Uma levedura da espécie Pichia pastoris alterada com o acréscimo de quatro genes, em meio de cultura com ácido cafeico, pode produzir luz de maneira contínua sem contar com ajuda externa. É o que fez o grupo do químico russo Ilia Yampolsky, do Instituto de Química Bio-orgânica, em Moscou, em trabalho desenvolvido em parceria com o químico brasileiro Cassius Stevani, da Universidade de São Paulo (USP), publicado na revista PNAS no dia 26 de novembro.
É um feito biotecnológico que pode ter uma série de aplicações, desde funcionar como repórter intracelular para monitoramento de células, diagnósticos e outras funções biomédicas – como já é usada a proteína fluorescente verde (GFP), oriunda de uma água-viva e que rendeu aos seus inventores o Prêmio Nobel de Química em 2008 – até contribuir para a produção de etanol. “Seria possível usar uma levedura otimizada para fazer a fermentação”, explica Stevani. Por meio do brilho, é fácil verificar se a levedura inoculada continua presente no processo.
Os pesquisadores também conseguiram inserir o mecanismo de bioluminescência em células cancerígenas humanas, em camundongos portadores de tumores e em embriões de rã, permitindo vários usos biomédicos. “Descobrimos em fungos os componentes necessários para criar um módulo genético de bioluminescência”, disse Alexey Kotlobay, do grupo de Yampolsky e primeiro autor do artigo, em declaração divulgada à imprensa. “Ao transferi-lo de um genoma a outro, podemos tornar bioluminescente praticamente qualquer organismo, um objetivo até agora inatingível para pesquisadores.” O químico Etelvino Bechara, da USP, pioneiro em estudos da bioluminescência no Brasil, que não participou do estudo, destaca a autossuficiência do modelo. “O produto final da reação é reciclado para a produção de combustível para o próprio sistema.”
O que está por trás do potencial tecnológico também é importante: a comprovação de que está elucidado o processo pelo qual cogumelos produzem um brilho verde. A espécie principal de fungo estudada pelo grupo russo é Neonothopanus nambi, originária do Vietnã (ver Pesquisa FAPESP nº 255). Em busca de elucidar a sequência de substâncias (e de genes) envolvidas na bioluminescência de fungos, o grupo de Stevani vinha apostando corrida com os pesquisadores de Moscou. “Eu tinha apenas um estudante, o Hans Waldenmaier; eles tinham um batalhão”, brinca o químico. A combinação era de que o primeiro grupo a conseguir avisaria o outro, e em seguida ambos continuariam juntos. Os russos chegaram antes, e os brasileiros contribuíram com o sequenciamento do genoma e do transcriptoma de outras espécies de fungos, para comparação: Neonothopanus gardneri, Panellus stipticus (bioluminescente e não bioluminescente) e Lentinula edodes (shiitake, que não emite brilho).
A comparação genética mostrou que o sistema vale para todos: a partir do ácido cafeico, uma substância que muitas plantas produzem, surge a hispidina, que depois dá origem à luciferina, molécula responsável pela produção de luz. A oxiluciferina, produto da última etapa, é então reciclada pela quarta enzima. Quatro enzimas executam esse processo, daí a necessidade de inserir os quatro genes com as instruções de sua construção para tornar qualquer planta bioluminescente. Como as reações conseguem uma reciclagem constante dos componentes, o sistema se tornaria sustentável uma vez implementado. “Deixa de ser necessário fornecer o substrato”, diz Stevani.
O detalhamento do sistema aproxima os pesquisadores do sonho de produzir aleias de árvores luminosas como iluminação urbana. Yampolsky é sócio da empresa Planta, que se apresenta de forma decidida (e apressada) em seu site: “Estamos criando plantas luminosas em Moscou, Rússia”. Waldenmaier, bioquímico norte-americano que depois de terminar o doutorado sob orientação de Stevani voltou para os Estados Unidos e fundou uma startup de biotecnologia em plantas, Ocsnah Botanical Robotics, também tem interesse em licenciar a ideia de Yampolsky para produção em larga escala.
O professor da USP pretende continuar a explorar a riqueza brasileira de cogumelos bioluminescentes em busca de melhorias no sistema e de ampliar o conhecimento sobre como funciona. Um dos gêneros promissores é Mycena. “No Brasil temos a maior diversidade de espécies bioluminescentes, tenho vários no meu armário.” Em parceria com Bechara e o químico Anderson Garbuglio de Oliveira, do Instituto Oceanográfico da USP, ele pretende ampliar as fronteiras do conhecimento sobre bioluminescência. “O que estamos fazendo é substrato para o trabalho de grupos internacionais”, afirma Bechara.
Projeto
Bioluminescência em fungos: levantamento de espécies, estudo mecanístico & ensaios toxicológicos (nº 13/16885-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Cassius Vinicius Stevani (USP); Investimento R$ 457.637,00.
Artigo científico
KOTLOBAY, A. A. et al. Genetically encodable bioluminescent system from fungi. PNAS. on-line. 26 nov. 2018.