Um artigo publicado na revista Dados sugere que desigualdades de gênero têm efeitos mais complexos na carreira acadêmica no Brasil do que a literatura sobre o assunto costuma contemplar. Assinado pela socióloga Marília Moschkovich e por sua orientadora, a professora Ana Maria Fonseca de Almeida, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o trabalho analisou dados sobre a trajetória de professores e professoras da Unicamp e fez alguns achados surpreendentes. Um deles é que o fato de as mulheres serem maioria em determinadas áreas do conhecimento não necessariamente as ajuda a alcançar o topo. O estudo analisou as chances de homens e mulheres chegarem ao nível mais alto da carreira docente da Unicamp em cada uma das 27 unidades da instituição. Constatou-se que professores do sexo feminino têm menos chance que os do sexo masculino de alcançar o topo nos cursos de Linguística, Educação e Medicina, nos quais as mulheres são maioria no corpo docente. Ao mesmo tempo, professoras têm possibilidade maior de chegar ao cume nos cursos de Engenharia Mecânica e Agrícola, nos quais, paradoxalmente, elas são franca minoria.
“Os padrões de desigualdade variaram nas diferentes disciplinas, sugerindo que outros fatores também podem ter influência sobre a carreira dos docentes segundo seu gênero”, diz Marília Moschkovich. A próxima fase da pesquisa, que se debruçará sobre os dados de mais três universidades públicas, ainda não definidas, vai comparar outros aspectos da carreira, como o padrão de publicação e a relação da área com o mercado de trabalho não acadêmico, por exemplo, para verificar se isso influencia a trajetória docente de modo peculiar em cada disciplina. “A carreira acadêmica talvez não desempenhe o mesmo ‘papel’ no mercado de trabalho em geral de cada área. Há estudos documentando como o mercado de trabalho corporativo para engenheiros, que têm salários maiores do que a carreira acadêmica na área, por exemplo, impõe diversas barreiras às mulheres. É possível que as mulheres que têm um bom desempenho na graduação em algumas engenharias se direcionem à carreira acadêmica enquanto homens na mesma condição se direcionem para o mercado de trabalho corporativo, mais aberto a eles. Isso poderia, ao menos em tese, contribuir para que o ambiente de trabalho acadêmico tenha certo ‘clima’. Com essa primeira etapa da pesquisa verificamos, porém, que a carreira acadêmica não é necessariamente menos competitiva ou mais amigável às mulheres”, diz Ana Maria F. Almeida, que também é coordenadora-adjunta de Ciências Sociais e Humanas da FAPESP. “Como isso se observa em certas áreas mas não em outras, há necessidade de estudos específicos mais aprofundados.”
Outra dimensão que será investigada é o efeito da origem social dos pesquisadores na velocidade da ascensão na carreira. Segundo as autoras, é razoável supor que um docente oriundo de um ambiente próximo do ambiente universitário – filho de professores do ensino superior, por exemplo – esteja mais familiarizado com as regras do universo acadêmico e consiga se afirmar mais rapidamente entre seus pares do que outro com pouca experiência com o mundo acadêmico, que custaria um pouco mais a compreender o que é preciso fazer para se impor e galgar etapas da carreira. “Essa competência para lidar com a carreira pode ser adquirida durante a pós-graduação ou até antes, na própria graduação, mas os códigos necessários para compreender as exigências da carreira nem sempre são disponibilizados para todos, o que pode ter influência na ascensão na carreira”, diz Ana Maria F. Almeida. As pesquisadoras pretendem acompanhar jovens professoras e professores para avaliar os desafios que enfrentam no início da carreira e ver se a situação mudou em relação à dos mais velhos. “A ideia é compreender o que elas e eles precisam fazer para se inserir e ganhar respeito”, diz Moschkovich.
A busca de igualdade de gênero no ambiente acadêmico, além de sua relevância no contexto dos direitos civis, é importante para dinamizar a universidade. “Garantir o acesso de pesquisadores e docentes com origem e experiências diferentes ajuda cada disciplina a diversificar seus problemas e objetos de pesquisa, suas abordagens e modos de trabalho”, diz Ana Maria F. Almeida. Mulheres são maioria entre os novos doutores (51,5% entre os titulados no Brasil em 2008) e também entre os docentes do ensino superior (55%), de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep). Nas universidades públicas brasileiras, a proporção é menor, com 45% de mulheres entre os docentes. Na Unicamp, elas são 35%.
“Há quem diga que essas diferenças são assim mesmo, que resultam da forma tardia com que as mulheres ingressaram na carreira acadêmica e que a realidade está mudando para as gerações mais novas, mas a verdade é que não se trata de um problema apenas geracional”, pondera Elizabeth Balbachevsky, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e uma estudiosa da profissão acadêmica. “Existem entraves importantes para a inserção e a ascensão da mulher na carreira acadêmica e há evidências de que esses entraves estão piorando à medida que a carreira fica mais competitiva”, afirma.
As autoras escolheram o universo de docentes da Unicamp porque vislumbraram nesse recorte – o de uma universidade pública brasileira – potencial para contribuir com o debate internacional sobre a relação entre gênero e carreira científica. Ocorre que, nesse contexto, é possível controlar variáveis que estão no centro da discussão de políticas para promover a igualdade em universidades de outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, há um debate em torno da ampliação para as mulheres do período probatório, de forte dedicação ao trabalho, ao final do qual os pesquisadores são avaliados para só aí gozar de estabilidade. Avalia-se que elas são prejudicadas em relação aos homens por estarem em idade reprodutiva e serem responsáveis por cuidar dos filhos. Na universidade pública brasileira, é possível controlar o impacto da estabilidade para as mulheres, pois elas a conquistam imediatamente após a admissão por concurso, assim como os homens.
Em outros países, como os da Europa e a Austrália, discute-se como garantir salários equânimes para homens e mulheres num ambiente em que as pesquisadoras têm dificuldade em negociar promoções e remuneração de forma tão eficiente quanto os homens, sofrendo desvantagens. Na universidade pública do Brasil é possível analisar o que acontece num ambiente em que essa variável praticamente não tem peso, pois os salários de homens e mulheres em posições iguais da carreira são idênticos e definidos por lei, e as regras de promoção são aplicadas a todos igualmente, sendo definidas em colegiados compostos pelos próprios docentes. Por fim, observam as autoras, a desigualdade econômica na sociedade brasileira permite às docentes contar com empregadas domésticas para ajudar em tarefas socialmente atribuídas às mulheres, como os cuidados com os filhos e com a casa, algo que não se vê tanto em países desenvolvidos. “Trata-se de uma carreira que pode, pelo menos hipoteticamente, oferecer condições mais favoráveis para superar a desvantagem feminina em relação a outros contextos”, diz Moschkovich.
A pesquisa debruçou-se sobre três perguntas específicas. A primeira avaliou as chances dos docentes de cada sexo chegarem ao posto mais alto da carreira e a cargos de gestão na Unicamp. A segunda foi a velocidade com que os docentes de cada sexo chegam ao topo. E a terceira foi se tanto as chances de ascensão quanto a velocidade com que isso acontece variam de acordo com a proporção de mulheres em cada faculdade ou instituto, já que em algumas áreas, como Dança e Letras, as mulheres são maioria esmagadora e em outras, como Engenharia Elétrica, elas mal chegam a 10% dos docentes (ver quadro).
A principal constatação é que as mulheres sofrem desvantagem. Nos três níveis da carreira, a proporção de mulheres é inferior à de homens, mas a desvantagem é superior no nível mais alto, o MS6, com 73,8% de homens para 26,2% de mulheres. Já em relação às chances de alçar a cargos administrativos, os homens estão em vantagem quando os cargos são de direção da unidade e coordenação de pós-graduação, enquanto as mulheres têm mais possibilidades de se tornarem coordenadoras de graduação. Nunca uma mulher assumiu a reitoria da Unicamp. “Isso mostra o quanto as professoras têm mais dificuldade de ocupar cargos que acumulam maior poder universitário”, afirma Ana Maria F. Almeida. Um desenvolvimento recente envolveu as cinco pró-reitorias: três delas são ocupadas hoje por docentes do sexo feminino.
Para calcular a velocidade de ascensão, as autoras utilizaram como referência o ano mais recente em que docentes no nível mais alto da carreira defenderam o doutorado – e partiram do pressuposto de que todos os outros docentes titulados naquele ano ou antes teriam hipoteticamente chance de atingir o topo. A quantidade de docentes estudados em cada unidade variou, chegando a 79% em Engenharia Agrícola e mais de 50% em dois terços das 27 unidades. O dado mais surpreendente surgiu na avaliação das chances de ascensão na carreira. A proporção dos docentes que alcançaram o nível mais alto, entre os considerados com condição de chegar lá, foi semelhante para homens (55,1%) e mulheres (54,1%) para o conjunto da universidade. Mas oscilou entre as áreas – e nem sempre isso estava relacionado à presença maior ou menor de mulheres. Docentes do sexo feminino chegam ao nível mais alto com mais rapidez que os do masculino em sete unidades, na mesma velocidade em duas e em 14 os homens chegam ao topo mais rápido.
Para Marília Pinto de Carvalho, professora da Faculdade de Educação da USP que estuda diferenças de desempenho entre meninos e meninas no ensino fundamental, um dos méritos do artigo é mostrar com clareza que a presença de mais mulheres numa carreira não tem relação direta com possibilidades de ascensão. “Em alguns casos, ocorre o contrário. O tipo de dado levantado não permite se aprofundar nas razões, mas mostra um quadro desafiador”, diz. O fato de o estudo restringir-se a uma universidade, diz Marília, é mais um mérito do que uma fraqueza. “Se elas buscassem dados mais genéricos, talvez não conseguissem captar esses fenômenos.”
Elizabeth Balbachevsky diz que a originalidade do trabalho está em mostrar como as culturas de diferentes disciplinas incidem tanto sobre a incorporação das mulheres no mundo acadêmico quanto na perspectiva de carreira. “Há uma tendência de afirmar que as ciências duras são difíceis para as mulheres e as humanidades, mais amigáveis. Os dados mostram que não funciona bem assim”, afirma. “Um dado relevante do trabalho é que ele mostra o nível de competição na carreira acadêmica no Brasil. A competição existe, é notável numa universidade de pesquisa e pode variar de acordo com o perfil da área disciplinar”, afirma.
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