Avanço de pesquisas nas ciências forenses esbarra em problemas estruturais do sistema de investigação criminal
Léo Ramos Chaves
Nos últimos 15 anos a cooperação entre a academia e a polícia se intensificou em todo o país, trazendo avanços significativos para o trabalho de perícia em áreas como toxicologia e odontologia forense. O sistema investigativo, no entanto, segue enfrentando dificuldades estruturais que têm prejudicado seu pleno desenvolvimento. A falta de autonomia entre os órgãos responsáveis pelos processos de apuração técnica de casos criminais e a sobrecarga laboral dos peritos são alguns dos obstáculos que impactam a colaboração científica.
Com 41,6 mil assassinatos em 2018, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a investigação de homicídios representa hoje um dos grandes desafios para o Brasil, que atualmente desconhece a taxa de elucidação desses crimes. Segundo o Atlas da Violência de 2019, elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nos estados em que esse número é conhecido, ele não passa de 20%. Alice Aparecida da Matta Chasin, professora de toxicologia e coordenadora da área de saúde da pós-graduação das Faculdades Oswaldo Cruz, de São Paulo, vê no conhecimento científico a possibilidade de mudar esse panorama. “O trabalho dos peritos é transformar vestígios em indícios, utilizando técnicas e metodologias científicas para apoiar a resolução de casos judiciais, como homicídios, por exemplo”, esclarece Chasin, lembrando que o Código de Processo Penal brasileiro exige que os institutos de criminalística e medicina legal realizem perícias mesmo quando o acusado confessa o crime.
A Polícia Federal (PF) conta hoje com 51 unidades de criminalística e 1.100 peritos criminais. Em 2019, de acordo com o perito criminal federal Eduardo Mendes Cardoso, 314 deles eram mestres e 89 doutores. O sistema de investigação, no entanto, está sobrecarregado. “A recomendação das Organizações das Nações Unidas [ONU] é de que os países tenham um perito para cada 5 mil habitantes. No Brasil, o último dado que temos, de 2013, indicava a existência de um perito para cada 38 mil habitantes”, informa Cardoso.
Em tese de doutorado defendida em 2019 na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, a enfermeira Greice Petronilho Prata Carvalho investigou o trabalho da equipe de atendimento de local de crime do Núcleo de Perícias em Crimes contra a Pessoa, do Instituto de Criminalística do município de São Paulo, constatando os efeitos cotidianos dessa realidade. Para atender toda a capital, o órgão dispõe de apenas duas equipes, formadas por perito criminal e fotógrafo técnico pericial que atuam em plantões de 12 horas. “Em um único dia, esses profissionais chegam a percorrer 300 quilômetros, comparecendo em até 17 locais de crimes contra a pessoa, como homicídio, suicídio, latrocínio e morte suspeita”, relata.
Carvalho, que acompanhou a equipe de perícia em 61 ocasiões ao longo de um ano, afirma que muitas vezes os profissionais não têm tempo suficiente para fazer a investigação de modo adequado. Tampouco para utilizar o conhecimento científico na coleta dos dados necessários para resolução dos casos. Após a ocorrência de um crime, os peritos são requisitados para analisar o local por uma autoridade, na maioria das vezes por um delegado. Sua função envolve a identificação de indícios que possam ajudar a solucionar o caso, bem como a coleta de material que demanda exame laboratorial, como amostras biológicas ou impressões digitais. A equipe pode envolver um perito criminal, um fotógrafo e um desenhista técnico-pericial. “Esses profissionais vivenciam situações delicadas, relacionadas com cenas de violência ou o desespero dos familiares, e não conseguem processar as experiências em decorrência do elevado fluxo de trabalho”, diz. “Nos 61 locais que acompanhei, envolvendo situações de morte suspeita, apenas dois homicídios foram confirmados. Muitos casos eram de idosos doentes, que faleceram em casa de morte natural”, informa. De acordo com Carvalho, as pessoas ouvidas na sua pesquisa relataram que todo processo de atendimento do local de crime, desde a emissão da solicitação da perícia até a elaboração do laudo do médico legista, envolve custos de quase R$ 5 mil. Com uma triagem mais cuidadosa dos casos de morte suspeita que, portanto, de fato demandam perícia do Instituto Médico Legal (IML), esse valor poderia ser economizado e a sobrecarga de trabalho dos peritos, aliviada.
Busca de autonomia “Os IMLs são os primeiros a serem impactados pela falta de investimento em políticas de segurança pública”, afirma Flavia Medeiros, professora do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC). Medeiros, que há uma década pesquisa instituições responsáveis pela gestão de pessoas mortas, acompanhando a produção de documentos e registros feitos a partir de perícias, afirma que, além da falta de recursos, outra demanda do sistema investigativo envolve a necessidade de que a perícia criminal passe a ser feita por órgãos independentes da polícia. “Os peritos precisam ter autonomia para investigar, por exemplo, crimes em que o Estado é suspeito de participar”, defende. A desvinculação dos institutos médicos legais e dos órgãos de perícia criminal das secretarias de Segurança Pública e das polícias civis foi uma das recomendações feitas em 2014, pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), para prevenir graves violações de direitos humanos.
Serviço de Verificação de Óbito da cidade de São Paulo é dirigido pela USPLéo Ramos Chaves
Paulo Saldiva, do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina (FM) da USP, aponta o Victorian Institute of Forensic Medicine (VIFM), em Melbourne, na Austrália, como centro de referência na área de medicina forense no mundo. O instituto desenvolve atividades de patologia forense, pesquisa científica e organiza cursos na área. Realiza autópsias e pode coletar material para exames diversos, incluindo toxicológicos, odontológicos e de DNA. Para elaborar um atestado de óbito, o médico legista dispõe de informações completas. “Lá, somente depois da análise do legista é que se decide se o caso exige abertura de inquérito policial”, explica Saldiva, lembrando que o centro australiano também conta com estrutura judicial. Apesar de funcionarem no mesmo lugar, o sistema de Justiça e o de perícia são independentes e respondem a diferentes chefias.
O acesso aos corpos de pessoas mortas em decorrência de causas externas é fundamental para o avanço da medicina. Saldiva observa que foi justamente a criação de hospitais de campanha, a partir da década de 1950, que possibilitou o estudo de complicações clínicas e o desenvolvimento de tratamentos adequados para situações de trauma. O Mobile Army Surgical Hospital (Mash), estabelecido por forças norte-americanas durante a Guerra da Coreia (1950-1953), representa um marco desse processo. “Nesse sentido, a violência funcionou como elemento propulsor de progresso médico”, informa. De acordo com Saldiva, há uma divisão de funções. Enquanto peritos do IML realizam autópsias em busca de informações que ajudem a elucidar a causa de determinada morte, os patologistas investigam esses corpos para estudar aspectos relacionados à medicina.
“Todo cirurgião de pronto-socorro gostaria de saber, por exemplo, por que um indivíduo que apresenta trauma na medula também sofre um processo inflamatório. Não podemos tirar um pedaço da medula espinal de uma pessoa viva para investigar isso, mas se ela morreu, sim. Há doenças e complicações do trauma que só podem ser estudadas na autópsia”, justifica Saldiva. Corpos de pessoas mortas, decorrentes de causas naturais não esclarecidas, são encaminhados para realização de necropsia no Serviço de Verificação de Óbito (SVO). Na cidade de São Paulo, o serviço é prestado pela gestão municipal e dirigido pela USP. Na grande São Paulo e no interior, é executado por médicos contratados pelas prefeituras. Já cadáveres de pessoas mortas por causas externas, muitas vezes violentas, incluindo homicídios, suicídios e acidentes, bem como corpos de pessoas não identificadas, são enviados para necropsia por médicos-legistas do IML. Cada estado tem regras próprias de funcionamento, sendo que em alguns lugares o SVO funciona dentro do próprio IML ou em hospitais. “Com isso, em São Paulo, pesquisadores da USP podem estudar corpos que chegam ao SVO, mas não aqueles encaminhados ao IML”, informa. “A realização de autópsias em pessoas que morreram por conta de traumas resultantes de quedas de motocicleta, por exemplo, poderia render informações sobre como desenvolver capacetes mais seguros.”
Marco Aurélio Guimarães, responsável pelo Laboratório de Antropologia Forense do Centro de Medicina Legal (Cemel) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP, explica que a medicina legal é uma especialidade ao mesmo tempo médica e jurídica, tendo sido uma das mais afetadas por interferências políticas durante a ditadura militar (1964-1985). Com isso, seu ensino em instituições de nível superior foi prejudicado. Com a finalidade de fomentar o desenvolvimento da área, o Cemel foi criado em 1990, passando a abrigar o IML de Ribeirão, além de desenvolver atividades de ensino e pesquisa relacionadas à medicina legal. A partir desse acordo de cooperação, os pesquisadores daquele campus da USP começaram a poder participar da realização de exames necroscópicos, enquanto o IML pôde contar com uma estrutura adequada para o desenvolvimento de sua operação. “Antes do Cemel, as necropsias de Ribeirão Preto aconteciam em uma sala no cemitério da Saudade, que não tinha ventilação e na qual os restos refluíam para a calçada”, lembra Guimarães. Ele esclarece que os médicos-legistas do IML de Ribeirão Preto precisam autorizar a presença de professores e alunos nas necropsias para fins didáticos. Para a realização de pesquisas em cadáveres, é necessário submeter o pedido a comissões de ética e o procedimento é mais delicado. De acordo com o pesquisador, atualmente a parceria entre a universidade e o IML enfrenta desafios relacionados com a falta de verba para aquisição de material e contratação de novos peritos.
Amostras para biópsias são coletadas por peritos e demandam exames laboratoriaisLéo Ramos Chaves
Segundo Guimarães, quando o Cemel foi inaugurado, o IML contava com 15 médicos legistas. “Funcionários se aposentaram e não houve reposição de vagas. Com isso, hoje, são apenas seis, com duas possíveis vagas a completar”, diz. No mesmo período, o volume de trabalho aumentou em decorrência do crescimento da taxa de mortalidade associada a causas violentas e da prestação de novos serviços, como os exames para seguro DPVAT (Danos Pessoais causados por Veículos Automotores Terrestres). Cabe assinalar que um pedido de necropsia é feito a partir da realização de um Boletim de Ocorrência e é o delegado de polícia o responsável por determinar se o procedimento será realizado pelo IML ou pelo SVO. “O Brasil é um dos únicos países do mundo que abre inquérito e define a causa mortis jurídica antes que o corpo seja analisado por um médico legista”, comenta Guimarães.
Apesar das dificuldades estruturais, a cooperação entre a academia e o sistema investigativo tem apresentado avanços em distintas áreas do conhecimento. Luiz Spricigo, diretor do Instituto Nacional de Criminalística da Diretoria Técnico-Científica (INC/Ditec) da PF, comenta que cada vez mais as ciências forenses utilizam tecnologia e metodologias desenvolvidas no ambiente científico-acadêmico para a resolução de casos de interesse da Justiça. Como exemplos, cita metodologias de valoração econômica de danos ambientais, para rastrear vestígios de animais traficados, remanescentes humanos, madeira ilegal, drogas e alimentos fraudados, e também para identificar crimes de pedofilia. “O desenvolvimento de ferramentas de bioinformática para trabalhar com uma grande quantidade de dados fez com que a análise de genética forense saltasse para o nível de automação atual, com a criação, por exemplo, de bancos de dados de perfis genéticos”, observa. Recentemente, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) estabeleceu parceria com a Polícia Federal (PF) e a Secretaria Nacional de Segurança Pública para investir R$ 10 milhões em programas de pós-graduação stricto sensu nas áreas de segurança pública e ciências forenses. A iniciativa dá prosseguimento ao programa ProForenses, lançado em 2014.
Foi trabalhando com outros pesquisadores que o policial federal Bruno Requião da Cunha descobriu a melhor maneira de combater redes de pornografia infantil, no país. O grupo analisou a estrutura de bancos de dados anônimos que foram investigados durante a operação Darknet da PF. Entre 2014 e 2016, a PF monitorou atividades de 182 usuários de um fórum de pornografia infantil, que reunia cerca de 10 mil pessoas. Os pesquisadores aplicaram métodos da matemática e física para identificar os elementos-chave da organização. “Descobrimos que redes de pornografia infantil funcionam como as terroristas: quando retiramos os elementos-chave, elas se desfazem”, informa.
Autonomia entre os órgãos responsáveis pela apuração de casos criminais é um dos desafios do sistema investigativo
Na odontologia forense, um dos principais desafios científicos envolve os padrões de referência utilizados para identificação da idade. Segundo Maria Gabriela Haye Biazevic, da Faculdade de Odontologia da USP, os padrões usados em radiografias seguem modelos internacionais e muitas vezes não servem para a população brasileira. “Atualmente, estamos trabalhando para criar referências adequadas a populações miscigenadas, como a do nosso país”, informa. A estimativa da idade por meio de técnicas da odontologia forense é importante, por exemplo, no contexto de aumento de fluxos migratórios, quando governos precisam determinar a idade de quem chega ao país. “Indivíduos com menos de 18 anos recebem tratamento distinto do sistema de Justiça”, informa. Na União Europeia, por exemplo, crianças e adolescentes refugiados têm acesso a mais proteção no país de acolhida.
Por fim, na química forense, Adriano Otávio Maldaner, perito criminal federal do INC e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologias Analíticas Avançadas (INCTAA), informa que um dos avanços mais significativos envolve pesquisas para identificação de novas drogas psicoativas em circulação no país. “Traficantes internacionais trazem drogas ao Brasil utilizando substâncias sobre as quais ainda não há legislação”, conta. Por meio de trabalho conjunto com a academia, peritos criminais realizam a identificação dessas novas substâncias para comunicar à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que as inclui na lista de proibidas. No âmbito do INCTAA e em parceria com a Universidade de Brasília (UnB), Maldaner participa de pesquisa para estimar o consumo de drogas em Brasília a partir da análise da rede de esgoto. “Neste ano, fechamos acordo com o Ministério da Cidadania para realizar o estudo em outras cidades do Brasil.” De acordo com o pesquisador, a partir dos resultados do levantamento, o governo federal pretende elaborar ações de combate às drogas, incluindo tanto iniciativas de prevenção nas escolas como medidas para reprimir a utilização de substâncias como cocaína.
No mesmo caminho, em outro projeto de investigação científica, José Luiz da Costa, coordenador do Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox) e professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), identificou novas drogas psicoativas em circulação em diferentes cidades brasileiras, coletando amostras de saliva de voluntários, durante festas e festivais de música eletrônica. Toda vez que as amostras eram coletadas, os pesquisadores perguntavam se eles sabiam o que estavam usando e registravam suas respostas. “Uma das conclusões do estudo é que mais da metade das pessoas pensa que está usando uma substância diferente daquela que realmente está”, afirma. Além de permitir o aprimoramento da legislação, a identificação de novas drogas psicoativas, observa Costa, fornece dados úteis para o tratamento de indivíduos atendidos em serviços de emergência de hospitais.
Projetos 1. Instituto Nacional de Ciências e Tecnologias Analíticas Avançadas – INCTAA (nº 08/57808-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Celio Pasquini; Investimento 1.733.102,25. 2. A toxicologia das novas substâncias psicoativas (NSP): epidemiologia do consumo através da análise de amostras de cabelo e fluido oral (nº 18/00432-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa Regular; Pesquisador responsável José Luiz da Costa; Investimento R$ 105.757,54 + US$ 30.527,79.
Livro MEDEIROS, F. Matar o morto – Uma etnografia do Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Série Antropologia e Ciência Política, v. 57. p. 221.
É permitida a republicação desta reportagem em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. É obrigatório o cumprimento da Política de Republicação Digital de Conteúdo de Pesquisa FAPESP, aqui especificada. Em resumo, o texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, assim como a fonte (Pesquisa FAPESP). O uso do botão HTML permite o atendimento a essas normas. Em caso de reprodução apenas do texto, por favor, consulte a Política de Republicação Digital.