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Saúde

Esperança contra o zika

Em testes iniciais, formulações imunizantes e medicamentos contra outras enfermidades protegeram células e camundongos do vírus

Invasão em curso: exemplares do vírus zika (rosa) interagem com receptores (verde) de uma célula

David Goodwill / wikipedia Invasão em curso: exemplares do vírus zika (rosa) interagem com receptores (verde) de uma célulaDavid Goodwill / wikipedia

Depois que pesquisadores da Bahia confirmaram a presença do zika no Nordeste há um ano, o vírus avançou para quase todo o país. Pegos de surpresa, os pesquisadores e autoridades de saúde tiveram de se mobilizar e direcionar esforços para conhecer o vírus e buscar formas de detê-lo. Os primeiros resultados começam a aparecer e são promissores.

Ao longo de junho, vieram a público resultados de estudos importantes que ajudam a compreender as reações que o vírus desperta no sistema de defesa em uma situação de especial interesse para a população brasileira: os casos em que o zika infecta pessoas que já entraram em contato com alguma das quatro variedades do vírus da dengue (90% das pessoas já tiveram dengue em certas áreas do Nordeste). Publicado na revista Nature Immunology por pesquisadores da Inglaterra, da França, da Polinésia e da Tailândia, esse trabalho confirma que os anticorpos que protegem da dengue também atuam contra o vírus zika – é o que os imunologistas chamam de reação cruzada –, mas não são capazes de neutralizá-lo completamente. O que se verificou para o zika em relação aos anticorpos contra a dengue também pode ocorrer com a dengue em relação aos anticorpos antizika.

Essa imunização parcial, sugerem os pesquisadores, poderia ocorrer porque os anticorpos produzidos contra um vírus não existiriam em número suficiente ou não seriam eficientes o bastante contra o outro vírus. O mais complicado é que, segundo uma hipótese chamada incremento dependente de anticorpos (ADE, em inglês), a imunização incompleta parece facilitar a entrada do vírus nas células em que ele se reproduz, aumentando, assim, o número de cópias no organismo e a gravidade da infecção. Esses dados, corroborados dias mais tarde por outro trabalho apresentado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), podem ajudar a explicar a gravidade dos casos de zika no Brasil e influenciar o desenvolvimento de vacinas, já que vacinar uma população contra apenas uma das enfermidades poderia levar a casos mais graves da outra.

Também há notícias animadoras. No final do mês surgiram indícios de que é possível conter o vírus por meio de medicamentos em uso há bastante tempo ou até mesmo por meio de uma vacina, o que seria mais desejável do ponto de vista da saúde pública, por seu caráter preventivo. O neurologista Arnold Kriegstein e sua equipe na Universidade da Califórnia em São Francisco investigaram como o zika penetra em células da placenta e do tecido cerebral e observaram que a azitromicina, um antibiótico produzido no início dos anos 1980 e amplamente usado contra uma série de infecções, inclusive por gestantes, impediu a proliferação do vírus e evitou danos celulares nos testes em laboratório. Esses dados se somam ao do trabalho coordenado pelo virologista Amílcar Tanuri na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tanuri e sua equipe já haviam observado que um dos compostos mais usados para combater a malária, a cloroquina, descoberta em 1934, também era capaz de conter o zika em experimentos feitos com células.

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Na última semana de junho pesquisadores do Brasil e dos Estados Unidos deram o primeiro passo efetivo para demonstrar que é possível produzir uma vacina contra o zika, ainda que seu desenvolvimento demore algum tempo. No Centro de Virologia e Pesquisa em Vacina (CVVR) da Escola Médica Harvard, nos Estados Unidos, duas formulações candidatas a vacina passaram com sucesso pelos primeiros testes com animais de laboratório. Cada uma delas, aplicada em dose única, protegeu os camundongos da infecção por zika, relataram os pesquisadores em artigo publicado em 28 de junho na revista Nature. Nos experimentos com roedores, os dois candidatos a vacina se mostram efetivos tanto contra a variedade do vírus em circulação no Brasil como contra a linhagem encontrada em Porto Rico, no Caribe.

“Mostramos que é possível produzir uma vacina antizika”, conta o imunologista brasileiro Rafael Larocca, primeiro autor, ao lado do colega Peter Abbink, do estudo desenvolvido no CVVR. “Os resultados são fortes e convincentes, mas temos de ser cautelosos e aguardar a realização de mais testes com animais e dos ensaios com seres humanos”, pondera. “Até onde se sabe, essa é a primeira demonstração em modelo animal de proteção contra o zika por meio de vacina”, afirma o médico norte-americano Dan Barouch, coordenador do laboratório em que Larocca trabalha e diretor do CVVR.

Nos experimentos, os pesquisadores trabalharam com duas classes de vacina. Uma delas é uma formulação contendo cópias do vírus quimicamente inativadas. Ela foi desenvolvida pelo Instituto de Pesquisa Walter Reed, do Exército norte-americano, que usou o zika circulante em Porto Rico. No CVVR, Larocca e Abbink adotaram outra estratégia. Eles analisaram o genoma do vírus e produziram uma cópia sintética do trecho contendo a sequência do complexo proteico que recobre externamente o zika: a proteína pré-membrana (prM) e a proteína do envelope (E), a partir das quais as células de defesa identificam o vírus. No primeiro contato do vírus com o organismo, um tipo especial de célula de defesa – as células apresentadoras de antígenos – detecta essas proteínas, as processa e exibe partes delas para os linfócitos B, produtores dos anticorpos que neutralizam o vírus quando o organismo volta a ser exposto a ele.

Os pesquisadores transferiram esse gene sintético para bactérias e deixaram que elas atuassem como máquinas copiadoras, produzindo um número elevado de réplicas usadas depois para imunizar os camundongos – essas cópias são o que os pesquisadores chamam de vacina de DNA. “Criamos seis formulações da vacina de DNA, mas apenas uma, aquela em que expressou o complexo proteico completo, funcionou”, conta Larocca, que fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com apoio da FAPESP. Ele foi orientado, respectivamente, pelos imunologistas Luis Vicente Rizzo e Niels Olsen Saraiva Câmara e desde 2012 trabalha no CVVR.

Cópias do zika (vermelho) isoladas de criança do Ceará

National Institute of Allergy and Infectious Diseases, National Institutes of Health Cópias do zika (vermelho) isoladas de criança do CearáNational Institute of Allergy and Infectious Diseases, National Institutes of Health

Larocca e seus colaboradores usaram separadamente as duas formulações para imunizar os camundongos e, dias depois, injetaram nos animais o zika brasileiro ou o zika porto-riquenho para verificar se as vacinas ofereciam proteção. Nenhum roedor imunizado desenvolveu sinais de infecção nem apresentou quantidades detectáveis de vírus no sangue, enquanto o zika se proliferou em abundância nos camundongos não vacinados.

Mecanismo de ação
Uma bateria de testes posterior ajudou a identificar o que parece ser a principal forma de proteção contra o zika. Larocca e Abbink coletaram amostras de sangue dos animais vacinados, extraíram os anticorpos específicos contra o vírus e transferiram apenas esses anticorpos para camundongos que não haviam sido imunizados. Ao injetar o zika do Brasil ou o de Porto Rico nesses animais, os pesquisadores verificaram que os roedores não foram infectados.

“Esse experimento mostra que os anticorpos produzidos contra o vírus são suficientes para proteger da infecção”, explica o neuroimunologista Jean Pierre Peron, da USP, que, ao lado do virologista Paolo Zanotto, é coautor do estudo da Nature e integrante da Rede Zika, o consórcio de pesquisadores de São Paulo que investigam o vírus com apoio da FAPESP. “Isso não elimina a possibilidade de que uma formulação capaz de produzir imunidade funcione também por outra via, estimulando células de defesa, chamadas linfócitos T, a produzirem compostos que dificultem a replicação do vírus.” Experimentos feitos por outras equipes já sugeriram que a produção de uma molécula sinalizadora chamada interferon dificulta a multiplicação do zika.

“Tínhamos alguma indicação de que uma vacina poderia produzir imunidade contra o zika”, diz o biólogo Paulo Lee Ho, diretor da Divisão de Desenvolvimento Tecnológico e Produção do Instituto Butantan, que trabalha, com financiamento do governo norte-americano, no desenvolvimento de um candidato a imunizante contra zika usando o vírus inativado. Na USP de Ribeirão Preto, o imunologista Benedito Fonseca e sua equipe já haviam realizado uma versão mais simples do experimento. Eles extraíram o soro de roedores imunizados com vírus inativado e adicionaram a células cultivadas em laboratório. Os resultados dos testes ainda não foram publicados, mas indicam que o zika não conseguiu infectar as células tratadas com soro. “O estudo da Nature é importante porque mostra que não é necessária uma resposta imunológica tão complexa para proteger contra o vírus e nos dá dicas de como superar algumas barreiras que estávamos encontrando para inativá-lo”, diz Ho.

Meio de cultura em que exemplares do vírus se multiplicam em células de macaco

léo ramosMeio de cultura em que exemplares do vírus se multiplicam em células de macacoléo ramos

“Esse trabalho é relevante e mostra que o desenvolvimento de uma vacina contra zika é tecnicamente viável”, afirma o veterinário Marcos da Silva Freire, vice-diretor de Desenvolvimento Tecnológico do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “Mas, como os próprios autores mencionam, é difícil extrapolar os resultados dos testes com camundongos para uma potencial eficácia clínica em humanos.”

Freire também trabalha no desenvolvimento de uma vacina e aposta em duas abordagens: uma com vírus inativado e outra com vírus vivo recombinante que usa o vírus da febre amarela para expressar as proteínas do zika. Ambos devem começar a ser testados em animais em setembro. Ele lembra que ainda há muitas dúvidas a serem respondidas antes que se consiga chegar a uma vacina segura e eficaz e que não é desejável criar uma falsa percepção de proteção, principalmente entre as mulheres em idade reprodutiva. “Ainda não sabemos se as formulações testadas no estudo da Nature seriam seguras para serem aplicadas em adultos e crianças, principalmente em mulheres em idade fértil e grávidas, nem qual o tempo de proteção que oferecem ou se há necessidade de doses de reforço”, diz Freire. “Essas questões só serão verificadas nos estudos clínicos.”

Outra questão em aberto, reforçada por causa da reação cruzada entre anticorpos contra dengue e anticorpos contra zika, é se o desenvolvimento de uma vacina contra apenas uma das enfermidades não agravaria a outra. “Será que uma vacina contra zika não aumentaria o número de casos de dengue e a gravidade deles e vice-versa?”, pergunta Ho, do Butantan. Talvez, completa o pesquisador, a saída seja uma vacina pentavalente, que proteja contra os quatro sorotipos do vírus da dengue e contra o zika, como a que o Butantan tenta desenvolver em colaboração com os Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.

A busca por uma vacina contra o zika tornou-se prioridade mundial de saúde após surgirem evidências de que o vírus infecta o feto de gestantes e causa microcefalia. De outubro de 2015 a 18 de junho, o Ministério da Saúde registrou no Brasil 8.039 casos suspeitos de microcefalia, dos quais 1.616 foram confirmados (233 com resultado positivo para infecção por zika). Enquanto os grupos brasileiros trabalham para obter formulações diferentes e desenvolver, em escala industrial, estratégias de produção de vacina seguras para o uso em humanos, os experimentos seguem em Harvard.

Larocca e seus colegas já usaram as duas formulações para imunizar macacos e aguardam os resultados para os próximos meses. Em parceria com o grupo de Jean Pierre Peron, da USP, eles devem começar em breve os testes de imunização de fêmeas de camundongo prenhes, a fim de verificar se as formulações realmente protegem contra a microcefalia. “Nossos resultados nos deixam otimistas de que o desenvolvimento de uma vacina segura e eficaz para seres humanos contra o vírus zika provavelmente será bem-sucedida”, conta Dan Barouch, da CVVR. “Os ensaios clínicos devem começar o mais rápido possível.”

Projetos
1. O papel do eixo triptofano-kinureninas na regulação da resposta imune através de receptores de glutamato tipo NMDA na encefalomielite experimental autoimune e na lesão por isquemia e reperfusão cerebral (nº 2011/18703-2); Modalidade Programa Jovens Pesquisadores; Pesquisador responsável Jean Pierre Schatzmann Peron (ICB-USP); Investimento R$ 1.077.384,82.
2. Abordagem sistêmica no estudo da permissividade do Anticarsia gemmatalis múltiplo nucleopoliedrovírus (AgMNPV) (nº 2014/17766-9); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Paolo Marinho Zanotto (ICB-USP); Investimento R$ 500.009,45.

Artigos científicos
LAROCCA, R. A. et alVaccine protection against Zika virus from BrazilNature. 28 jun. 2016.
DEJNIRATTISAI, W. et al. Dengue virus sero-cross-reactivity drives antibody-dependent enhancement of infection with zika virus. Nature Immunology. 23 jun. 2016.

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