, gerando uma receita anual de cerca de US$ 800 milhões para o país. Ainda há uma alta concentração, tanto geográfica – já que o estado de São Paulo responde por 45% da produção nacional de frutas, principalmente laranja para exportação na forma de suco – quanto de itens: poucas frutas são produzidas comercialmente em larga escala. Laranja (18 milhões de toneladas), banana (6,5 milhões), maçã, mamão, coco-da-baía, manga, melão, uva, caju, cacau, abacaxi, limão e maracujá respondem por três quartos da receita gerada no setor.

Os negócios e o prazer dos consumidores devem crescer à medida que as frutas mais conhecidas ganhem novos usos e as menos conhecidas conquistem mais espaço. Em uma ensolarada tarde de um domingo de março, pelo menos 30 pessoas se alinhavam diante de uma sorveteria de um shopping que reavivou parte do antigo porto de Belém, em frente a uma baía com vista para o rio Guamá. O que as movia – ou o que as mantinha na fila – era o desejo de tomar sorvete de frutas regionais de sabores únicos como o uxi. “O uxi já foi visto como fruta de pobre, mas rico sempre comeu, geralmente escondido porque tinha medo de perder a elegância: tem de comer roendo a polpa aderida ao caroço”, conta Carvalho. Ele aposta no consumo crescente de uxi, que, além do sabor marcante, é rico em fitoesteróis, compostos que, acredita-se, ajudam a baixar o colesterol. Segundo ele, os pesquisadores da Embrapa demonstraram que o uxizeiro não demora 30 anos para frutiticar, como se dizia, mas apenas sete, quando propagado por semente, ou menos ainda, quatro, quando por enxertia.

Outra fruta em que Carvalho aposta é o murici, que “cheira a queijo do Alentejo”, como o português Gabriel Soares de Sousa anotou no Tratado descritivo do Brasil, de 1587. Segundo Carvalho, o gosto do murici lembra o de uma sopa. Mas aí pode estar um mérito, não um defeito. “Esse aroma salgado tem despertado o interesse de grandes chefs, que estão usando o murici em molhos, recheios de carnes e sopas”, diz Carvalho. Os chefs estão mesmo olhando para essas coisas exóticas. O escocês Tom Kitchin esteve em São Paulo em maio e não deixou de ir ao Mercado Central. A um repórter do jornal O Estado de S. Paulo, ele reconheceu: “Nunca provei frutas tão doces e suculentas como as daqui”.

Em meio aos mais diferentes climas e solo, 827 tipos diferentes de frutas nativas ou exóticas crescem no Brasil. Tipicamente brasileiras devem ser cerca de 350. Só na Região Norte crescem mais de 100 espécies, muitas pouco conhecidas da maioria dos brasileiros, como bacabi, biribá, cutite, mangaba e sapota–do-solimões, que o jornalista e repórter fotográfico Silvestre Silva apresenta no livro recém-lançado Frutas da Amazônia brasileira (Editora Metalivros, 280 páginas, R$ 180). Como os franceses, que dizem que poderiam comer um tipo diferente de queijo por dia, quem vive no Brasil pode saborear uma fruta nova por dia, “sem contar as variedades de cada espécie”, observa Edy. Segundo ele, os especialistas da Embrapa estão avaliando em campo 39 variedades só de acerola, “algumas quase pretas de tanta antocianina”, o pigmento que faz a cor da casca de frutas variar do vermelho-claro ao roxo.

Silvestre Silva

Murici, caindo no gosto dos chefsSilvestre Silva

Vários problemas impedem que novos sabores cheguem a mais brasileiros. “As árvores do bacuri e do piquiá, entre outras que produzem frutos comestíveis, são de uso múltiplo, estão sendo derrubadas há cinco séculos e escassearam muito”, diz Carvalho. “Repor os estoques anteriores é um processo lento.” As frutas regionais, ele ressalta, precisam ser melhoradas geneticamente para terem mais polpa e serem cultivadas como o cupuaçu, que há 10 anos crescia apenas na floresta. Hoje muitas ainda dependem do extrativismo – e, por essa razão, são caras, comparadas com frutas já tratadas agronomicamente. “A safra do bacuri, com 10 a 12% de polpa, coincide com a da maçã, que tem 95% de parte comestível e um preço menor.”

Se os novos sucos ou frutas em pedaços passam pelas provas iniciais, os pesquisadores da Embrapa se põem a trabalhar na ampliação da escala de produção, em conjunto com os especialistas do Departamento de Engenharia Química da Universidade Federal do Ceará. Em um dos laboratórios de química, a partir de um problema trazido pela equipe de Sueli Rodrigues, do Departamento de Engenharia de Alimentos – as fibras do suco de melão entupiam as pipetas –, o engenheiro químico paulista Fabiano Fernandes verificou que um equipamento de ultrassom de alta potência e baixa frequência poderia melhorar a qualidade de sucos e das próprias frutas.

A vibração causada pela ponteira do ultrassom mergulhada numa solução com a fruta em pedaços origina uma turbulência que rompe as fibras, quebra as células e cria microcanais por onde saem água e pequenas moléculas solúveis como os açúcares. O resultado é um suco com 40% menos açúcar e mais homogêneo do que o feito com a mesma fruta que não passou por esse tratamento. Sueli deixa sobre a bancada do laboratório um vidro com suco de melão que passou pelo ultrassom e outro que não passou: o primeiro mantém a uniformidade, enquanto o outro decanta em poucos minutos. Usando outro tipo de aparelho de ultrassom, as duas equipes conseguiram também reduzir em até 25% o tempo de secagem de abacaxi e de melão amarelo em pedaços. Podem vir daí as frutas diet, que mantêm a doçura porque depois são adoçadas com stevia, adoçante natural não calórico. “Dois minutos em um banho de stevia bastam para compensar a perda de açúcar”, diz a pesquisadora.
A equipe de Sueli fez também, por tratamento enzimático, sucos de abacaxi, melão, jambo, sapoti e seriguela pré-
-bióticos, com açúcares sem poder calórico chamados oligossacarídeos. Esses açúcares nutrem as bactérias que vivem no intestino e, por sua vez, produzem ácidos graxos, vitaminas e nutrientes benéficos para o organismo humano. Outro tipo de suco, os pró-bióticos, contém as próprias bactérias – os lactobacilos, como em leites fermentados. “É uma alternativa para quem não quer ou não pode consumir leite”, argumenta Fernandes. A única diferença no gosto talvez seja um pequeno – e agradável – acréscimo de acidez em alguns deles. “Com a fermentação”, diz Thatyane Vidal Fonteles, uma das pesquisadores do grupo, “o pH do suco de melão cai de 6 para 4, realçando o sabor e dificultando o crescimento de bactérias que poderiam alterar o sabor do suco”.

Outras duas pesquisadoras, Niedla Nascimento Alves e Francisca Diva de Almeida, desenvolvem o suco em pó de abacaxi, laranja, caju e melão – com lactobacilos que permanecem vivos mesmo depois de o suco líquido passar por um processo de desidratação a 130 graus Celsius, similar ao usado para fazer leite em pó. “Os microrganismos que sobrevivem à secagem agora precisam sobreviver ao armazenamento e depois à reidratação”, diz Niedla. “Nossa intenção é fazer um suco instantâneo, mas ele ainda não se dissolve bem.”

Susana Saad, professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), esteve em fevereiro em Fortaleza, considerou os trabalhos na Embrapa e na UFC “extremamente interessantes” e ficou impressionada com a integração entre pesquisa básica e aplicada. “São vários profissionais conversando, cada um com seu enfoque”, comenta Susana, que está vendo como colaborar com os grupos de Fortaleza. Ela é uma das três organizadoras do livro Probióticos e prebióticos em alimentos – Fundamentos e aplicações tecnológicas (Livraria Varela, 672 páginas, R$ 143), que mostra como tornar sorvetes, leites e queijos mais nutritivos. Cada vez mais atraentes por causa dos benefícios à saúde, os alimentos pré e pró-bióticos devem movimentar negócios anuais da ordem de US$ 160 bilhões no mundo todo.

“Estamos produzindo, organizando e compartilhando conhecimento”, diz Edy. Ainda este ano, ele e sua equipe pretendem liberar uma base de dados, para acesso via internet, sobre compostos voláteis que formam o aroma e o sabor das frutas. Inicialmente estarão nessa base cerca de 200 compostos de cinco frutas: caju, abacaxi, acerola, manga e maracujá. “A identidade e a aceitação das frutas dependem muito do aroma, já que o paladar percebe apenas os gostos básicos como salgado, doce, ácido e amargo”, diz Deborah. O cheiro do maracujá resulta da soma de cerca de 120 compostos, o caju libera cerca de 80. Na banana, aparentemente inodora, encontraram mais de 30.

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