Os pesquisadores brasileiros deverão sofrer menos sobressaltos em 2020 após o Congresso Nacional ter blindado o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) contra novos contingenciamentos. A manobra foi sacramentada com a aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA), em dezembro. A notícia foi recebida com algum alívio pela comunidade científica, que viveu um 2019 de aperto financeiro e incertezas, depois que o governo congelou, no mês de março, 42% das verbas de custeio do MCTIC e obrigou o ministério a trabalhar com seu menor patamar de recursos em mais de uma década. À época, o governo também contingenciou 30% dos recursos destinados às universidades federais, esses vinculados ao Ministério da Educação (MEC). “Trata-se de uma vitória importante, mas a preocupação com o orçamento continua, pois ele segue muito baixo”, diz o físico Ildeu Moreira de Castro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
O orçamento para o MCTIC em 2020 será de R$ 11,8 bilhões. Desse total, R$ 5,1 bilhões foram carimbados como reserva de contingência e não poderão ser gastos com ciência, tecnologia e inovação (CT&I). Em vez disso, serão usados para reduzir o déficit nas contas públicas. Outra parte, quase R$ 983 milhões, consta no orçamento como crédito suplementar, sujeito à aprovação do Congresso para ser usado. Excluídos todos esses valores, mais as despesas obrigatórias, os recursos reais de investimento do MCTIC serão de aproximadamente R$ 3,7 bilhões em 2020. “A blindagem aprovada pelo Congresso impede que o orçamento seja ainda mais reduzido em 2020, mas não desfaz o contingenciamento embutido no próprio projeto de lei”, explica Moreira. “A perspectiva para a CT&I em 2020 segue crítica.”
O horizonte também não é animador para as principais agências de fomento à pesquisa do país. O valor concedido em 2020 ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) teve um reajuste de 0,66% em relação ao de 2019. Já o orçamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) foi reduzido em 33,1% em relação ao montante do ano anterior.
Os recursos para a ciência não se restringem apenas ao MCTIC, mas estão embutidos também no orçamento de outros ministérios, como o da Saúde, Defesa e Educação. Para tentar reduzir os danos, os parlamentares conseguiram aprovar uma emenda adicional, apresentada pelo deputado federal João Campos (PSB-PE), estendendo a proteção contra novos contingenciamentos também a outras instituições federais do sistema nacional de CT&I, como a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Essa emenda, porém, foi vetada pelo presidente Jair Bolsonaro, por recomendação do Ministério da Economia e da Secretaria-Geral da Presidência. “O argumento foi o de que ela criaria uma rigidez orçamentária, dificultando a execução de outras políticas públicas”, esclarece o deputado Campos. “Os vetos ainda serão analisados no plenário do Congresso”, afirma o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), um dos principais interlocutores da comunidade científica em Brasília. “O que mais nos preocupa nesse momento é a situação do FNDCT [Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico].” Administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o fundo constitui a principal ferramenta de apoio a projetos de pesquisa do MCTIC, mas hoje passa por um momento de retração e incerteza.
Campos compartilha da preocupação de Lucas em relação à redução dos recursos para a CT&I, e está trabalhando com outros congressistas para derrubar o veto à emenda que impede o contingenciamento do orçamento das instituições externas ao MCTIC. As chances de isso acontecer são grandes, segundo ele. “Os parlamentares estão convencidos da importância de garantir o orçamento para o setor”, diz. “O Brasil não pode seguir na contramão do mundo em relação ao financiamento à ciência e tecnologia.”
A recomposição de parte dos recursos para CT&I é resultado de uma articulação política que também envolveu representantes de entidades ligadas ao setor ao longo da discussão da proposta de lei orçamentária, a primeira com a marca do atual governo. Um dos atores envolvidos foi a Confederação Nacional da Indústria (CNI), que há mais de uma década investe na interlocução entre os setores público e privado por meio da Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI). A iniciativa reúne cerca de 300 lideranças empresariais do país e atua como um fórum de diálogo com o governo, a academia e a sociedade civil. “Os líderes da MEI se reúnem a cada três meses com representantes do poder público e da academia para discutir caminhos possíveis para estimular a inovação no país”, explica Gianna Sagazio, diretora de Inovação da CNI e coordenadora da MEI.
Para ela, um dos encontros decisivos para sensibilizar os parlamentares sobre a necessidade de garantir recursos para CT&I foi promovido em novembro de 2019 na sede da CNI em Brasília. O evento contou com a participação de autoridades, entre eles Rodrigo Maia (DEM-RJ) e Davi Alcolumbre (DEM-AP), os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, e de empresários de vários setores da indústria. “Discutimos a inovação como vetor para o desenvolvimento e a importância de uma política própria de longo prazo, baseada em metas e na garantia de recursos”, diz Sagazio.
O encontro se deu por iniciativa da CNI e da Frente Parlamentar Mista de Ciência, Tecnologia, Pesquisa e Inovação, lançada em julho de 2019. A frente conta com 207 parlamentares de vários partidos, que se reúnem em sessões com membros da comunidade científica e da sociedade civil para discutir temas de interesse do setor. A iniciativa é presidida por Izalci Lucas, que já havia coordenado a articulação para a criação dessa mesma frente suprapartidária em 2009, quando ainda exercia o mandato de deputado pelo PFL, atual Democratas. Agora no Senado, ele trabalha para expandir esse grupo ao lado do deputado Vitor Lippi (PSDB-SP), vice-presidente da frente.
Na avaliação de Lucas, um dos resultados do encontro na CNI foi o alinhamento entre deputados e senadores de diferentes partidos em torno do potencial estratégico da CT&I para o país. Essa postura se tornou nítida em um artigo publicado em novembro no jornal O Globo. Assinado por 22 líderes partidários de diferentes tendências políticas, o texto, articulado pelo deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), propõe resgatar o financiamento à pesquisa para superar a crise que atravessa o país. Outro resultado pode ser visto na Comissão Mista de Orçamento. Na percepção de Lucas, “CT&I nunca estiveram tanto em evidência na pauta da comissão”.
A CNI também vem se articulando com outras entidades, como a Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), para fazer avançar outras pautas com o potencial de impulsionar a inovação no país. Uma delas diz respeito ao Marco Legal de Startups e Empreendedorismo Inovador, fundamental para alavancar o Brasil na agenda de inovação, segundo Sagazio. “As startups são essenciais para a geração de empregos e dinamização da economia em muitos países”, diz. “Precisamos aprimorar o sistema regulador dessas pequenas empresas inovadoras no Brasil.” Em dezembro, a Câmara criou uma comissão para avaliar o projeto sobre o marco legal, elaborado e apresentado pelo governo. Em fevereiro, a comissão aprovou um plano de trabalho que prevê a realização de audiências públicas entre março e abril para ouvir especialistas do setor privado e da administração pública, incluindo o ministro Marcos Pontes, do MCTIC. “A MEI vem promovendo reuniões com parlamentares para discutir sugestões ao texto que dará forma à nova legislação, como a criação de um instrumento similar à Lei do Bem para pequenas empresas inovadoras”, comenta Sagazio. A expectativa é de que o Marco Legal seja aprovado este ano no Congresso.
Um dos desafios impostos à comunidade científica em 2019 foi o de identificar novos interlocutores no Congresso e se apresentar a eles. A Câmara iniciou os trabalhos em fevereiro do ano passado com uma taxa de 47% de renovação – a mais alta registrada desde as eleições de 1998. No Senado, o índice foi de 85%. Isso significa que vários parlamentares são novatos, enquanto outros, simpáticos aos interesse da comunidade científica, não conseguiram se reeleger. Algumas entidades do setor já vinham monitorando os candidatos alinhados à defesa da CT&I desde a campanha eleitoral para iniciar a estruturação das suas redes de contato no Congresso. É o caso da SBPC, que se aproximou dos presidenciáveis e candidatos ao Senado, Câmara e Assembleias Legislativas, durante a campanha, e os convidou a assinar uma lista de compromissos com CT&I, caso eleitos. Em maio passado, a entidade também lançou a Iniciativa de Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br), em parceria com a Academia Brasileira de Ciências (ABC) e outras 60 instituições acadêmicas.
Moreira, da SBPC, explica que a iniciativa quer promover uma articulação mais integrada com os parlamentares para poder apresentar a eles as demandas do setor. Entre elas estão a aprovação de projetos paralisados no Congresso, como o PLS nº 315/2017, que transforma o FNDCT em fundo financeiro – dessa forma, mesmo os recursos contigenciados gerariam juros que poderiam ser usados pelo MCTIC –, e o Projeto de Lei nº 5.876/2016, que destina 20% do Fundo Social do Pré-sal a programas científicos e de inovação. Eles reivindicam ainda a derrubada dos vetos presidenciais à Lei dos Fundos Patrimoniais, sancionada em 2019, que garante arcabouço legal às instituições de pesquisa com dificuldades de financiar suas atividades para que elas possam captar recursos privados.
Outra estratégia usada pela SBPC para se aproximar dos parlamentares envolve a busca por apoio com base em pautas de interesse de cada congressista. “Tentamos mostrar como a aprovação de projetos de interesse da CT&I pode contribuir para o andamento de projetos espelhados que beneficiem setores de interesse deles”, explica Mariana Mazza, assessora parlamentar da SBPC. Foi assim que conseguiram apoio das lideranças do Solidariedade para o Projeto de Lei nº 5.876/2016, em tramitação na Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara, que destina 20% dos rendimentos do Fundo Social do Pré-sal à CT&I. “O apoio a esse projeto se deu a partir do entendimento de que ele pode favorecer a criação de um projeto semelhante, também destinando recursos do pré-sal para a segurança pública.”
As ações promovidas pelo ICTP.br são um desdobramento de uma estratégia iniciada pela própria SBPC em 2011 para fortalecer o diálogo com o Parlamento. A bioquímica Helena Nader, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e ex-presidente da SBPC, conta que, à época, a entidade decidiu contratar um assessor parlamentar. “A bióloga Beatriz de Bulhões [1965-2016], escolhida pela SBPC, fez um belo trabalho em prol do diálogo com os congressistas”, diz Nader. “A estratégia era simples. Aproximávamos dos líderes e apresentavámos nossas ideias e demandas, em um trabalho sistemático de acompanhamento e crítica de projetos de lei de nosso interesse.”
Um ponto decisivo na estratégia adotada à época pela SBPC foi buscar uma articulação com parlamentares de todos os partidos e espectros ideológicos na construção de uma política com foco no fortalecimento do sistema nacional de CT&I. “Batíamos à porta de todos eles para explicar as demandas da comunidade científica”, diz a pesquisadora, que esteve à frente da SBPC entre 2011 e 2017.
Esse esforço, segundo Nader, contribuiu para a formação de uma mobilização envolvendo empresários e gestores públicos em torno de pautas que mais tarde culminaram em várias alterações legais que regem as atividades científicas no país – conhecidas como Marco Legal da CT&I, sancionada em 2016. Para ela, os desafios impostos pelo atual governo reforçam a necessidade de uma articulação ampla com parlamentares de correntes políticas distintas. “O ministro Pontes está aberto ao diálogo, mas sabemos que ele pouco pode fazer, dada a agenda econômica imposta pelo governo.”
A mobilização envolvendo membros do Parlamento europeu e líderes dos estados‑membros da União Europeia garantiu a aprovação de um orçamento de € 100 bilhões para o Horizonte Europa, programa de estímulo à pesquisa científica e inovação que deverá entrar em vigor em 2021, estendendo-se até 2027. O valor representa um aumento de 23% em relação ao orçamento de seu antecessor, o Horizonte 2020, que se encerrará no fim deste ano.
A aprovação do orçamento se deu em um momento conturbado na região, com o processo de saída do Reino Unido da União Europeia. O valor, no entanto, ainda é considerado insuficiente para a resolução dos principais desafios da Europa. Calcula-se que, ajustado à inflação, o aumento do orçamento do Horizonte Europa em relação ao Horizonte 2020 represente menos de € 10 bilhões. Diante disso, diversas organizações representativas da comunidade científica europeia, entre elas o Consórcio Europeu de Universidades Inovadoras e a Associação das Universidades Europeias, estão se articulando para sensibilizar os parlamentares para garantir o aumento do orçamento para, no mínimo, € 120 bilhões.