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Medicina

Combate em duas frentes

Marcos Moraes extirpa tumores na sala de cirurgia e luta para diminuir o número de casos de câncer usando a legislação e criando estratégias de controle

Moraes: amplo histórico de sucesso na gestão de instituições

LÉO RAMOSMoraes: amplo histórico de sucesso na gestão de instituiçõesLÉO RAMOS

Durante uma das numerosas homenagens que recebeu, o médico-cirurgião Marcos Moraes discursou sobre as dificuldades enfrentadas pelos hospitais filantrópicos, que tratam mais de um terço de todos os casos de câncer do país. Sugeriu que eles deveriam ter uma lei de renúncia fiscal própria, similar à Lei Rouanet para cultura. Lançada em 2010, a ideia germinou rapidamente e em 2012, por meio de medida provisória, foi instituído o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica (Pronon) com o objetivo de captar e canalizar recursos para prevenção e combate ao câncer. Em abril de 2013 a lei foi regulamentada por decreto presidencial.

Marcos Moraes é atualmente presidente da Fundação do Câncer, da Academia Nacional de Medicina e coordenador do Programa de Oncobiologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A homenagem descrita acima ocorreu em agosto de 2010 durante a primeira edição do prêmio Octavio Frias de Oliveira, concedido pelo Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) a personalidades de destaque no combate à doença no Brasil. O prêmio foi entregue pelo então vice-presidente, José de Alencar, que travava uma luta contra o câncer havia 13 anos. “Depois da cerimônia, ele me disse: ‘Quero ser o padrinho dessa história’”, conta Moraes.

Com as quatro irmãs e um irmão ainda em Palmeira dos Índios, Alagoas, onde nasceu

Arquivo Familiar Com as quatro irmãs e um irmão ainda em Palmeira dos Índios, Alagoas, onde nasceuArquivo Familiar

O cirurgião uniu-se então a Paulo Hoff, professor titular de oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e diretor-geral do Icesp – além de médico de Dilma Rousseff –, e a Aristides Maltez Filho, da Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Combate ao Câncer, e encomendou ao advogado Sérgio de Andréa, redator da Lei Rouanet, um projeto nos mesmos moldes para conseguir recursos contra o câncer. Depois que Dilma foi eleita, os três conseguiram uma audiência e a presidente se dispôs a apoiar a iniciativa – por ser uma lei que envolve renúncia fiscal, ela tem de partir do Poder Executivo. Quando chegou ao Congresso, a lei recebeu algumas mudanças e Moraes, Hoff e Maltez se envolveram no corpo a corpo com deputados e senadores para convencê-los da necessidade de a medida ser publicada sem muitas modificações. Foram bem-sucedidos. Batizada de Lei José de Alencar, ela permitirá a pessoas jurídicas e físicas fazer doações a projetos de pesquisa de combate ao câncer e abater do imposto de renda. “É a primeira lei que contempla a saúde através da renúncia fiscal”, diz Moraes, ainda surpreso diante da rapidez com que tudo aconteceu.

Essa foi a última conquista que Marcos Fernando Oliveira Moraes, de 77 anos, se tornou protagonista. A primeira talvez tenha sido quando saiu adolescente da alagoana Palmeira dos Índios para estudar no que era considerada a melhor escola do país, o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. “Meu pai viu um anúncio no jornal informando que a escola oferecia bolsa integral para dois estudantes de cada estado brasileiro, por meio de uma seleção rigorosa”, conta. “Muito inteligente, ele me propôs o desafio de tentar estudar lá.” Moraes topou, estudou e passou. Foi para a capital da República em 1950 e cursou o colegial (atual ensino médio) como aluno interno.

Na formatura do ginásio, em 1953

Arquivo Familiar Na formatura do ginásio, em 1953Arquivo Familiar

Nos dois anos seguintes continuou no Pedro II, mas como inspetor de alunos. “Tinha cama e comida, o suficiente para me ajudar durante os primeiros anos do curso de medicina na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj)”, relata. Aquele foi um bom período para o jovem universitário. Quando já não tinha mais o colégio para abrigá-lo, Moraes dividiu um conjugado com Oduvaldo Viana Filho e Luiz Eça – respectivamente, dramaturgo e pianista, ambos de grande talento –, no início dos anos 1960, que ele conheceu no Centro Popular de Cultura (CPC). “Vianinha e Luizinho Eça me apresentaram à rica e boêmia vida cultural da cidade”, escreveu o médico por ocasião de sua posse como professor honorário da UFRJ, em 2012. “Tempos da bossa nova, do Beco das Garrafas, da Fiorentina, do Zum-Zum e do meu lindo Rio explodindo de felicidade.”

À alegria dos tempos de estudante seguiu-se a dura vida de médico pro-curando se afirmar na profissão no Hospital Silvestre e no Hospital Ipanema. “Nos anos 1970 voltei a trabalhar no Ipanema, que era o melhor centro de cirurgia gastroenterológica do país”, conta. Antes de partir para sua primeira experiência em instituições no exterior, ele ainda passou três anos no Hospital Santa Rita de Palmeira dos Índios. “Era uma experiência pela qual eu achava que tinha de passar.”

Maratonista amador até os 59 anos, aqui Moraes aparece com o Rio ao fundo, vestido com a camiseta de sua última maratona, realizada em Boston

Arquivo Familiar Maratonista amador até os 59 anos, aqui Moraes aparece com o Rio ao fundo, vestido com a camiseta de sua última maratona, realizada em BostonArquivo Familiar

Do Rio e do interior de Alagoas, Moraes saltou para a Universidade de Illinois, em Chicago, Estados Unidos, onde ficou entre 1975 e 1977. Foi um período fundamental na sua vida profissional ao trabalhar com dois grandes cirurgiões, Lloyd Nyhus e Tapas Das Gupta, e aliar a pesquisa científica à formação em cirurgia oncológica. Suas principais áreas de atua-ção como cirurgião são: tubo digestivo, mama, sarcoma, pélvis e melanoma. Hoje ele ainda interna e opera seus pacientes no Hospital Samaritano. Quem o conhece um pouco mais não mede elogios. “Ele foi um dos pioneiros na cirurgia oncológica moderna no Brasil, ajudou a internacionalizar a medicina do país e é extremamente capaz”, diz Paulo Hoff.

022-025_Moraes_info_1Controle de câncer
Quando voltou dos Estados Unidos chefiou o Departamento de Cirurgia do Hospital Universitário da Universidade Gama Filho e reuniu um bom time de cirurgiões, como Armando de Oliveira e Silva, José Reinan Ramos e Florentino Cardoso. Certa noite de dezembro de 1989, o telefone tocou em sua casa às 23 horas. Do outro lado, o recém-eleito Fernando Collor de Mello, que ele não conhecia, disse que tinha boas informações sobre ele e o convidou a escrever o Programa Nacional de Controle de Câncer do governo. “Aceitei e por dois meses trabalhei no edifício Bolo de Noiva em Brasília”, conta.

No programa foi especificado que a política de controle da doença deveria ser feita pelo Instituto Nacional de Câncer (Inca), que, segundo Moraes, não passava de um hospital comum na praça da Cruz Vermelha. Graças ao programa o instituto se tornou um departamento do Ministério da Saúde e passou a orientar a política de combate ao câncer no Brasil. Moraes foi nomeado seu diretor e ficou no cargo por nove anos, tempo suficiente para implementar as mudanças necessárias.

No Hospital Samaritano, no Rio, em 2011.  É lá onde ele ainda interna e opera seus pacientes

Arquivo Familiar No Hospital Samaritano, no Rio, em 2011.
É lá onde ele ainda interna e opera seus pacientesArquivo Familiar

A Fundação do Câncer surgiu por sua iniciativa, em 1991, para dar suporte financeiro ao Inca. Era preciso contratar médicos, técnicos e equipar melhor o prédio. Os programas já em andamento foram ampliados e outros criados, como o de detecção precoce do câncer e o de combate ao tabagismo. Alguns hospitais, como de Oncologia, o Luíza Gomes de Lemos e o Pro-Onco, foram incorporados ao Inca. Em 20 anos, a fundação investiu mais de R$ 1,5 bilhão no instituto.

“O mais importante de minha gestão foi a implantação de uma política obstinada de combate ao tabagismo”, orgulha-se. De fato, os números impressionam. Em 1989, 32% da população acima dos 15 anos fumava; em 2008, 17%. Pelo menos sete estados brasileiros adotaram leis antifumo que proíbem o cigarro em ambientes coletivos, além de outras medidas que desestimulam o hábito de fumar (ver quadro na página 25). A revista médica britânica The Lancet publicou estudo em junho de 2011 indicando uma redução das doenças crônicas degenerativas no Brasil e relacionando essa queda ao controle do tabagismo nos últimos anos.

O trabalho de Moraes – ex-maratonista amador e pai de Marcelo e Marcos – tem relação com dois outros temas de extrema importância para ele: a pesquisa científica e os cuidados paliativos. Como diretor do Inca e presidente da Fundação do Câncer, apoiou a pesquisa no hospital, concedeu bolsas para pesquisadores e recursos para estudos, além de criar mecanismos para formalizar contratos com a indústria farmacêutica e receber doações. “Sem a fundação, não haveria pesquisa laboratorial consistente nem a parte translacional”, diz Jerson Lima da Silva, professor titular do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ e diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). “O Marcos foi importantíssimo nesse processo”, corrobora Paulo Hoff.

022-025_Moraes_info_2A coordenação do Programa de Oncobiologia da UFRJ também é parte das atribuições de Moraes. Criado em 2000 para agregar grupos de pesquisa em câncer de várias universidades e centros científicos, começou com 13 cientistas e hoje reúne 27 grupos de pesquisa, com cerca de 300 integrantes. A dotação orçamentária vem da Fundação do Câncer. “Ele estimula a cooperação entre os grupos e tem um efeito catalisador enorme”, testemunha Jerson Lima.

Hoje Moraes também ocupa a presidência da Academia Nacional de Medicina (ANM) pela segunda vez e trabalha para torná-la sustentável. “Estamos terminando o retrofit do prédio antigo e concluímos um edifício novo, para dar amparo econômico à instituição”, conta ele. “E recentemente estabelecemos o planejamento estratégico para a ANM com o auxílio da Fundação Dom Cabral.” As intervenções certamente ajudam a mudar o futuro da academia.

Moraes entre Tapas Das Gupta (esq.) e Lloyd Nyhus, em 1998. Ambos foram seus chefes em Chicago

Arquivo Familiar Moraes entre Tapas Das Gupta (esq.) e Lloyd Nyhus, em 1998. Ambos foram seus chefes em ChicagoArquivo Familiar

Uma preocupação que vem dos primeiros tempos de Moraes no Inca é com os cuidados paliativos dos doentes terminais. Quando começou a trabalhar no Plano Nacional de Controle de Câncer, ele recrutou profissionais da área para ajudá-lo. Entre os integrantes estava a oncologista Magda Rezende, então responsável pelo Grupo Especial de Suporte Terapêutico Oncológico (Gesto), organização criada em 1986 e registrada em cartório para poder se organizar, arrecadar fundos e trabalhar com menos burocracia. Ao assumir a direção do Inca, Moraes colocou o Gesto para prestar serviços ao instituto.

“O princípio do cuidado paliativo da organização é dar conforto psicológico, material e toda assistência ao doente no final da vida. Ele não precisa passar suas últimas semanas ou meses entubado e sedado em uma Unidade de Terapia Intensiva, sem nenhum poder de decisão”, explica Magda. Pelo contrário: o ideal é que fique perto da família, vivendo seus últimos momentos em um lugar acolhedor. Hoje o Inca atende 300 doentes em casa com direito a oxigênio, remédios e treinamento das pessoas próximas. Os mais carentes recebem assistência extra, como cestas básicas.
“Quando não há mais nada a fazer, sempre há alguma coisa a fazer”, é uma frase que Marcos Moraes repete várias vezes quando fala dos cuidados paliativos.

Com as irmãs Maria Aparecida (esq.) e Maria de Oliveira e os filhos Marcelo e Marcos, ainda jovens, em 1990

Arquivo Familiar Com as irmãs Maria Aparecida (esq.) e Maria de Oliveira e os filhos Marcelo e Marcos, ainda jovens, em 1990Arquivo Familiar

A Fundação do Câncer investe, no momento, na construção de um prédio térreo para onde os pacientes terminais sem recursos poderão ir de modo a aproveitar o resto da vida. É o conceito de hospice, como é chamado no exterior, palavra que significa acolhida, hospedagem. “É um local com 300 mil metros quadrados no bairro de Vargem Pequena, no Rio, que deverá ser bonito, com portas e janelas voltadas para jardins floridos onde o paciente com pouco tempo de vida deverá estar integrado à família e não isolado na UTI”, diz Moraes. Um jeito, enfim, de partir com dignidade.

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