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O futuro da web

Ao completar 30 anos, a tecnologia que transformou o mundo moderno enfrenta desafios para continuar sendo um território livre, democrático e plural

Bárbara Malagoli

A web tornou-se balzaquiana. Em março deste ano, a World Wide Web, ou simplesmente www, completou três décadas de existência. Sua invenção mudou a cara da internet, massificou seu uso e provocou profundas transformações na maneira pela qual as pessoas se relacionam e os negócios acontecem. A ideia brotou da cabeça do físico britânico Tim Berners-Lee, quando tinha 33 anos e era pesquisador da Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear (Cern), na Suíça. Naquela época, a internet, uma rede conectada de computadores localizados em diferentes lugares, já operava havia duas décadas, mas de forma bem diferente. Com recursos restritos, era usada principalmente para troca de informações entre pesquisadores da área acadêmica. Não existiam sites, redes sociais nem ferramentas de busca.

“A www permitiu a fácil interconexão de dados distribuídos ao redor do globo e transformou-se em um componente fundamental da internet moderna”, afirma o cientista da computação Fabio Kon, professor do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e editor-chefe do Journal of Internet Services and Applications. A ferramenta idealizada pelo cientista britânico, segundo Kon, foi decisiva para a popularização da internet, que tem hoje 4,4 bilhões de usuários, quase 60% da população global. “A rede trouxe muitas coisas boas e praticamente não conseguimos mais viver sem as comodidades que ela nos proporciona”, opina. “Mas, por outro lado, ela amplifica alguns fenômenos negativos e indesejados que já existiam na sociedade.”

Entrevista: Fabio Kon
     

A ideia que originou a web, destaca o cientista da computação Roberto Marcondes César Júnior, do grupo Ciência de Dados do IME-USP, tem uma gênese interessante que revela a importância da pesquisa básica para consolidação de grandes projetos científicos. “Ao ler a sugestão de Berners-Lee para criação de um sistema de compartilhamento de dados de pesquisa, seu superior imediato no Cern, Mike Sendal, destacou no documento que a proposta era ‘vaga, mas estimulante’”, conta Marcondes. “Para ele, a ideia ainda não estava muito clara, e foi preciso mais alguns anos de pesquisa em laboratório para que o www se concretizasse e se transformasse na ferramenta que viria a revolucionar o mundo.”

Outro aspecto apontado pelo pesquisador é a importância da web para o avanço das pesquisas em inteligência artificial (IA). “Alguns dos algoritmos de IA existentes hoje têm raiz em estudos iniciados muitos anos atrás. A criação da World Wide Web disponibilizou na rede uma grande quantidade de informações, permitindo que os algoritmos trabalhassem numa escala de dados muito superior, processo essencial para o refinamento deles. Sem a invenção de Berners-Lee, talvez estivéssemos bem atrasados em relação à revolução de IA”, destaca Marcondes.

Nas comemorações dos 30 anos da web, Berners-Lee expressou preocupação com os rumos que a internet está tomando e fez um apelo para o estabelecimento de uma nova ética para lidar com os problemas surgidos a partir dela. Em entrevista à rede britânica BBC, ele externou o temor de que ela caminhe para um futuro disfuncional. De acordo com o cientista, o escândalo envolvendo a consultoria Cambridge Analytica, do Reino Unido, acusada de usar dados privados de 87 milhões de usuários do Facebook para finalidades políticas durante a campanha presidencial dos Estados Unidos em 2016, revelou quão frágil é a privacidade dos usuários na rede mundial de computadores.

Em carta aberta divulgada em 12 de março passado, dia da efeméride, Berners-Lee listou três áreas específicas de disfunção que, para ele, estão prejudicando a web: intenções maliciosas, como hacking e assédio on-line; projetos duvidosos, entre eles modelos de negócios que recompensem cliques; e consequências negativas não intencionais da rede, com destaque para discussões agressivas e polarizadas. Para combater esses desvirtuamentos, o físico britânico lançou o projeto Contract for the web, um conjunto de princípios com o objetivo de fortalecer a liberdade e a abertura da internet.

Contrato para a web
Os princípios que todos devem seguir para recolocar a internet nos eixos

Governos
• Garantir que todo mundo possa se conectar à rede e participar ativamente dela
• Manter a internet disponível, o tempo todo, com acesso integral aos internautas
• Respeitar o direito fundamental dos indivíduos à privacidade

Empresas
• Tornar a internet acessível a todos, garantindo que ninguém seja excluído
• Respeitar a privacidade e os dados pessoais dos consumidores
• Desenvolver tecnologias que deem vazão ao melhor da humanidade

Cidadãos
• Ser criadores e colaboradores na web para que seu conteúdo seja rico e relevante
• Construir comunidades que façam um debate civilizado e respeitem a dignidade humana
• Lutar pela web para que ela permaneça uma plataforma aberta e pública para pessoas em todos os lugares do mundo, agora e no futuro

Fonte: contractfortheweb.org

Neutralidade de rede
“Precisamos de um novo contrato para a web, com responsabilidades claras e rígidas para que aqueles que detêm o poder possam agir melhor”, declarou Berners-Lee durante a última Web Summit, maior conferência europeia sobre tecnologia da internet, ocorrida em Londres no fim de 2018. “Algumas questões de regulamentação têm que envolver governos. Outras claramente incluem as empresas. Se você é provedor de acesso, precisa se comprometer a entregar neutralidade de rede. Se é uma companhia de rede social, precisa garantir que as pessoas tenham controle sobre seus dados.”

A neutralidade da rede mencionada por Berners-Lee, segundo a Coalizão Global pela Neutralidade de Rede, que reúne ativistas de vários países, é o princípio segundo o qual o tráfego da internet deve ser tratado igualmente, sem discriminação, restrição ou interferência, independentemente do emissor, recipiente, do tipo ou conteúdo. Com isso, pretende-se garantir que a liberdade dos usuários não seja limitada pelo favorecimento ou desfavorecimento de transmissões do tráfego da internet associado a conteúdos, serviços, aplicações ou dispositivos particulares.

“Desde sua origem, a internet se propôs a ser plural e de acesso amplo, ou seja, as pessoas conectadas teriam acesso a todo tipo de conteúdo que lhes interessa, independentemente de filtros e controle de tráfego dos pacotes de dados”, ressalta a advogada Cíntia Rosa Pereira de Lima, da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP e líder do grupo de pesquisa Observatório do Marco Civil da Internet no Brasil. Graças à neutralidade da rede, por exemplo, uma operadora não pode reduzir a velocidade de acesso a determinado site nem cobrar para que o usuário usufrua de certo serviço na internet, como a oferta de streaming da Netflix.

A pesquisadora se preocupa também em apontar alguns problemas decorrentes das mudanças geradas pela internet, sobretudo nos relacionamentos interpessoais, nos modelos de negócio e no que ela chama de monetização de dados pessoais. “Como estudiosa do tema, percebo que, com a proliferação das redes sociais em escala global, como Facebook e sites de relacionamento, as pessoas passaram a se preocupar mais com a quantidade de relacionamentos, desconsiderando a qualidade deles”, avalia a especialista. No campo das relações comerciais, segundo ela, a internet e a www alteraram substancialmente a forma de contratação de produtos e serviços, que se tornou cada vez mais abstrata e automatizada.

Fabrice Coffrini / AFP / Getty Images Tim Berners-Lee: preocupação com as disfuncionalidades da internetFabrice Coffrini / AFP / Getty Images

“Os contratos de compra e venda no comércio eletrônico são muitas vezes lesivos ao consumidor. Eles são elaborados de forma proposital para desestimular a leitura pelo internauta, que na maior parte das vezes fecha o negócio sem saber que o contrato contém cláusulas abusivas ou renúncia de direitos”, destaca. Por fim, no tocante à monetização dos dados dos usuários, Lima avalia que eles passaram a ser considerados commodities. “Os dados pessoais tornaram-se informações valiosas para o marketing direto, sendo muitas vezes usados de forma indiscriminada pelas empresas visando exclusivamente a obtenção de lucro.”

Especialista em direito digital e professor de governança e regulação da internet na FGV Direito Rio, na capital fluminense, Luca Belli concorda com a avaliação de que é preciso trazer a internet de volta aos trilhos. “Ela foi concebida como uma rede transparente, descentralizada e distribuída, mas nos últimos quatro ou cinco anos vemos um fenômeno de alta concentração, com algumas plataformas, como Facebook, Google e Twitter, atraindo a atenção da maioria dos usuários. Isso é negativo porque poucas corporações acumularam muito poder e passaram a ter acesso a uma elevada quantidade de informações dos internautas”, afirma.

Glossário
Muita gente confunde internet e web, mas elas são diferentes

Internet
Rede de computadores espalhados pelo mundo interconectados pelo protocolo TCP/IP, criado pelos norte-americanos Vint Cerf e Robert Kahn no início da década de 1970

Web
Uma das ferramentas para acessar
a internet. A web (ou www) utiliza o protocolo HTTP para fazer a transferência de informações e depende de navegadores para funcionar

HTTP
Sigla em inglês de protocolo de transferência de hipertexto (informação exibida em formato digital, que pode conter dados em formato de imagem, som, vídeo etc.). Idealizado por Tim Berners-Lee no início dos anos 1990, funciona associado ao protocolo TCP/IP

Belli alerta para um fato associado ao fenômeno de concentração, que é a existência de certa opacidade sobre o funcionamento dessas organizações, privadas e fechadas. Os dois fatores, concentração e opacidade, facilitam a manipulação dos usuários, por exemplo, por meio da disseminação de fake news. “Há uma relação direta entre desinformação e aglutinação de plataformas. É muito mais fácil espalhar boatos em quatro ou cinco aplicativos dominantes, que agregam a maior parte dos usuários das redes sociais, do que disseminá-los em um grande número de diferentes plataformas de médio ou pequeno porte.”

Segundo o especialista, para reverter esse quadro e fazer com que a internet volte a ser um ambiente mais aberto e competitivo, é preciso adotar medidas que garantam a portabilidade, a interoperacionalidade e a segurança dos dados. Portabilidade é o direito que o internauta tem de levar seus contatos, fotos, mensagens e tudo o mais de uma rede social para outra, enquanto interoperacionalidade é a fixação de padrões que permitem a exportação e importação de dados entre as plataformas.

A portabilidade já está prevista na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, marco legal para a privacidade na internet no país aprovado em 2018 e que vai entrar em vigor no próximo ano. Mas a definição dos padrões técnicos para implementá-la depende da criação de uma autoridade nacional de proteção de dados, o que ainda não ocorreu de fato – apesar de ter sido instituída por uma medida provisória do governo no início do ano, ela não existe concretamente. “Até que essa autoridade comece a funcionar, é impossível fazer a portabilidade de dados”, aponta Belli. Para ele, também é fundamental a implementação de um arcabouço sólido de cibersegurança, que defina com precisão comportamentos ilícitos, a fim de combater a ação de hackers e evitar violação de informações.

Processo civilizatório
Um dos pioneiros da internet no país, o engenheiro eletricista Demi Getschko, presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), responsável por coordenar o registro de nomes de domínio na internet brasileira, admite que a rede mundial de computadores enfrenta problemas, mas defende que o que se vê nela, conforme já expresso pelo matemático norte-americano Vint Cerf, um de seus fundadores, é a representação do que existe no mundo real. “A internet é uma espécie de espelho da sociedade. Atacar a internet, quebrar o espelho, não adianta nada. A realidade vai continuar existindo”, opina.

A popularização da rede, conforme Getschko, permitiu enxergar coisas que antes não eram vistas. “A maioria das pessoas envolvidas com ela é do bem, mas existe uma exuberância, uma ânsia de participar do processo, de falar sem pensar, que com o tempo, esperamos, vai assentar”, pondera. “Não sou muito favorável à legislação em excesso. Tenho dúvidas sobre a qualidade e a eficiência de normatizações para corrigir os excessos na rede. Como ela não tem fronteiras, qualquer legislação local tende a falhar. E sempre haverá alguém que se comporte fora das normas.”

Para o presidente do NIC.br, que esteve diretamente envolvido com a chegada da internet no Brasil, no fim dos anos 1980 (ver Pesquisa FAPESP nos 180 e 221), a forma de corrigir desvios é por meio de um processo civilizatório e educacional. “Precisamos amadurecer e conscientizar os usuários. É muito bom que todos estejam falando – no passado, pouquíssimos falavam e todo mundo ouvia de vez em quando.” Hoje todos falam, lembra Getschko, porque a web e a internet permitiram. “Evidentemente, isso gera certo ruído. Mas prefiro ouvir essa cacofonia ao silêncio”, diz o cientista. “Sou otimista quanto ao futuro da internet.”

Projetos
1. Sistema integrado de informações em ciência e tecnologia para o estado de São Paulo e Rede ANSP (nº 94/03675-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Nelson de Jesus Parada; Investimento R$ 7.889.773,58.
2. Interligação de instituições de ensino, pesquisa e desenvolvimento do estado de São Paulo a Rede ANSP: estudo de viabilidade e projetos dos sistemas de comunicação de dados possíveis de serem utilizados (nº 94/03598-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Nelson de Jesus Parada; Investimento R$ 49.780,00.

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