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Resenha

Sempre a luta de classes

Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000 | Armando Boito Jr. e Andréia Galvão (orgs.) | Alameda/FAPESP, 429 páginas, R$ 58

Resenha_Politica e classes sociaisConflito de classes é expressão frequente entre marxistas, e por essa razão permeia todo o livro Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. Fruto do trabalho de um grupo de pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o Centro de Estudos Marxistas, a obra reúne artigos que abordam os efeitos do neoliberalismo sobre os dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva. Trata-se assim de uma espécie de continuidade deNeoliberalismo e lutas sociais no Brasil”, número especial da revista Ideias (Unicamp, 2002), sobre os governos de Fernando Henrique Cardoso. O novo título complementa o primeiro e traça um retrato das contradições e dos desafios que classes trabalhadoras e dominantes, organizações representativas e movimentos sociais enfrentam sob a política neoliberal.

Organizado por Armando Boito Jr. e Andréia Galvão, professores do Departamento de Ciência Política da Unicamp e editores da revista Crítica Marxista, o livro parte do pressuposto de que é preciso tratar o neoliberalismo como um conflito de classes, sem meias palavras. E propõe que as privatizações, a abertura e a desregulamentação impostas ao mercado acabaram por contaminar e acuar a reação dos movimentos progressistas. Se os socialistas se preocupavam com a revolução nos anos 1950 e 1960 e com a luta contra a ditadura nas duas décadas seguintes, dos anos 1990 em diante parece haver uma lacuna na história do pensamento crítico.

Interessa destacar as contribuições do livro para refinar esse debate, a começar do primeiro capítulo. Ao analisar a crise do governo de Fernando Collor de Mello, o que soa temporalmente deslocado em relação aos outros oito artigos, o autor Danilo Enrico Martuscelli afirma que setores burgueses não aderiram de forma unânime ao neoliberalismo, mas ofereceram resistências “seletivas”. Com sua abertura comercial, Collor impôs sérias dificuldades à indústria brasileira, forçando diferentes frações burguesas a reagirem contrariamente a esse governo.

Os autores do livro adaptam o conceito de burguesia interna de Nicos Poulantzas (1978) para a realidade brasileira. No contexto original, Poulantzas analisa o conflito entre os capitais nacionais europeu e americano, mostrando que a burguesia interna apresenta certa ambiguidade em relação ao capital externo. Essa é a chave para entender Política e classes sociais no Brasil dos anos 2000. A grande burguesia interna brasileira nunca esteve fora do poder, introduz em seu artigo Boito Jr., mas foi na passagem, em 2002, da “era FHC” para a “era Lula” que seus interesses voltaram a influenciar as iniciativas e medidas do Estado.

Boito Jr. recorre ao termo “neodesenvolvimentismo” para definir o modelo econômico do Brasil nos anos 2000: é o “desenvolvimentismo possível dentro do modelo capitalista neoliberal periférico”, diz. Voltado para o mercado externo, esse modelo tende a priorizar os interesses das frações burguesas internas em detrimento dos interesses da grande burguesia compradora e do capital financeiro internacional. E, em troca, Lula pode se ancorar na relação com importantes setores industriais nacionais para preservar capital político, inclusive na crise do “mensalão”.

Em outro artigo, Andréia Galvão analisa a organização e a luta das classes trabalhadoras, propondo que houve uma reconfiguração do movimento sindical benéfica para o arranjo político de sustentação do governo Lula. Mas a pesquisadora não deixa de questionar se estaria havendo cooptação das grandes centrais sindicais ou se elas, por razões estratégicas, assumiram que há interesses comuns entre trabalho e capital e que uma parceria com a burguesia teria o condão de levar ao crescimento econômico.

O livro é crítico aos anos Lula, no sentido de que sua ascensão não resultou no fortalecimento das classes que combatiam o neoliberalismo. Apesar do modelo econômico, os trabalhadores terceirizados, por exemplo, conseguiram se organizar e participar da luta sindical. O mesmo teria ocorrido com os movimentos dos sem-teto, mas estes correm o risco de se enfraquecer ao participarem marginalmente do processo de decisão política que lhes foi oferecido nos anos 2000. Menos sorte tiveram os desempregados, que continuam abandonados pelo sindicalismo brasileiro, o mesmo que pode ter sido cooptado e se recusa a organizar essa fração de classe para a luta, segundo sublinha outro artigo. Leitura recomendada para marxistas e não marxistas.

Eduardo Nunomura é jornalista e doutorando em ciências da comunicação da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP.

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