Léo RamosDepois de verificar que durante a divisão celular a proteína alfa-tubulina é alterada pela enzima proteína quinase C, a biomédica Deborah Schechtman, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), queria detalhar como isso acontece. Faltava encontrar o ponto em que as duas moléculas se encaixam como as peças de um quebra-cabeça. Embora as proteínas existam nas células em complexos novelos, é na sua composição linear que se costuma procurar o encaixe com as quinases. É como se fosse um fio de contas, em que cada cor representaria um aminoácido diferente. Sem encontrar sinais do encaixe, Deborah teve uma inspiração: telefonou para o biólogo Paulo Oliveira, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), e pediu que ele verificasse a estrutura tridimensional. Não demorou para que o especialista em modelagem molecular telefonasse com a notícia: havia encontrado.
“Quando a proteína se enovela, o que estava distante na estrutura linear pode ficar próximo”, explica Deborah, que classifica o achado, publicado em novembro de 2014 na revista Science Signaling, como uma quebra de paradigma. O editor descreve o processo como semelhante ao origami, em que as dobraduras no papel criam a estrutura que pode ser reconhecida. É uma mudança importante para pesquisadores da área, que usam programas de bioinformática para comparar bancos de proteínas representadas por suas estruturas lineares – o tal fio de contas coloridas – para encontrar pontos de correspondência essenciais ao reconhecimento entre proteínas ou com outras substâncias. Esse método é eficaz para encontrar uma enorme diversidade de sítios de interação, mas os grupos liderados por Deborah e Oliveira estudaram modelos de cerca de mil proteínas e mostraram que encaixes estruturais também são comuns. “Precisamos agora desenvolver ferramentas de bioinformática para prever ligações tridimensionais”, conclui a pesquisadora.
Não é novidade que a estrutura tridimensional das proteínas seja essencial em sua função, mas esse fundamento não costuma ser levado em conta em estudos sobre interações entre quinases e seus substratos, em que estímulos que vêm de fora da célula provocam algum acontecimento dentro dela. No caso estudado pela pesquisadora da USP, ao acionar algum receptor na membrana, o estímulo desencadeia uma série de reações que ativam a enzima proteína quinase C. A enzima em seguida se desloca para a região da célula onde deve atuar e encontra a alfa-tubulina, para a qual transfere um grupo fosfato (processo conhecido como fosforilação). É esse encontro que depende do reconhecimento tridimensional. “Demonstramos que as quinases leem braile”, brinca Deborah, numa alusão ao reconhecimento pelo tato, e não pela leitura das letras que simbolizam os aminoácidos na sequência linear.
Ela imagina ver o impacto da descoberta em alguns anos, computado o ritmo das publicações científicas, mas já teve uma amostra na velocidade que apenas as redes sociais permitem. No dia seguinte à publicação do artigo, o português Pedro Beltrão, pesquisador do Instituto Europeu de Bioinformática, na Inglaterra, o divulgou em sua conta no Twitter – a rede social mais usada para esse fim (ver Pesquisa FAPESP nº 221). “A especificidade das interações domínio-peptídeo já era um problema difícil. Agora precisamos pensar em motivos ‘lineares’ 3D”, escreveu, suscitando interesse de colegas de vários países numa breve discussão. A conversa revela que a mudança não se restringe ao desafio de se pensar em três dimensões, mas também amplia o local nas proteínas onde se deve buscar esses pontos de encaixe. “Acreditava-se que as fosforilações fossem mais frequentes em áreas pouco estruturadas”, explica Deborah. Não foi o que ela e seus colegas viram.
O bom relacionamento entre quinases e proteínas é crucial na saúde humana. A atividade desregulada pode estar por trás do desenvolvimento de câncer, de processos inflamatórios e de problemas cardiovasculares, entre outras doenças. “Os moduladores de quinases representam 25% dos esforços da indústria farmacêutica”, conta Deborah. Ela acredita que entender como essas enzimas interagem com as proteínas pode contribuir para o desenho de moduladores mais específicos do que os atuais.
“Se fizermos pesquisa básica boa, algum dia ela terá aplicação”, afirma a pesquisadora da USP, defendendo o amplo financiamento de investigação não direcionada a questões práticas. Ela também ressalta a importância da multidisciplinaridade de grupos de pesquisa e dos próprios pesquisadores. “Só dei atenção à estrutura tridimensional porque vim da bioquímica antes de chegar à biologia celular.” A parceria com Paulo Oliveira surgiu quando ambos dividiam uma sala no Instituto do Coração da USP (InCor) e deu origem ao trabalho que envolve estudantes de ambos – neste caso sobretudo as doutorandas Mariana Duarte e Darlene Pena e o mestrando Felipe Ferraz –, reunindo conhecimentos em bioquímica, biologia celular e modelagem de proteínas.
A importância da manutenção precisa da estrutura tridimensional das proteínas também foi mostrada recentemente pelo grupo liderado pelo químico Peter Wolynes e pelo físico brasileiro José Onuchic na Universidade Rice, nos Estados Unidos. Em artigo publicado em agosto de 2014 na revista PNAS, eles detectaram em oito famílias de proteínas indicações de que a seleção natural exerce uma forte pressão no sentido de manter a integridade estrutural das moléculas dobradas. Eles observaram que quando uma mutação altera um aminoácido numa parte da proteína que interage com outra, esta segunda também sofre uma alteração de maneira a preservar a estrutura. Isso acontece mesmo quando se trata de trechos que estão distantes na estrutura linear da proteína. O trabalho reforça, do ponto de vista evolutivo, o papel da estrutura tridimensional no funcionamento de proteínas.
Projetos
1. PKC e vias de sinalização da autorrenovação e diferenciação de células-tronco embrionárias murinas (nº 2010/18640-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Deborah Schechtman (USP); Investimento R$ 412.740,16 (FAPESP).
2. Desenho racional de peptídeos inibidores específicos para proteínas cinase C: uma abordagem computacional e validação experimental (nº 2008/52695-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paulo Sergio Lopes de Oliveira (LNBio); Investimento R$ 90.016,12 (FAPESP).
Artigos científicos
DUARTE, M. L. et al. Protein folding creates structure-based, noncontiguous consensus phosphorylation motifs recognized by kinases. Science Signaling. v. 7, n. 350, ra105. 4 nov. 2014.
MORCOS, F. et al. Coevolutionary information, protein folding landscapes, and the thermodynamics of natural selection. PNAS. v. 111, n. 34, p. 12408-13. 26 ago. 2014.