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Alex Castro

Duas profissões esquecidas do Rio antigo

GUILERME LEPCACatava esterco

Ao contrário de tantos pretos, não andava cantando sua ocupação. Puxava a carroça em silêncio, repicando um pequeno sino de cobre. Tinha pudor.

Caminhava sempre pelas mesmas ruas, no mesmo horário, todos os dias. As mucamas já o conheciam: esperavam sua passagem e ficavam no aguardo do sino.

Ninguém queria contato. Tudo era muito rápido. A mucama saía porta afora com o balde de esterco quente nas mãos, ele abria o tampão da carroça, ela despejava ali a carga e voltava correndo para dentro. Não falavam com ele.

Havia sempre respingos. Ao final da tarde, estava salpicado pela própria mercadoria.

Os tigres eram mais dignos. Temidos, até. O próprio nome impunha respeito. Eram escravos fortes, que carregavam nos ombros os dejetos de suas casas. Não passavam o dia lidando com os excrementos dos outros. Despejavam tudo na lagoa mais próxima e já voltavam para cuidar de outras atividades.

Pensava muito nisso. Que ali, no barril do tigre, misturados aos dejetos dos sinhôs e das sinhás, das mucamas e dos moleques, estavam também os seus. O tigre carregava o próprio excremento. De algum modo, aos seus olhos, isso lhes conferia dignidade.

Mas nem toda casa tinha escravos. Então, ele ainda era útil.

Gostava mesmo era de uma mulatinha da rua da Ajuda. Era sempre ela que trazia o balde. Mas nunca teve coragem de lhe falar. O esterco os separava. Um dia, não apareceu mais e ele não teve coragem de perguntar por ela. Ficou a lembrança daqueles dentes brancos. Tinha todos. Era lindo.

Ao final do trajeto, ele percorria a rua do Aljube até a Prainha. As barcaças recolhiam os dejetos da Corte e os levavam para os engenhos do outro lado da baía, onde não havia gente para produzir tanto estrume.

Os galegos pagavam quase nada pelo esterco. Só valia a pena se enchesse a carroça até a borda. Afinal, era recolhido de graça. Conseguiria mais mendigando, era o conselho que recebia.

Mas gostava de saber que deixava a Corte mais limpa. Que o esterco que recolhia se transformava em açúcar. Que tudo se transformava em outra coisa. Que ele, que era tão baixo, tão preto, tão feio quanto seu esterco, um dia também talvez virasse açúcar.

 * * *

 Soltava passarinhos

Frequentava as quermesses e procissões. Sempre em feriados religiosos.

Carregava uma gaiola quase maior que ela. Tinha seis compartimentos independentes, cada um com sua portinha. Nunca mais perderia a viagem soltando todos os bem-te-vis ao mesmo tempo.

Era conhecida dos penitentes. Só não abordava os brancos ricos. Quem já vivia cheio de graça não precisava da graça adicional de soltar uns passarinhos.

Preferia os desgraçados e os desafortunados, os moleques e as mucamas, os mutilados e os coxos, os culpados e os esperançosos, os tísicos e os leprosos, os pretos e os pardos. Os seus.

Muitos não entendiam. Quando a menina levantava a gaiola, já gesticulavam seu desinteresse. E ela esclarecia, não vendo passarinho, não, moço. Eu solto.

Alguns continuavam sem entender: vou lá pagar para soltar passarinho, menina?

E ela dizia, Deus ajuda quem liberta suas criaturinhas. É graça para o ano inteiro. O senhor reza comigo a prece de São Francisco de Assis, escolhe um bem-te-vi e deixa voar. Deus proverá.

Escolhiam quase sempre os passarinhos mais vistosos. Será que Deus prefere que os belos sejam livres?, se perguntava a menina.

A velha lavadeira foi o oposto. Demorou longos minutos. Estudou bichinho por bichinho. Quis a certeza de soltar o mais velho e mais fraco, o mais feio e mais cansado.

Seus dedos mal funcionavam. Mãos escurecidas e descoloradas de bater roupa em pedra. Mas fez questão de ela mesma destravar o ferrolho. Não era fácil. O preto Sebastião construíra a gaiola especialmente para a menina, levando em conta seus dedos ainda finos e ágeis.

Finalmente, o bem-te-vi saiu cambaleando pelo ar.

Ao cair da tarde, a menina foi até um matinho próximo, abriu as portinhas da gaiola e assoviou. Um por um, todos voltaram. Menos o velho passarinho. No feriado seguinte, a lavadeira também não apareceu. A menina gostava de pensar que estavam juntos.

Em casa, braços cansados de carregar a gaiola, acomodou seus tostões e vinténs (nem uma pataca hoje) em um latão na despensa. A sinhá era generosa: lhe dava todos os dias santos e ainda lhe permitia guardar tudo o que ganhasse.

Deu boa-noite para a sinhá e se dispôs na esteira aos pés da cama. Sonhou que voava.

 * * *

 A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto menciona barcos chineses onde passarinhos e peixes eram soltos no ar e na água, em troca de esmola, para “serviço de Deus” (capítulo 98). Um texto chinês do século XVI, mesmo século no qual Mendes Pinto esteve na China, detalha um dos muitos rituais budistas que devem acompanhar o ato de libertação (“Freeing Animals from Bondage” em Buddhist scriptures, Penguin, 2004). No Brasil, a única menção que encontrei, que pode ou não ter relação com o budismo, está em uma crônica da juventude de Machado de Assis, que teria testemunhado essa prática durante a procissão dos ossos da Misericórdia (O Futuro, 15 de dezembro de 1863). Entretanto, em diversas ocasiões (o conto “O segredo do bonzo”, de 1882, ou o ensaio “Instinto de nacionalidade”, de 1873), Machado demonstrou ser leitor atento da Peregrinação. Terá o episódio sido apenas uma glosa de Mendes Pinto? Mera invenção do Bruxo? De Machado, pode-se esperar tudo.

Por coincidência, no mesmo capítulo 98, a Peregrinação também menciona os “mercadores de esterco” da China. Existe ampla documentação sobre os catadores de esterco do Rio antigo, como La Blanchardière, em 1748 (em Visões do Rio de Janeiro colonial, 1531-1800), e Schlichthorst, em 1824 (em O Rio de Janeiro como é – Uma vez e nunca mais, cap. IX). No Segundo Reinado, com o avanço das regulações sanitárias, a prática deve ter desaparecido. A última menção que encontrei foi no capítulo 4 de Mulheres e costumes do Brasil (1863), mas o sempre tão crítico Expilly menciona a atividade sem deixar claro se a testemunhou ou apenas ouviu falar. Finalmente, em 1864, foi inaugurado o serviço de esgoto da Corte.

Desnecessário acrescentar que esse é um conto de ficção.

Alex Castro, 39, é autor de Mulher de um homem só (2009, romance) e Onde perdemos tudo (2011, contos).

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