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Arte

A liberdade do boêmio

Paulo Vanzolini não fez revoluções na música popular, mas ajudou a fixar o samba urbano paulista

088-091_Arte_208-1Francisca do Val

Numa entrevista, ao ser questionado sobre a sua dualidade de cientista e compositor, Paulo Vanzolini (1924-2013), morto no mês passado, explicou, irritado, que ninguém conseguia fazer só zoologia ou só música em tempo integral. Mas a qual das duas ele dedicava mais tempo, insistiu o jornalista. “Como você acha que eu ganho a vida? Essa é a do zoólogo”, respondeu. “Na verdade, ele gostava é dos seus lagartos. Compor era uma coisa de final de noite, sem grande seriedade, um hobby. Nunca foi músico de levantar bandeiras. Dizia que de conhecimento bastava o da universidade”, diz Luiz Tatit, professor do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP).

Para o pesquisador, não se deve buscar um revolucionário do samba em Vanzolini. “Ele adaptou o samba carioca a São Paulo, como o fizeram, em outros moldes, Adoniran Barbosa ou Geraldo Filme. Como ele jamais precisou da música para viver e compor não era sua preocupação central, ignorou todos os movimentos musicais que passaram, bem como as crises que o samba enfrentou. Seu universo era livre e muito particular”, nota Tatit. Para Regina Machado, professora do Instituto de Artes da Unicamp, Vanzolini ajudou a fixar o samba urbano paulista.

“Na época em que ele começou não se podia falar num samba de São Paulo, mas no samba carioca rompendo suas fronteiras e chegando até os paulistas e, com essa primeira geração, da qual Vanzolini fez parte, ganhando algumas características próprias”, avalia Regina, autora de A voz na canção popular brasileira (Ateliê). Um dos tons característicos não estava em notas, mas no debate em que os sambistas se inseriram sobre a afirmação da “paulistanidade”. Ao lado do orgulho pelo progresso paulista, o samba mostrava desequilíbrios e outras mazelas da urbanização.

“Isso transparece nas letras de Adoniran, que mostram os traços da imigração, ou nas letras mais biográficas de Vanzolini, em sua vivência com donos de bares ou amigos nos ‘inferninhos’, temas que não faziam parte dos sambas cariocas”, observa Tatit. Ao contrário da efervescência do Rio, em São Paulo as rodas de samba eram exclusividade da vida noturna dos bares e boates. “Vanzolini, porém, vai crescer ouvindo o samba nos rádios, em especial Noel Rosa, com quem se identificava. Afinal, Noel trocou a medicina pela música. Mas Vanzolini formou-se e se transformou em cientista e compositor. Para ele sambista não tinha nada a ver com malandro e essa palavra nunca entrou em suas canções. Gostava de dizer que era boêmio e trabalhador”, conta Sonia Marrach, autora de Música e universidade na cidade de São Paulo: do samba de Vanzolini à vanguarda paulista (Editora Unesp).

“Filho das classes médias, letrado e com ocupação privilegiada e estável, ele rompeu com os estereótipos e as generalizações simplistas. O caso de Vanzolini demonstra claramente como o samba ascendeu socialmente e foi aceito e consumido não apenas nos círculos de sempre, mas chegando às classes médias e elites, em boa parte graças aos meios de comunicação”, observa Marcos Virgílio da Silva, do Laboratório de Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo (LabFAU) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP), que pesquisou o tema na tese de doutorado Debaixo do “pogréssio”: urbanização, cultura e experiência popular.

Ainda assim, Vanzolini nunca quis se profissionalizar como músico. Adorava contar uma história. Num show, muito aplaudido, seu parceiro, Paulinho Nogueira, virou-se para a plateia e disse: “Vocês são gente boa, mas não concordo com vocês baterem palmas para a única pessoa que não sabe a diferença entre tom maior e tom menor”. Era um “analfabeto musical” por opção e não por falta de oportunidades. Quando aluno da Faculdade de Medicina, nos anos 1940, participava de shows dos alunos, mas foi proibido de cantar por ser desafinado ou não seguir um ritmo. Recitava monólogos para o público. “No programa Ensaio, quando canta Ronda, sai em disparada, sem nem pensar no ritmo ou no tom, deixando o violista que o acompanhava num desespero de tentar segui-lo”, recorda Tatit.

“Por um lado, ele comprovava o lado intuitivo do músico popular. Por outro, sua erudição permitiu que ele trabalhasse suas canções com grande elaboração de pensamento. Sua importância maior está justamente nesse trânsito do universo popular com um viés intelectual. Isso influenciou em muito as obras de Chico Buarque e Caetano Veloso”, lembra Regina Machado.

Odiava o canto quase falado da bossa nova e não gostava das músicas com exagero de emoção. Era dono de um samba sofisticado

Francisca do Val Odiava o canto quase falado da bossa nova e não gostava das músicas com exagero de emoção. Era dono de um samba sofisticadoFrancisca do Val

“Como cientista ele se misturou à boemia e virou um observador da noite, com retratos poéticos de personagens dos bares nas madrugadas. Fez isso sem idealismo e sem utopia, usando muito humor”, nota Sonia Marrach. As letras de Vanzolini, para a pesquisadora, são o seu melhor lado, são enxutas, com grandes achados verbais, com uso e abuso do subentendido, numa linguagem econômica e concentrada. O professor Antonio Candido, crítico e ensaísta, na apresentação da coleção de discos Acerto de contas, nota que Vanzolini trabalha com o mínimo para obter o máximo rendimento das palavras, carregadas de expressão, fazendo verdadeiros retratos poéticos das madrugadas paulistanas.

“O que singulariza Vanzolini no panorama da música popular brasileira é que seu pensamento musical é organizado pela contradição. Para ele, o caráter essencial da vida em seus vários aspectos é o movimento, a mudança, que vem da negação e dos conflitos transformadores das coisas subjetivas e objetivas”, avalia Sonia. O notável é que essa contradição é percebida com bom humor, com um veio cômico e uma boa vontade para ver tudo com graça. “Ele faz brincadeiras irônicas, transforma o perdedor em ganhador do jogo e, assim, faz a gente refletir de forma inusitada. A visão cômica faz inversões de sentido, para prevalecer o riso regenerador”, observa a autora.

Seria como se dissesse que esse mundo que nos faz sofrer é pequeno diante de uma canção, de uma brincadeira, de uma cerveja com os amigos. “No último show que fizemos, em 2012, era evidente que o maior prazer para ele era ficar ali o dia todo, esperando sua hora de cantar, ouvindo os amigos e tomando suas cervejas. Não havia maiores preocupações”, lembra Tatit. Por isso foram “apenas” 50 músicas em 50 anos, um ideal de música como refresco da hora do lazer que deixou de existir após a bossa nova. “Seu amadorismo é profissional e não artístico. Ele tem um modo artesanal de compor. Letra e música nascem juntas e são criadas lentamente, a partir da primeira frase, e então, sem a pressa da indústria cultural, de forma consciente, paciente, demorando anos para fazer, sem importar a quantidade”, conta Sonia.

Reza a lenda que passou seis meses para decidir se usava “demonstra” ou “revela” num verso de Boca da noite. Mas o resultado era, melodicamente, samba. “Faz samba igual os meus. Não é igual. É diferente os temas que ele pega, os meus é mais povo, os dele é mais intelectual, porque ele é um professor, ele é desse zoológico, sei lá, um cara inteligente. Mas o samba nosso é igual”, contou Adoniran Barbosa. E o samba de Vanzolini permaneceu igual, graças justamente ao que Tatit chamou de “seus lagartos”, o trabalho na universidade. Compondo entre 1940 e 1990, ele passou pela bossa nova, que foi, esta sim, um divisor de águas da música popular brasileira, bem como por outros movimentos musicais, sem se deixar levar, preso ao samba de raiz. O amigo Adoniran, por exemplo, viu-se obrigado a esbravejar contra o iê-iê-iê.

“Diferentes também da bossa nova impressionista, contida e intimista, as canções de Vanzolini são expressionistas, fortes, brincalhonas, exigindo um canto mais aberto e vital, uma interpretação despojada, sem dispensar a importância solística do cantor e a vitalidade do canto”, avalia Sonia. Odiava o canto quase falado da bossa nova e tampouco gostava das músicas com exagero de emoção, dono de um samba sofisticado que vai distante das realidades sensoriais de um Caymmi, com seus pescadores e mares. “Vanzolini é cerebral, intelectual. Suas letras trazem pensamentos elaborados e pontes entre cultura erudita e popular”, analisa a pesquisadora.

O produtor e arranjador musical da coleção Acerto de contas, Italo Peron, que conheceu Vanzolini por muitos anos, afirma que ele nunca quis ser e não se reconhecia como divisor de águas de “qualquer coisa”. “Nunca pretendeu ser compositor profissional. Boa parte da sua fama se deve à grande aceitação que ainda tem no meio estudantil, algo impressionante, e também a sua boa rede de relacionamentos”, fala. Para Peron, sua música é simples e ele dizia “que o que tenho de melhor veio da música do rádio dos anos 1930 e 1940”. “O grande talento de Vanzolini é sua poética. Ele consegue traduzir uma situação emocional complexa em quatro versos. Em São Paulo havia uma lacuna disso e ele a preencheu”, conta.

Para Peron, e Vanzolini concordava com ele, o músico só virou “a cara de São Paulo” porque o público se identificou com ele e o adotou. “Ele, por exemplo, não gostava de Ronda, que achava despretensiosa. Pior: achava um absurdo que a cidade adotasse como ‘hino’ uma música que falava de prostitutas e de um bandido que quer dar tiros nessas mulheres”, revela Peron. Assim, Vanzolini teria virado um modelo “a despeito” de si mesmo, de sua música e de suas intenções, por um público que buscava um representante. Para o produtor, seu sucesso se deveu muito ao “boca a boca”, a seu papel na universidade e durante a ditadura. “Isso não o desmerece, nem à sua genialidade como escritor, mas ele não se reconhecia nesse entusiasmo todo e até achava tudo, sinceramente e sem fazer gênero, muito sem sentido”, diz Peron.

Leia reportagem Olhar aberto sobre a biodiversidade sobre a produção científica de Paulo Vanzolini.

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