Duas novas espécies de lagarto coletadas em 2017 na região do pico da Neblina, exclusivos (endêmicos) daquela região, acabam de ser descritas oficialmente: Riolama grandis, apelidada de marrom-gigante, mede cerca de 26 centímetros, o dobro de R. stellata, ou céu-noturno, repleta de pontos brancos sobre as escamas negras, que lembram estrelas espalhadas na região ventral e lateral do corpo. O trabalho, publicado na revista Zoological Journal of the Linnean Society no dia 27 de janeiro, apresenta também uma análise do parentesco dessas espécies com outros grupos de lagartos, com base no DNA ‒ parte mais trabalhosa do estudo e o motivo pelo qual a publicação se dá dois anos após a coleta. O resultado indica que o ancestral comum das duas espécies teria vivido há 16 milhões de anos e a origem do gênero Riolama, composto por mais quatro espécies endêmicas da mesma região, no norte da Amazônia, na fronteira com a Venezuela (ver mapa), remonta a 26 milhões de anos.
“Como o endemismo resulta do isolamento das espécies, a origem do gênero deve ter coincidido com o processo de erosão e formação de picos do planalto das Guianas”, sugere o zoólogo Miguel Trefaut Rodrigues, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP) e líder da expedição de 2017. “Quando algumas áreas se tornaram mais baixas, os ancestrais desses lagartos ficaram presos no alto, dando origem às novas espécies que por lá ficaram.” Ao mesmo tempo, a Amazônia se desenvolvia de forma independente na região baixa, com flora, fauna e ambiente bem distintos. “Ao contrário do que acontece na Mata Atlântica, onde a fauna dos picos da serra do Mar é parecida ou aparentada com a que está na base, nos picos da Amazônia ela em nada se parece com a da floresta”, diz Rodrigues.
Antes da erosão, o planalto ‒ uma gigantesca formação rochosa que ocupa a região norte da Amazônia e se estende até o oceano Atlântico e o rio Orinoco, na Venezuela ‒ servia como um corredor entre os Andes e a Mata Atlântica, por onde as espécies migravam. O lagarto Anolis neblininus, por exemplo, coletado na expedição de 2017, pertence a uma linhagem que inclui outras espécies restritas a esses dois locais, indicando a relação pretérita entre as áreas. A formação inclui dezenas de outros picos, ou tepuis, que significa morada dos deuses na língua dos indígenas Pemon. No conjunto deles, chamado de Pantepui, reside um dos maiores índices de endemismo do mundo.
As montanhas isoladas por gigantescos paredões de pedra e a ideia de que bichos e plantas ancestrais vivessem no topo ‒ também conhecida como hipótese do platô ‒ inspiraram o escritor britânico Arthur Conan Doyle (1859-1930), criador do detetive Sherlock Holmes, a escrever o livro O mundo perdido, ao qual o título do artigo faz referência. Os indícios a favor da teoria, porém, não invalidam a possibilidade de que animais tenham vindo de outros lugares. Sapos do gênero Tepuihyla teriam chegado a diferentes picos do planalto das Guianas galgando a rocha a partir de 5,3 milhões de anos atrás, muito tempo depois dos Riolama terem surgido, de acordo com estudo da bióloga venezuelana Patricia Salerno, à época estudante de doutorado na Universidade do Texas, publicado em 2012 e citado no artigo do grupo liderado por Rodrigues.
Uma subida também épica foi empreendida pelos 11 biólogos da USP que participaram da expedição de 2017. Eles chegaram de helicóptero até a base próxima ao pico da Neblina graças ao apoio do Exército brasileiro. No caminho observaram o ambiente. Rodrigues relata uma mudança brutal de temperatura na subida, que começou em torno de 34 graus Celsius (°C) na floresta, caiu para 8 °C durante o dia e 2 °C à noite — não por acaso, o local do primeiro acampamento se chama bacia do Gelo. Conforme aumenta a altitude, as árvores diminuem de tamanho e, depois de 1.700 metros (m), a floresta desaparece e o solo se torna rochoso, com arbustos baixos e árvores baixas e esparsas.
Assim que desceram do helicóptero, a 2 mil m de altitude ‒ em local previamente preparado por uma equipe destacada do Exército ‒, os pesquisadores se depararam com espécies de plantas e animais completamente diferentes do que se vê nas terras baixas da Amazônia e em outros biomas. “À primeira vista a fisionomia é semelhante à das montanhas do litoral, mas a composição florística é bem diferente. É uma vegetação de campo, com concentração de arbustos em alguns locais”, diz o botânico Renato de Mello-Silva, também do IB-USP. “Mas há menos gramíneas, o substrato é rochoso e existem grandes campos de bromélias.” Chove muito na região e as turfeiras, solo composto por matéria orgânica vegetal decomposta, transformam-se em brejos, formando pântanos onde se afunda até os joelhos. Rodrigues entrou nos charcos e coletou espécies de répteis e anfíbios.