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Obituário

Um pensador do desenvolvimento

Wilson Cano, um dos fundadores do Instituto de Economia da Unicamp, morre aos 82 anos

Em vídeo de 2015 da TV Unicamp, Cano falou sobre economia latino-americana, sobre pobreza e má distribuição de renda, e o trabalho na Cepal

Reprodução

O economista paulistano Wilson Cano, pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE-Unicamp), morreu na sexta-feira (3/4), aos 82 anos. Ele se recuperava de um câncer no pâncreas e sofreu um enfarte. Estudioso da industrialização brasileira e da relação entre desenvolvimento econômico e desequilíbrios regionais e urbanos, escreveu 14 livros e participou da formação de várias gerações de estudantes na Unicamp, tendo orientado mais de 60 alunos de mestrado e doutorado. A doença levou-o a fazer uma cirurgia há dois anos e lhe rendeu complicações, como um primeiro enfarte, mas ainda assim Cano ministrou até o ano passado a disciplina Desenvolvimento Econômico no Programa de Pós-graduação do IE-Unicamp. Recentemente, decidiu lançar um site com toda a sua produção científica e, na apresentação, explicou seu propósito: “É, modestamente, contribuir com maior acesso ao conhecimento de nossa economia nacional, de seu subdesenvolvimento, da explosiva e má formação de suas economias urbana e regional e dos crassos erros cometidos em suas políticas públicas, fatos que hoje têm sido pouco e mal debatidos no país, notadamente na universidade, no sindicato e na mídia”.

Caçula de seis filhos de um casal de imigrantes espanhóis, teve de trabalhar desde a adolescência e, por isso, foi estudar economia à noite na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Depois de formado, em 1962, fez um curso de pós-graduação de Planejamento e Desenvolvimento Econômico organizado pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal) em São Paulo. Essa experiência definiu seus interesses e colocou-o em contato com professores tomados como referência em sua formação, como Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa e o chileno Aníbal Pinto Santa Cruz (1913-1996). “Conheci um Brasil e uma América Latina que ainda não conhecia porque as escolas brasileiras se limitavam a transplantar o que vinha de fora, sem fazer um diagnóstico de nosso subdesenvolvimento”, disse, em 2008, em uma entrevista ao Jornal da Unicamp.

Logo se integrou à equipe de pesquisadores do escritório da Cepal no Rio de Janeiro, ajudando a formar o corpo técnico de órgãos de planejamento em várias regiões do país. No final de 1967, preparava-se para passar uma temporada no Chile, quando foi procurado pelo professor de filosofia Fausto Castilho (1929-2015), representando o reitor da recém-criada Unicamp Zeferino Vaz (1908-1981). Ele recrutava pesquisadores para formar um grupo de pesquisa em economia, o Departamento de Planejamento Econômico (Depe). Outros nomes ligados ao curso da Cepal também haviam sido recrutados, como Luiz Gonzaga Belluzzo, João Manuel Cardoso de Mello, Carlos Eduardo Nascimento Gonçalves e Osmar Marchese. Cano ingressou nos quadros da nova universidade em janeiro de 1968. O Depe foi o embrião dos cursos de humanidades na Unicamp e deu origem ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), do qual, em meados dos anos 1980, se desmembraria o Instituto de Economia.

As reflexões sobre o desenvolvimento latino-americano feitas nos anos 1950 e 1960 pela Cepal foram o ponto de partida para a formação de uma escola caracterizada pelo pensamento crítico em relação à teoria econômica ortodoxa. Em Campinas, o grupo de jovens economistas se debruçou sobre particularidades do capitalismo brasileiro, ao propor um diagnóstico e um receituário diferentes dos que prevalecem nos países centrais. O combinado com Zeferino foi que, além de fazer pesquisa, os pesquisadores recrutados aperfeiçoariam sua formação. Sob orientação do economista João Paulo de Almeida Magalhães (1927-2015), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Wilson Cano defendeu em 1975 sua tese de doutorado, intitulada “Raízes da concentração industrial em São Paulo”, que produziu uma contribuição original sobre o processo de industrialização do Brasil. Publicado em forma de livro em 1977, está atualmente na quinta edição.

De acordo com Fernando Nogueira da Costa, professor do IE-Unicamp, a tese evidenciou que as origens da concentração industrial em São Paulo remontavam ao início do século XX, com a expansão cafeeira e o consequente desenvolvimento da economia no estado, e não a mudanças no padrão de acumulação de capital após a crise de 1929, como se avaliava correntemente. “Ele não analisou apenas a atividade cafeeira em São Paulo antes de 1930, mas verificou também o desenvolvimento de novas relações econômicas e a formação de um complexo capitalista que ajudou a impulsionar a indústria. Dessa forma, o estado adquiriu as condições para consolidar sua posição de liderança na industrialização brasileira após a Grande Depressão”, afirma Costa, orientado por Cano tanto no mestrado, em meados dos anos 1970, como no doutorado, concluído em 1986.

Arquivo pessoal/ Fernando Nogueira da Costa Com Maria da Conceição Tavares, em 2015, em banca do concurso para professor-titular de Fernando Nogueira da Costa (IE-Unicamp)Arquivo pessoal/ Fernando Nogueira da Costa

Há dois meses, em entrevista a Pesquisa FAPESP para uma reportagem sobre o primeiro Censo Agropecuário do Brasil realizado em 1920, Wilson Cano relembrou a transição da economia paulista, de agrícola a industrial. “Os anos 1920 marcaram a emergência do estado de São Paulo, que ultrapassou o Rio de Janeiro em produção industrial e assumiu a frente da modernidade e do crescimento econômico do país”, afirmou. A produção industrial do estado passou de 31,5% do total nacional em 1919 para 37,5% em 1929. “A indústria era de produtos básicos, principalmente têxtil e vestuário, mas aos poucos se diversificou”, explicou. Segundo Nogueira da Costa, a tese de Cano teve um papel importante na formação do pensamento do grupo de economistas da Unicamp. “O grande valor desse estudo e de outros feitos por colegas de Cano na década de 1970 foi mostrar a influência de fatores endógenos no desenvolvimento econômico no Brasil. Eles se contrapunham a uma visão corrente na academia de o sistema capitalista de países da periferia ser integralmente dependente dos países centrais”, afirma.

“Wilson Cano foi um pesquisador exemplar”, define o economista Carlos Américo Pacheco, professor do IE-Unicamp, que teve Cano como orientador de sua tese de doutorado, concluída em 1996. “Seu livro Raízes da concentração industrial em São Paulo é um clássico. Revela, como poucos outros trabalhos, a relação entre a economia cafeeira, a indústria e a urbanização. Será sempre uma leitura obrigatória para quem quiser entender a economia paulista e o Brasil do início do século XX”, afirma Pacheco, que é diretor-presidente do Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP. Em um texto escrito em homenagem a Cano, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo definiu a contribuição do colega. “Sua obra é vasta e sua visão esteve sempre concentrada nas questões que incomodam os pensadores dedicados à investigação da trajetória brasileira nos marcos dos movimentos do capitalismo global. Wilson, sem dúvida, é, sim, um dos principais arquitetos do ‘pensamento da Unicamp’. Certamente ele concordaria que precisamos ser mais modestos”, afirmou. “O que temos é uma linha de investigação que singularizou, ao longo da história, o Instituto de Economia. Essa linha, digamos, mais influenciada pelo paradigma da economia política, da história econômica e social, nos levou ao debate público.”

Cano seguiu sua carreira na universidade. Entre 1976 e 1980, foi diretor do IFCH. Tornou-se livre-docente, em 1981, e professor titular em 1986. Sua produção teve uma grande diversidade temática, observa o economista Fernando Cezar de Macedo, pesquisador do Centro de Estudos de Desenvolvimento Econômico (Cede) e docente do IE-Unicamp. “Abordou temas como o Plano Nacional de Desenvolvimento, questões regionais e urbanas, múltiplos aspectos da economia de São Paulo, além de outros estados brasileiros, Campinas e sua região metropolitana, e avaliações sobre a América Latina em diferentes épocas, inclusive em periódicos internacionais. Mais recentemente, pesquisava sobre a desindustrialização no país”, enumera. “Sua obra escrita e a concepção programática de suas aulas são largamente utilizadas em cursos de Economia Brasileira, Desenvolvimento Econômico e Economia Regional e Urbana no Brasil e no exterior.”

Entre 1990 e 1997, Wilson Cano foi membro do Conselho Superior da FAPESP. Aposentado em 2008, seguiu dando aulas, escrevendo artigos e orientando alunos de pós-graduação, vinculado ao Cede. Seu trabalho incorporou a preocupação com o desenvolvimento urbano e regional, área de pesquisa do Cede. “Um aspecto importante é que o arco de orientandos do professor Cano vindos de diferentes estados possibilitou que seu método de pesquisa, especialmente sobre a questão regional no país, fosse replicado Brasil afora através de seus ex-alunos. Ele tinha ex-alunos e discípulos, inclusive que não foram seus orientandos, em um grande número de universidades do país”, afirma Macedo.

“Ele era uma esponja. Como o interesse de parte dos alunos era a questão urbana, ele foi absorvendo e incorporando novas dimensões dessa agenda de forma muito generosa”, diz a economista Beatriz Mioto, professora e pesquisadora da Universidade Federal do ABC, que fez o doutorado sob orientação de Cano entre 2011 e 2015. Sua pesquisa, um estudo comparativo das políticas habitacionais de quatro países latino-americanos – Brasil, Colômbia, México e Venezuela –, foi sendo ampliada aos poucos, por recomendação do orientador. “Ele sugeriu que eu começasse fazendo um estudo mais restrito sobre a política habitacional de São Paulo, e fosse avaliando se havia fôlego para tratar da América Latina. Sempre muito rigoroso, me incentivou a seguir na aventura. A gente brincava dizendo que ele era o orientador por natureza, pois dava pitacos no trabalho de todo mundo, até de quem não era seu aluno”, diz Mioto. Ela conversou por e-mail com Cano na véspera de sua morte e recebeu como resposta uma série de referências para um artigo que pretende escrever.

Uma qualidade apontada por seus orientandos era a marcação cerrada feita para não deixar ninguém desistir – ele chegava a levar alunos para uma chácara de sua propriedade até terminarem de escrever. “Não lembro de ninguém, entre aqueles com quem já convivi na universidade, que merecesse mais o título de professor do que Wilson Cano”, diz a urbanista Mariana Fix, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ex-professora no IE-Unicamp e pesquisadora do Cede, cuja pesquisa de doutorado sobre financeirização e transformações no circuito imobiliário no Brasil, defendida em 2011, foi orientada por Cano – e recebeu o Prêmio Capes de Tese na categoria Economia em 2012. “Quando ele achava o número de aulas insuficiente para que o curso incluísse tudo o que considerava importante abarcar, marcava logo algumas aulas extras”, afirma. Segundo ela, sua capacidade de síntese permitia tratar de um arco enorme de problemas em pouco tempo. “Isso tornava a sua substituição um desafio enorme para qualquer docente – para sorte dos estudantes de pós-graduação já que acabou prolongando os cursos até muito recentemente. Até o ano passado, os pós-graduandos do Cede tiveram o privilégio de contar com o exame minucioso e arguto dos projetos de pesquisa.”

Wilson Cano deixa mulher, Selma Maria Schwarzer Cano, três filhos e seis netos.

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