Imprimir PDF Republicar

Entrevista

Carlos Henrique de Brito Cruz: Um indutor de mudanças

Diretor científico da FAPESP conta como estimulou comportamentos que ajudaram a melhorar a pesquisa em São Paulo

Léo Ramos Chaves

A responsabilidade da FAPESP não se restringe a aplicar seu orçamento historicamente estável de uma forma reconhecida pela comunidade científica e pela sociedade como legítima, embora essa seja por si só uma enorme tarefa. Seu papel é contribuir para que o sistema de pesquisa progrida como um todo, na apreciação de seu diretor científico nos últimos 15 anos, Carlos Henrique de Brito Cruz.

O principal mecanismo para alcançar esse fim, defende Brito Cruz, é usar o orçamento de maneira incisiva e eficaz para estimular e induzir mudanças de comportamento nas instituições e nos pesquisadores. Exemplos dessa estratégia são o código de boas práticas científicas, lançado pela Fundação em 2011, e a exigência de que instituições-sede de projetos financiados pela FAPESP deem apoio institucional ao pesquisador. Nos últimos anos, universidades e instituições paulistas criaram escritórios que ajudam seus pesquisadores a cumprir tarefas burocráticas e permitem que eles se concentrem em fazer ciência. Na sua avaliação, o excesso de encargos não científicos dos pesquisadores é um obstáculo à melhoria da qualidade da ciência no país e cabe às instituições oferecerem a eles serviços de gestão de projetos, como fazem as universidades estrangeiras com as quais se busca competir.

Outra linha de ação na mesma concepção foi o estímulo a colaborações, tanto com outras instituições e agências brasileiras como internacionais. “A qualidade da ciência é beneficiada quando um pesquisador interage com os melhores cientistas que ele consegue encontrar. Essa interação promove troca de ideias, conhecimento de métodos, de procedimentos, cria oportunidades para os estudantes”, afirma.

Apesar da gravidade do momento, quando o mundo enfrenta a pandemia do novo coronavírus, somado no Brasil a uma crise econômica e política, Brito Cruz avalia que a pesquisa em São Paulo e no país hoje tem mais vitalidade, pessoas, qualidade, inserção internacional, melhor visibilidade para o público e se mostrou mais conectada a desafios que interessam à sociedade. Por isso, argumenta, é mais efetivo hoje defender a ciência do que há 15 ou 20 anos.

Brito Cruz é engenheiro e físico, presidiu a FAPESP (1996-2002) e foi reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre 2002 e 2005. Prestes a deixar o cargo, ao encerrar seu quinto mandato de três anos, em abril, o diretor científico concedeu a seguinte entrevista a Pesquisa FAPESP, disponível em uma versão ampliada no site da revista.

Idade 61 anos
Especialidade
Fenômenos ultrarrápidos, política científica, estudos em C&T
Instituições
Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (IFGW-Unicamp) e FAPESP
Formação
Graduação em engenharia eletrônica (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), mestrado e doutorado em ciências no IFGW-Unicamp
Produção
106 artigos científicos

Em 2005, ao assumir a Diretoria Científica, você classificou sua visão sobre o desenvolvimento científico nacional como otimista. Quinze anos depois, continua otimista?
Continuo otimista. Estamos em um momento desfavorável, mas em São Paulo e no Brasil a atividade de pesquisa cresceu e melhorou muito. Tem mais vitalidade, pessoas, qualidade, inserção internacional, visibilidade para o público… Em 2005, eu não imaginaria que em 2019 teríamos um artigo no jornal O Globo assinado por políticos, incluído o presidente da Câmara Federal, defendendo a ciência. A pesquisa em ciência e tecnologia ganhou espaço entre os valores da sociedade brasileira e se mostrou mais conectada a desafios que interessam à sociedade, sejam emergenciais, sejam de avanço intelectual puro.

Apesar dos avanços, há uma percepção de que a ciência vem sendo atacada.
É verdade. Isso faz parte dos aspectos desfavoráveis da conjuntura, que não se limitam à falta de financiamento ou à crise econômica. Tem a ver com a questão de credibilidade, com discussões sobre o valor da ciência. Mas esse debate está sendo bem enfrentado. As críticas e agressões à ciência fazem com que a comunidade de pesquisa brasileira e do mundo se preocupe mais com o efeito dos trabalhos realizados e em tornar visíveis seus resultados. Estamos em uma curva ascendente da ciência em São Paulo e no Brasil. Poderia até ser mais, se não houvesse alguns obstáculos. Por ser ascendente, é mais efetivo hoje defender a ciência do que era em 2005.

Qual é a relevância da FAPESP hoje?
A Fundação continua sendo enormemente relevante por duas razões. A primeira por causa do orçamento que tem e de suas características: é estável, previsível e aplicado de uma maneira na qual a comunidade científica reconhece legitimidade. A segunda é que a Fundação passou a trabalhar de forma mais eficaz para, ao estabelecer critérios para o acesso aos recursos, estimular e induzir comportamentos nas instituições e entre os pesquisadores. Os dois aspectos se complementam.

Não pode ser o pesquisador quem liga para a agência de viagem e compra a passagem do visitante

Por exemplo?
A FAPESP influencia comportamentos quando lança um código de boas práticas científicas, como fez em 2011, e torna o tema visível de um jeito positivo e efetivo dentro das instituições. Adotar boas práticas é fazer prevenção, educação e apuração justa e rigorosa; estimulando um determinado comportamento institucional e individual. Antes, ninguém falava do assunto e, quando tinha um escândalo, todos prometiam castigo exemplar. Não é mais assim.

Há outros exemplos?
A ação da FAPESP em exigir das instituições o que chamamos de apoio institucional ao pesquisador. A deficiência nesse apoio é um dos principais obstáculos à melhoria da qualidade e do impacto da ciência e da pesquisa feita em São Paulo. Se quisermos que os pesquisadores em São Paulo compitam com os de Stanford, École Polytechnique, Cambridge, eles precisam ter em suas instituições apoio similar ao que os pesquisadores desses lugares têm. E não está nem perto, embora tenha progredido muito. Há uns três anos contamos 200 escritórios de apoio institucional à pesquisa no estado – é pouco, precisaria ter 600. Em 2005, se tivesse 10 era muito. Não pode ser o pesquisador quem telefona para a agência de viagem para comprar a passagem do pesquisador visitante, faz a prestação de contas do auxílio, liga para o técnico que faz a manutenção… Enquanto isso, o colega dele de Cambridge está escrevendo trabalhos, orientando alunos, discutindo com colegas e tendo ideias. Com mais apoio institucional, multiplicaremos o efeito do dinheiro concedido por 1,7, talvez até 2. É essencial que uma organização como a FAPESP exija que as instituições cumpram esse papel.

Por que essa ação cabe à FAPESP?
Se uma organização como a FAPESP não pressionar, ninguém vai colocar na agenda. A comunidade científica percebe, mas formula de um jeito diferente, que “precisa desburocratizar”. Desburocratizar não é eliminar regras que uma democracia requer para uso de recursos públicos. Significa tirar a burocracia das mãos e das costas do cientista. Durante décadas a FAPESP trabalhou com a suposição de que bastaria oferecer recursos aos melhores pesquisadores e a ciência progrediria. Progrediu, mas chegou-se a uma dimensão na qual sem o apoio institucional não se consegue avançar significativamente.

Falando das estratégias adotadas pela Diretoria Científica nesses 15 anos, que balanço é possível fazer?
Muito além da seleção de projetos de pesquisa, me ocupei em tentar puxar todo o sistema para cima, como a maré que levanta todos os barcos ao mesmo tempo, não apenas um ou dois. É possível fazer um programa de sucesso em determinada área, mas ele pode estar no meio de um sistema que puxa o resto para baixo. Minha preocupação desde o primeiro dia, descrita no plano que apresentei para o Conselho Superior da FAPESP, foi dizer: “O Projeto Genoma foi sensacional, mas quantas outras coisas a gente não percebeu ou não fez?”. Induzir comportamento muda tudo, afeta todas as áreas, os jovens, os velhos, as instituições bem estabelecidas e as emergentes.

Promover a cooperação internacional é um exemplo dessa indução?
Sim. A interação internacional era fraca antes de 2005. Havia – ainda há – uma espécie de introversão na comunidade científica brasileira. Quando começamos a fazer essa indução, muitos pesquisadores se interessaram e ocuparam posições de liderança em colaborações internacionais. Hoje temos projetos importantes feitos em São Paulo, como o chip Sampa para o detector do Cern [Organização Europeia para Pesquisa Nuclear]; o líder do detector de neutrinos (Arapuca) do Fermilab; e pesquisadores dos programas de Bioenergia [Bioen], Mudanças Climáticas e Biodiversidade [Biota] que lideraram o mais importante relatório mundial sobre sustentabilidade em bioenergia. Em Brasília achavam que colaboração internacional era exportar estudantes. Para nós é conceber a pesquisa junto, lutar lado a lado pela aprovação do projeto aqui e no exterior e, se aprovado, tocar em parceria. Aí sim, faz sentido pesquisadores e estudantes viajarem. Hoje, quase 15% dos projetos temáticos são em colaboração internacional desde o primeiro dia. A porcentagem de artigos com coautores em São Paulo e em outro país pulou de 25% para 45%.

Isabela Carrari/Prefeitura de Santos Barreira erguida em praia de Santos (SP) para atenuar impacto das mudanças climáticasIsabela Carrari/Prefeitura de Santos

O que foi feito para induzir a colaboração internacional?
Fomos aprendendo como trabalhar com as principais agências de financiamento à pesquisa no mundo. As primeiras que nos ajudaram foram as do Reino Unido. Por iniciativa do Consulado Britânico, os Research Councils foram receptivos e conseguimos montar nosso primeiro acordo relevante de cofinanciamento, envolvendo projetos de pesquisa completos e em conjunto – pequenos, médios e grandes. Nunca tínhamos cofinanciado projetos grandes com agências do exterior. Essa experiência nos permitiu dar início a vários acordos internacionais com agências importantes. Montamos uma colaboração semelhante com a DFG, agência de pesquisa alemã, com a National Science Foundation [NSF], dos Estados Unidos. Trouxemos procedimentos deles para cá, como o modo de organizar reuniões, tipos de formulários, como trabalhar para extrair dos nossos assessores pareceres melhores e mais detalhados. Nosso sistema melhorou como um todo. A FAPESP hoje é, no mundo, uma das agências que mais oferece oportunidades de colaboração internacional. É uma das razões pelas quais a FAPESP conseguiu se tornar protagonista em organizações internacionais, como o Global Research Council, que fez a reunião aqui em 2019, na qual fui escolhido como chair do governing board.

Há uma preocupação não apenas de enviar brasileiros para o exterior, mas trazer estrangeiros para cá. Qual foi a principal dificuldade para atrair bons pesquisadores de fora?
De fato, isso deu certo apenas em parte. Na estratégia de colaboração internacional da FAPESP, um dos valores importantíssimos é o da reciprocidade. Procuramos projetos em colaboração nos quais a contribuição dos pesquisadores de São Paulo seja comparável à dos colegas de outros países. Isso eleva o padrão. Uma parte dessa reciprocidade se transforma em ação quando insistimos em trazer gente de fora. É difícil fazer isso porque, embora a FAPESP trabalhe bem, há muitos outros problemas, como o “custo Brasil”. Mesmo lutando contra isso, subiu o número de pessoas de fora de São Paulo na lista de bolsistas. Trazemos pesquisadores de outros estados, o que também é importante. E aumentou o número de pesquisadores de fora – 20% dos bolsistas de pós-doutorado vieram do exterior. Gente de todos os lugares, França, Canadá, Índia, Paquistão, Alemanha… Já identificamos em algumas empresas que receberam financiamento do programa Pipe [Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas] um certo número de projetos liderados por pesquisadores que trouxemos da Europa. Vieram como pós-docs, ficaram por aqui e agora estão liderando a pesquisa em empresas.

Nessa estratégia, havia três pilares: trazer pesquisadores do exterior, enviar pesquisadores para o exterior, fazer projetos em parceria. Há um peso relativo para cada um?
Gastamos mais dinheiro com a Bepe [Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior] e projetos colaborativos do que trazendo pessoas de fora. Sempre que possível, tentamos fazer com que o destino do estudante da Bepe ou o convite para o pesquisador estrangeiro esteja atrelado a uma pesquisa colaborativa. Queremos que os três instrumentos funcionem de modo articulado. Veja o Spec [São Paulo Excellence Chair], programa que cria a oportunidade de um pesquisador muito destacado passar um tempo aqui, liderando um projeto, interagindo com estudantes, vivendo o departamento por um determinado número de semanas por ano. O Spec cria muitas oportunidades. Um desses pesquisadores, Emilio Moran, faz parte do National Science Board dos Estados Unidos, que é o Conselho Superior da NSF. A nossa estratégia não é focalizada em repatriamento, mas em trazer excelentes cientistas para trabalhar no Brasil, brasileiros ou não.

De 2005 a 2015, a FAPESP ampliou a cooperação com outras instituições brasileiras, como outras fundações de apoio à pesquisa (FAPs) e instituições federais.
Quando me candidatei para o cargo, defendi que a FAPESP precisava explorar mais as oportunidades de colaborar com entidades interessadas em C&T no Brasil: BNDES, Finep, CNPq, Capes. Fomos atrás de oportunidades. De 2005 a 2013, as agências federais tiveram como parte de sua estratégia interagir bem com as FAPs. Em 2005 apresentamos um projeto para Finep; o Pappe Subvenção até hoje cofinancia projetos da fase 3 do Pipe. O grande programa do CNPq, que a FAPESP ajudou a montar, foi o dos INCTs [Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia]. A FAPESP foi o segundo maior financiador. Depois fizemos um acordo excelente com a Capes para financiar os programas de bolsa, de R$ 240 milhões, R$ 167 milhões já desembolsados. E conseguimos algo raro, que é o BNDES se associar a uma agência de financiamento para fazer pesquisa: fizemos o laboratório de estruturas leves do IPT em São José dos Campos. Houve acordos com algumas FAPs – de Pernambuco, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro – e, recentemente, passamos a fazer acordos mais abrangentes com muitas outras. A colaboração avançou muito.

Como a FAPESP se inseriu no esforço de estimular a inovação e a interação entre universidade e empresa?
Inovação pode ou não incluir pesquisa – e a FAPESP só trabalha com pesquisa. Se a pesquisa levar à inovação, a FAPESP pode apoiar. Já vi, participei de reuniões, disputas e brigas em que se atribui à FAPESP a missão de apoiar a inovação lato sensu, o que seria contra a lei. Nos empenhamos em ampliar o perfil da FAPESP na pesquisa para inovação, a fim de que, além de receber projetos de pesquisadores, fossem feitos acordos com empresas para cofinanciar projetos do Pite [Programa de Apoio à Pesquisa em Parceria para Inovação Tecnológica]. Fizemos chamadas públicas em parceria com dezenas de empresas – Oxiteno, Braskem, Intel, Microsoft, Vale, farmacêuticas. Com isso conseguimos aumentar a quantidade de projetos Pite e o valor aplicado nos projetos. Em 2013, surgiu a ideia do Centro de Pesquisa em Engenharia [CPE], híbrido de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão [Cepid] com Pite. São centros cofinanciados por uma empresa por 10 anos. Já temos 16 e devem sair mais dois sobre inteligência artificial, um sobre água e outro sobre primeira infância. Fizemos parcerias inclusive com empresas internacionais que nunca tiveram pesquisa no Brasil. A outra parte de fazer pesquisa em empresas, o Pipe, demorou um pouco mais porque tivemos que aprender coisas novas. Fizemos uma reforma em movimento.

Léo Ramos Chaves Com Jorge Tezon, do Conicet da Argentina, e Peter Strohschneider, da German Research FoundationLéo Ramos Chaves

Como foi isso?
A primeira parte da reforma envolveu aprender com a NSF como ela selecionava os projetos de pequenas empresas. Analisei o Pipe e fui lá conversar com eles. Foi muito útil. Criamos um novo procedimento: trazer especialistas em vez de avaliar nas coordenações melhorou muito a qualidade da análise. Depois, trabalhamos para criar mais visibilidade para o programa. Passamos a publicar anúncios e a promover reuniões para orientar a fazer projetos de qualidade. Criamos uma cerimônia para anunciar as propostas aprovadas. Como resultado, nos últimos três ou quatro anos tivemos a maior quantidade de projetos aprovados e o volume de dinheiro contratado aumenta anualmente. Esses projetos com empresas, que eu chamo de pesquisa “em” e “com” empresas – Pipe e Pite, respectivamente –, usaram no ano passado perto de 10% do orçamento da Fundação, o que nunca tinha acontecido antes. Foi algo que prosperou.

Quais foram os impactos dessas iniciativas no ambiente acadêmico e na economia?
O primeiro, que foi identificado em uma avaliação concluída em 2009, é que o recurso da FAPESP torna viável que a empresa invista no projeto outra quantidade bem maior de recursos seus. Outra forma de ver esse impacto foi um gráfico publicado na revista Pesquisa FAPESP que mostra quantos empregados as empresas tinham antes de iniciar o projeto Pipe e quantos tiveram depois [ver suplemento Pipe FAPESP – 20 anos de inovação]. A InVitro começou com 30 e foi para 268 empregados. A Griaule foi de 5 para 45. No Pite, aumentou muito a quantidade de empresas que nos procuram para fazer esses centros de pesquisa em engenharia, então algum resultado dá. Mas isso é implícito. O impacto mais explícito foi dissipar a visão de que projeto em colaboração com empresa é medíocre, que atrapalha a carreira do pesquisador e do estudante.

Um preconceito histórico…
É conceito. Preconceito é quando você fala sem ver. Mas os pesquisadores viam o que acontecia antigamente: a maioria dos projetos era simples consultoria. Muitas organizações ainda confundem pesquisa colaborativa com consultoria subsidiada. O Pite ajudou a mudar essa visão e os CPEs a dissiparam totalmente. Todas as empresas que se associaram conosco nos CPEs querem pesquisa avançada. Não procuram pesquisa incremental, querem criar o futuro. Isso aparece nos editais, o que despertou alto interesse da comunidade científica, coincidindo com a maneira como uma agência como a FAPESP deve se envolver. Da maneira como vejo, só faz sentido colocar recursos públicos em apoio à pesquisa para inovação se for para a empresa fazer algo que não faria só com seu próprio dinheiro. O objetivo tem que ser suficientemente complicado, arriscado ou incerto para ser visível que a empresa não faria aquilo sozinha. O dinheiro do contribuinte é para reduzir o risco. Dessa forma, estamos somando no sistema. Senão a empresa diz: “Agora tem dinheiro do governo, então vamos pegar o que gastaríamos em pesquisa e pôr no marketing, na distribuição de dividendos…”

Há um potencial nas universidades que as empresas brasileiras não usam de modo suficiente

Foi essa questão que motivou seu trabalho recente indicando um aumento de 14% ao ano, entre 1980 e 2016, na colaboração entre universidades e empresas?
Em parte. Eu via aqui na FAPESP uma quantidade de projetos com empresas, as pequenas que empregam estudantes e pós-docs, as grandes que fazem parceria. Mas, quando se vai a alguma reunião para falar de colaboração entre universidade e empresa, o ponto de partida costuma ser que não existe, é fraca ou incipiente. Formou-se uma dúvida. Como vejo tanta demanda e todos falam o contrário? Fui procurar dados e só encontrei evidências anedóticas. Trata-se de uma implicância baseada em casos. E também se baseia em uma ilusão de que nos Estados Unidos quem financia a pesquisa nas universidades são as empresas. Não é assim, quase dois terços vêm do governo federal, um terço do estadual e somente 6% das empresas. Comecei a procurar indicadores e descobri duas coisas. Uma é que USP e Unicamp recebem recursos de empresas, em proporção ao dinheiro que recebem externamente, que as colocam no nível das 10 maiores universidades dos Estados Unidos. A segunda é lastimável: todas as outras universidades do Brasil não sabem fazer essa conta. Elas não sabem quanto dinheiro receberam das empresas.

Aí surgiu a ideia de fazer a contagem dos papers em colaboração entre universidades e empresas no Brasil?
Isso mesmo. Eu estava vendo uma palestra aqui na FAPESP de um pesquisador da Universidade de Leiden sobre como medir a colaboração de universidade com empresa por coautoria de artigos científicos. Ele mostrou os resultados do Brasil, com base na Web of Science, e tinha uns 10 papers. Achei espetacular a ideia de contar coautoria, mas notei que não estavam contando direito. Eles não sabiam que Apis Flora, InVitro, Griaule são empresas. Para eles, empresa é IBM, GSK, Novartis, Microsoft. Durante a palestra, procurei na base de dados artigos com os termos *ltda* e *corp*. Apareceu um monte. Pensei, tenho algo aqui. A Clarivate ia fazer um relatório e eu reclamei com eles que o percentual de coautoria com empresas estava errado. O mesmo aconteceu com a Elsevier e os dados da Scopus. Peguei todos os artigos do Brasil, tirei tudo o que era hospital e universidade e o resto fui marcando. Olhei uma por uma, porque algumas não puseram nem ltda, nem corp, nem sociedade anônima. Demorou três ou quatro semanas para checar mais de 400 mil artigos. O relatório da Clarivate mostrou que não é certo dizer que tem pouco. Achei valioso: mostra o contrário do que todo mundo acha.

Não seria por que é difícil ver de maneira clara qual é a riqueza gerada em cada parceria?
É difícil ver, em todos os lugares. O estudo mostrou que boa parte das interações, talvez quase a metade, é com empresas estrangeiras. Elas vêm aqui buscar a sabedoria dos pesquisadores das universidades, algo que as empresas do Brasil não buscam. Há um potencial e um valor nas universidades que as empresas do Brasil não estão usando suficientemente.

Os indicadores de inovação nas empresas estagnaram-se nos últimos anos. Por que eles parecem dissociados desses indicadores de colaboração entre universidades e empresas?
Essa é outra descoberta que fiz produzindo os indicadores da FAPESP. A dissociação está em outro ponto. No estado de São Paulo, 57% dos pesquisadores são empregados de empresas. Dos R$ 25 bilhões investidos em pesquisa no estado, 60% foram gastos por empresas, pagando 47 mil pesquisadores. A questão é: por que gastam tanto dinheiro e não vemos resultados tão notáveis quanto os de empresas de outros países? A seção Dados de Pesquisa FAPESP publicou há uns anos uma tabela educativa que mostra por que os indicadores de inovação patinam. O quadro aponta, em países selecionados, o número de patentes, o número de pesquisadores que trabalham nas empresas e quantas patentes são obtidas para cada grupo de 10 mil pesquisadores. No Japão e Coreia do Sul, há 900 patentes por 10 mil pesquisadores. No Brasil, paga-se a 10 mil pesquisadores e no fim do ano tem 29 ideias que viram patente. Os 47 mil pesquisadores nas empresas daqui estão trabalhando em uma agenda de pesquisa ruim. Não falta esforço. Falta agenda ousada e movida pela busca de oportunidades internacionais.

Vamos falar de alguns programas FAPESP. O Bioen teve cinco vertentes: melhoramento de cana, fabricação de biocombustíveis, motores a etanol, biorrefinarias e impactos sociais e ambientais. Em quais delas houve mais resultados?
Todos tiveram resultados importantes, mas os de maior impacto foram os referentes à sustentabilidade de biocombustíveis, no trabalho que resultou no relatório Scope [Comitê Científico para Problemas de Ambiente]. O Bioenergy & sustainability: Bridging the gaps virou uma obra obrigatória nesse assunto e foi ilustrativo dessa nossa estratégia de todos colaborarem internacionalmente buscando protagonismo. Nesse relatório, três brasileiros lideraram uma equipe de 137 pesquisadores de 80 instituições de 24 países.

Qual foi a contribuição do relatório?
Foi bem singular e importante para o Brasil: definir em que condições biocombustíveis produzidos em larga escala podem ser feitos de maneira sustentável. O principal obstáculo para a expansão de biocombustíveis no mundo tem sido a crítica de que isso causaria fome ou destruiria florestas. Em geral, essas objeções vêm de estudos liderados por europeus. Esse relatório teve participação de alemães, holandeses, franceses, norte-americanos e chegou a um resultado razoável, mostrando qual o jeito errado e o jeito certo de fazer as coisas nessa área. O jeito errado não é, em geral, a maneira como se faz aqui.

O programa de Pesquisa sobre Mudanças Globais foi lançado com o objetivo de ajudar na tomada de decisões sobre avaliações de risco e estratégias de mitigação e adaptação. O tema parece não comover áreas do Executivo e do Legislativo. Por que isso ocorre?
Não sei se isso é bem verdade. Os resultados sobre o aumento do nível do mar estão levando municípios no litoral a criar legislação e regras. Comparado com o Biota talvez tenha menos resultados visíveis porque é um tema mais difícil. As consequências estão lá na frente: é pagar agora para não ter consequências daqui a 50 anos. Não são só os políticos que relutam. Por isso há esse debate mundial, que se acelerou um pouco por causa da reação ignorante de certos políticos. Isso acabou por criar uma onda a favor da valorização das pesquisas, dos resultados. Claro que há partes do programa que poderiam ter dado mais certo. Mas é assim mesmo. O desafio desses programas, muitas vezes, é conseguir que os pesquisadores redirecionem um pouco seus interesses para trabalhar juntos e que isso aumente a qualidade e a efetividade dos resultados. O papel de uma organização como a FAPESP é liderar e estimular por convencimento e persuasão.

Detalhe do artigo publicado em 5/11/2019 em O Globo, assinado pelo presidente da Câmara e líderes de partidos

Algum outro programa trouxe resultados destacados?
Os programas mencionados são orientados a temas. Outra parte de nossas ações tem a ver com os programas tradicionais da FAPESP, que passaram por forte mudança na distribuição dos investimentos. Há 13 ou 15 anos investíamos mais dinheiro em projetos de curta duração, os auxílios regulares; agora estamos investindo a maior parte dos recursos em auxílios ousados e competitivos mundialmente, os projetos temáticos, os Cepids e o programa Jovem Pesquisador. A parte dos auxílios individuais diminuiu e a dos projetos com equipes maiores cresceu. Isso foi feito intencionalmente e prudentemente. Envolveu convencer os assessores a terem menos restrições a pesquisas com risco maior. Pesquisa é para ter risco. Tem de pensar: não sei se vai dar certo, mas essa equipe que está propondo já fez um projeto complicado antes? Se fez, é uma boa razão para apostar. O que define um projeto ousado é o tamanho do problema que ele trata e como se pretende tratá-lo; se vai pegar um problema que nunca ninguém abordou, ou, ao menos, nunca tratou daquele jeito, e se o projeto pode levar a um grau de compreensão notavelmente melhor do que tem hoje.

Como é que a FAPESP tem conseguido lidar com a demanda crescente da comunidade, com muitos programas complexos e inúmeros acordos internacionais?
Entre 2005 e 2013, aumentaram a demanda e a receita real da Fundação. Conseguimos acumular recursos entre 2005 e 2014, recuperando parte da reserva do fundo patrimonial perdida na crise entre 2001 e 2005. Aumentamos a quantidade de concessões e iniciamos a estratégia de deslocamento dos projetos curtos para os longos e ousados. Em 2013, começamos a ver o horizonte de crise, que até agora só piorou. De lá para cá, a demanda ficou surpreendentemente constante. Não saberia explicar por quê. Ante a crise de receita, devido à evolução da economia brasileira e paulista, tornamos mais rigoroso o processo de concessão de bolsas ou auxílios. A taxa de sucesso, que era de 55%, foi para 40%; estamos a caminho de 38% porque a crise continua. O Conselho Superior permitiu, a partir de 2014, que usássemos parte do fundo para seguir a lei zero da FAPESP, que é: tudo que foi contratado será pago. Ao mesmo tempo, tivemos de contratar menos projetos para termos menos compromissos no futuro. Antes de 2001, a taxa de sucesso de aprovação era entre 75% e 80%; de 2001 a 2005 foi entre 40% e 45%; de 2005 a 2009 subiu para 55%; e em 2014 foi de 40%. Não é ruim comparado com as principais agências do mundo. E é uma média de tudo o que analisamos. Aprovamos 60% das solicitações de bolsa de iniciação científica e 28% de projetos temáticos. Os NIH [Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos] aprovam 11% quando se trata de projeto de cinco anos. A NSF, 17%. Ser mais competitivo faz o sistema melhorar em qualidade. O pesquisador tem que caprichar muito mais no projeto.

Houve um investimento da FAPESP em produzir indicadores de C&T. Que balanço se faz em relação à capacidade de produzir informação que ajuda a tomar decisões?
O que mudou foi que conectamos os indicadores com a montagem de estratégias da FAPESP. O meu jeito de trabalhar valoriza o acesso a indicadores. Estimulei a produção de indicadores sobre o mundo exterior e sobre a FAPESP. Observando os indicadores, podemos, por exemplo, criar uma coordenação de área nova. Olhando a Biblioteca Virtual, hoje qualquer pessoa consegue descobrir quantos auxílios foram aprovados em qualquer área. Fica fácil ver o que acontece e é possível usar isso para tomar decisões. Para os indicadores de C&T, depois de 2015, com a vinda do professor [Carlos Américo] Pacheco, montou-se na diretoria da presidência do CTA [Conselho Técnico Administrativo] um esforço mais robusto ainda.

A FAPESP, nas suas palavras, busca ter impacto social, econômico e intelectual científico. Esse tripé deveria ser equitativo ou cada perna deveria ter um peso de acordo com o momento?
O impacto da pesquisa precisa aparecer nessas três dimensões. Mas nunca disse que cada projeto precisa estar nas três dimensões. É o sistema como um todo que deve fazer essas três coisas. Cabe a uma agência como a FAPESP, ao governo, achar o equilíbrio adequado, que é um equilíbrio dinâmico. Tem época que queremos mais ou menos pesquisa aplicada, dependendo dos problemas enfrentados.

Isso mudou nos últimos 15 anos?
Não sei se houve uma mudança relativa. Nas três dimensões conseguimos ter mais impacto. Vemos mais efeito da pesquisa nas empresas, há mais coautoria, mais projeto colaborativo. Conseguimos ter mais impacto da ciência, porque vemos mais citações dos trabalhos, mais presença internacional. E conseguimos ter mais impacto social, visível em decretos relativos ao meio ambiente baseados em resultados do Biota ou no estudo sobre o efeito da pesquisa em agricultura na produção de alimentos. Outras coisas são mais difíceis de medir, mas não de identificar. Por exemplo, aumento da qualidade do atendimento nos hospitais devido a protocolos mais bem-‑feitos, fruto de pesquisa que a Fundação financiou. Basta lembrar o assunto recente do sequenciamento do genoma do vírus da Covid-19. Melhoramos nas três dimensões.

Nesse cenário de restrição, baixo crescimento, como se financia a ciência? Há o que fazer?
Até certo ponto, é possível conviver com uma situação de restrição elevando referenciais para escolher o que financiar ou não. Depois de um certo ponto, a seleção pode virar uma loteria indefensável. Na FAPESP, não estamos perto desse ponto. Mas quando tem, como no CNPq, um corte de 80% de dinheiro de fomento, já se está nessa situação. O principal efeito negativo da crise é não estarmos construindo as bases de um futuro com mais ciência e melhor ciência. Estamos há muito tempo sem criar mais lugares com atividade de ciência, mais universidades, departamentos competitivos. Algo foi feito entre 2005 e 2012, com critérios com os quais eu não concordaria totalmente, mas foi feito. Quando olhamos para São Paulo, a UFABC tornou-se um lugar relevante da pesquisa no Brasil e no mundo. A Federal de São Carlos aumentou sua produção. Com muita luta, se fez a fonte de luz síncrotron Sirius, uma realização respeitável, mas o Brasil precisa de mais. Talvez o caminho certo seja ter mais organizações de tamanho administrável e bem qualificadas. Pode ser universidade ou instituto dirigido a problemas que se precise resolver. Ou empresas intensivas em pesquisa e desenvolvimento.

Essa ideia de ter mais instituições não deveria incluir as privadas?
Certamente. Tem uma coisa nova em São Paulo, que são instituições privadas dedicadas à pesquisa. Quando fazíamos os indicadores em 2005, não aparecia no radar. E agora olhamos e tem instituto do Hospital Sírio-Libanês, do Hospital Albert Einstein, Instituto Eldorado, CPQD, Fundecitrus, e muitos outros. Com apoio da FAPESP, a Universidade Mackenzie investiu recursos expressivos e construiu um importante centro de pesquisa em grafeno. As instituições novas de pesquisa ou ensino superior podem ser privadas ou públicas. Quando comparo o estado de São Paulo com a Espanha, dois lugares de mais de 40 milhões de pessoas, a Espanha tem mais de 40 universidades públicas. São Paulo tem seis. É um número para entender melhor, certo?

A partir de maio, o que fará?
Aqui na FAPESP tive o gosto de trabalhar com uma equipe excepcional, funcionários e membros das coordenações. A satisfação de interagir com os pesquisadores dessas coordenações é enorme, difícil de pôr em palavras. Eles valorizam a boa pesquisa porque sabem o que é pesquisar, amam a ciência, a tecnologia, e são cheios de ideias e de paixão por estas. Não se encontra esse tipo de ambiente em muitos lugares. A diretoria e o conselho sempre foram muito positivos e institucionais, nas convergências e nas divergências. Não sei o que farei depois de abril. Agora o mundo virou de cabeça para baixo com esse assunto do vírus, tudo ficou mais complexo. Acho que o grupo de pesquisa no Instituto de Física da Unicamp me aceitará de volta. Mas por via das dúvidas pode ser bom consultar os anúncios classificados.

O site da revista Pesquisa FAPESP traz uma versão ampliada desta entrevista.

Republicar