Em 2019, um paulistano de 26 anos perdeu o emprego. Tendo um filho pequeno para criar, foi trabalhar como motorista de aplicativos de transporte. A cada mês, alugava um carro diferente e passava dentro dele mais de 12 horas por dia, para cobrir os gastos e obter algum lucro. Um dia, começou a tossir, depois expectorar, mas não tinha tempo de ir ao médico ou ao hospital. Acabou morrendo “vítima de uma doença simples, que se trata com um antibiótico comum”, relata o patologista Paulo Saldiva, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), que conversou com a viúva.
Diferenças de renda, infraestrutura urbana, gênero, raça e organização da saúde pública são decisivos para determinar quem fica doente, quem sucumbe a determinada moléstia, onde as doenças vão aparecer e sobre quem vão recair as consequências econômicas. São os determinantes sociais da saúde, conceito usado por sanitaristas, epidemiologistas e médicos da família para designar tanto as causas não diretamente biológicas das doenças quanto as do bem-estar.
Numa mesma cidade, a má distribuição de verbas da saúde, as diferentes condições urbanísticas e a segregação social podem, igualmente, ser determinantes para a emergência de doenças. Com a chegada da Covid-19, o avanço da doença para as periferias logo se tornou uma preocupação central. Os primeiros casos no Brasil foram verificados em bairros centrais e de maior poder aquisitivo de São Paulo. Segundo o Boletim da Covid-19, publicado em 17 de abril pela prefeitura paulistana, o Morumbi, distrito de classe alta da zona sul, continua tendo o maior número de casos confirmados: 297. Mas já há mais mortes em distritos como Brasilândia (54), na zona norte, Sapopemba (51) e Cidade Tiradentes (37), na zona leste. No Morumbi, são sete mortes.
“O risco de morrer antes do tempo na cidade de São Paulo, hoje, é mais dependente do código de endereçamento postal [CEP] do que do código genético”, diz Saldiva. Apontando para um mapa da incidência de doenças cardiovasculares no município, o pesquisador mostra que os números são piores nas periferias, com exceção do Brás, bairro central com alta concentração de sub-habitações e imigrantes vivendo em condições precárias. “Se eu souber a distância do centro onde vive determinada pessoa, sua cor de pele, gênero, situação socioeconômica e grau de instrução, explico 62% da variabilidade dessas doenças”, afirma. “Ou seja, na faculdade de medicina, ensino só 38% do que é necessário para evitar uma morte.”
A epidemiologista Rita Barradas Barata, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FCM-SCSP), observa que, como o coronavírus da atual pandemia é um agente infeccioso novo, “toda a população é suscetível e ninguém tem imunidade prévia”, ou seja, em princípio, haveria certa igualdade de risco. Por um lado, os idosos, que têm sido o grupo mais vulnerável, são proporcionalmente mais frequentes nas camadas de renda mais alta. Por outro, as doenças preexistentes estão mais presentes entre as classes de renda mais baixa. “Todas as camadas sociais estão vulneráveis, mas as condições de vida e de saúde são muito desiguais no país e isso pode, sim, ser um problema”, aponta.
Barata cita a aglomeração dos domicílios, predominante nas periferias urbanas, onde vivem populações mais pobres. “Esse é um elemento que pode facilitar enormemente a transmissão de qualquer doença respiratória. E assim deve ocorrer no caso do coronavírus”, afirma. “As piores condições de alimentação, maior prevalência de doenças crônicas sem controle adequado, como diabetes, hipertensão e obesidade, podem aumentar o risco para as populações mais pobres, sem contar o enorme impacto que a cessação das atividades de trabalho e fontes de renda para a grande maioria da população pobre está provocando”, alerta. Mesmo o isolamento social, recomendado para se precaver contra o vírus, é mais difícil nesses bairros do que nas áreas centrais, onde as residências são maiores e dispõem de melhor infraestrutura.
Aglomeração e saneamento
Dados de outras doenças, já presentes no Brasil, sugerem que alguns bairros de algumas cidades brasileiras têm exposição demasiadamente alta a doenças respiratórias. Uma das maiores incidências de tuberculose, por exemplo, ocorre na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro. São 372 casos por 100 mil habitantes, enquanto a média do país é de 34 por 100 mil. Em 2010, alguns quarteirões da rua 4, no interior da favela, foram urbanizados, com acesso a rede de água e esgoto, no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Nessa área, a doença quase desapareceu. No restante da rua 4, a incidência segue sendo alta. Tal fato explicita como a concentração de pessoas em pequenos espaços favorece a disseminação da doença, o que faz com que ela também ocorra frequentemente nos presídios superlotados do país. A desigualdade de renda e moradia se reflete nos dados da desigualdade racial do país: em 2016, 63,7% dos casos de tuberculose foram verificados na população negra, segundo dados do Ministério da Saúde.
O mesmo ocorre com a pneumonia. “A mortalidade por pneumonia é muito alta no Brasil. São cerca de 80 mil vidas perdidas a cada ano, a maior parte de idosos”, afirma a epidemiologista Maria de Fátima Marinho de Souza, que foi consultora do Ministério da Saúde no estudo “Carga global de doenças, em 2017”. Os dados da pesquisa, realizada entre 2015 e 2017 e baseada em diversos bancos de dados públicos, mostram que a doença tem provocado mais mortes nos últimos anos, inclusive entre recém-nascidos. “Não há como esperar que os dados melhorem, porque a miséria continua aumentando, os programas sociais encolheram, o sistema de saúde sofreu cortes de recursos. Com o fim do programa Mais Médicos, perdemos muitos profissionais que atuavam justamente nas áreas mais vulneráveis. Esse é o cenário em que o novo vírus começa a circular”, alerta.
Além das doenças respiratórias, outras enfermidades persistem no Brasil por motivos sanitários. “Quantas vezes a diarreia não é causada pelo ambiente insalubre? Se a água acessível à população está contaminada, haverá mais diarreia. Médicos podem tratá-la com remédios, mas, sem olhar para o determinante social, o problema não será resolvido”, argumenta Marinho. “Agora a pobreza extrema voltou a subir no Brasil e as mortes por diarreia aumentaram, o que também provoca um pico de mortalidade infantil. Isso implica a perda da saúde, porque mesmo quem não morre fica enfraquecido e pode ser vítima da próxima doença”, observa.
Diante do avanço do vírus Sars-CoV-2, sem acesso a serviços hospitalares de qualidade, a população da periferia e das favelas tem criado seus próprios mecanismos de solidariedade e difusão de informações. É o caso da rede “Favela sem corona”, constituída no Rio de Janeiro para fortalecer a prevenção, facilitar doações de alimentos e lidar com as consequências do isolamento social, como a depressão, por exemplo. Entidades como a Central Única das Favelas (Cufa) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) organizaram campanhas de informação e arrecadação de alimentos. A Associação de Moradores de Paraisópolis, comunidade da zona sul de São Paulo, contratou por conta própria uma equipe médica para tentar conter a disseminação do vírus. “Inúmeras ações de solidariedade surgiram nas últimas semanas para atender essa população. Todavia, por mais esforçadas que sejam, tais redes têm alcance limitado. Questões como distribuição massiva de máscaras e kits de higiene, cestas básicas, remédios e montagem de hospitais de campanha somente o Estado pode garantir”, observa o sociólogo Tiaraju Pablo D’Andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos do campus zona leste da Universidade Federal de São Paulo (CEP-Unifesp).
No fim de março, o CEP-Unifesp publicou o documento Propostas de medidas urgentes para a contenção da Covid-19 nas periferias. Os 23 itens são variados e revelam os desafios que áreas periféricas têm enfrentado com a chegada da pandemia. Dez medidas são econômicas, como a suspensão de aluguéis e impostos e a manutenção da merenda escolar. Até agora, diz D’Andrea, a suspensão por três meses de taxas de água e luz em favelas de São Paulo foi a medida mais importante do poder público para proteger essas populações. Medidas semelhantes foram tomadas em vários estados. “No Brasil, tomar a necessária decisão do isolamento físico sem observar as marcadas diferenças sociais, raciais e de classe faz com que a decisão não seja efetiva por completo. Para que possam se afastar das atividades que lhes rendem o sustento, os mais vulneráveis necessitam ser amparados”, alerta.
Outras medidas dizem respeito ao acesso à água, com carros-pipa em comunidades sem saneamento, à montagem de hospitais de campanha e ao combate à violência de gênero. Os casos de violência doméstica vêm crescendo desde a decretação do isolamento social. Conforme informação do Ministério da Mulher, as denúncias de agressão no Ligue 180 aumentaram 9% entre a primeira e a segunda semanas de março. O ministério informou também que as queixas de violência doméstica no estado do Rio de Janeiro aumentaram 50% no período. Segundo D’Andrea, “no atual cenário, essas mulheres têm menor possibilidade de acessar os meios legais instituídos para protegê-las”. O sociólogo relata que, com a publicação das medidas, que foram protocoladas na prefeitura e no governo do estado, houve contatos de vereadores e deputados estaduais interessados em levar adiante as propostas.
Determinantes sociais
A relação entre saúde e condições sociais começou a ser estudada pela medicina no século XIX. “O estado de saúde é indissolúvel da forma como as sociedades estão organizadas e, portanto, do modo de vida dos indivíduos e grupos sociais”, afirma Barata. Aos poucos, o entendimento dos determinantes sociais da saúde foi se ampliando. No início, as pesquisas mostravam apenas o efeito da pobreza sobre a incidência das doenças, “dadas as condições abomináveis em que os trabalhadores viviam na época da Revolução Industrial”, diz a pesquisadora da Santa Casa.
Depois, “os pesquisadores passaram a ver que não era apenas a pobreza que causava doença, mas, de modo geral, a posição social dos indivíduos, com seu grau de riqueza, poder e prestígio, ou seja, as diferenças relativas entre os grupos também passaram a ser vistas como importantes para explicar as desigualdades em saúde”, observa. “Já no final do século XX, outras relações sociais, como aquelas que se estabelecem entre gêneros, etnias, grupos com diferentes identidades e orientações sexuais, também foram incluídas como determinantes da saúde”, acrescenta.
A epidemia da febre zika, que atingiu o Brasil entre 2015 e 2016, com maior peso na região Nordeste, teve peso particularmente maior sobre as mulheres, como mostrou a pesquisa “Impactos sociais e econômicos da infecção pelo vírus zika”, apresentada em 2018 pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido. Tendo de cuidar de crianças afetadas pela síndrome congênita do vírus, popularmente conhecida como “microcefalia”, foram obrigadas a largar empregos e projetos pessoais. Dados da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de Pernambuco revelam que 70% das mães eram jovens de 14 a 29 anos e 77% eram negras, sendo que 57,3% das crianças atingidas pertenciam a famílias mantidas com o auxílio do Bolsa Família.
O gênero também foi decisivo na epidemia de ebola, que atacou Libéria, Serra Leoa e Guiné, na África, entre 2013 e 2016. A antropóloga Denise Pimenta, doutora pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), cunhou a expressão “cuidado perigoso” para se referir à morte de mulheres nesses países. De fato, naqueles países, houve mais mortes de mulheres do que de homens durante a epidemia, e Pimenta argumenta que a razão está no papel reservado a elas, como cuidadoras dos enfermos. Os resultados foram publicados na tese “O cuidado perigoso: Tramas de afeto e risco na Serra Leoa”, defendida em 2019.
Políticas públicas
“No mundo todo, há um grande problema de articulação de políticas públicas entre diferentes esferas de governo. As políticas de saúde têm de levar em conta o local onde serão aplicadas, para poder tratar diferentemente o diferente”, diz o pediatra e sanitarista Paulo Buss, coordenador-geral do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz.
“No Brasil, por exemplo, a situação do negro é muito pior do que a do branco. A questão racial envolve políticas de emprego, saúde, educação, saneamento. O mesmo acontece na questão de gênero e na diferença entre o centro das cidades e a periferia rural. As políticas de saúde têm de responder a essas desigualdades”, afirma. A dengue, por sua vez, incide mais em áreas com esgoto a céu aberto e falta de acesso a água potável. “Cada problema específico tem sua determinação social. Quem mora em Ipanema, com um bom plano de saúde, obviamente tem mais acesso aos hospitais do que uma família que mora em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense”, resume, acrescentando que as maiores incidências de malária estão nas periferias de grandes cidades e em populações isoladas da região Norte do país.
Ajustar as políticas públicas aos determinantes sociais da saúde nem sempre é tarefa trivial, aponta Fátima Marinho, citando o caso do Pacto pela Saúde, que impõe a estados e municípios metas de melhoria em diversos indicadores, sob pena de intervenção federal ou corte de recursos. Um dos indicadores é o da violência de gênero, que gerou impasse entre os municípios de menor população. De acordo com o Pacto pela Saúde, de 2006, as prefeituras devem informar as ocorrências ao governo federal. No entanto, os funcionários municipais resistem, não por princípio, mas por aspectos circunstanciais.
“O funcionário da saúde se sente ameaçado pelo agressor, já que é um ambiente em que todos convivem, todos se conhecem. Não é como nas cidades grandes”, explica Marinho. “Quando um pediatra atende uma criança vítima de abuso numa zona rural, se há uma denúncia, o agressor sabe quem o denunciou, porque o médico vai àquele posto só uma ou duas vezes por semana. Os municípios reclamam que isso põe em risco o profissional da saúde”, relata. No Brasil, o atendimento médico às vítimas de violência sexual é regulado pela Lei nº 12.845, de 2013. Desde 2006, o Ministério da Saúde conta com um Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes, visando aprimorar a notificação dos casos.
Além do social
“Quando falo em determinação social, estou falando de política, economia, ambiente e o social propriamente dito”, explica Buss. De acordo com ele, os determinantes econômicos vão em duas direções: tanto as desigualdades econômicas causando efeitos sobre a incidência de doenças quanto as doenças impactando a economia. A paralisia econômica decorrente do isolamento social, no caso do coronavírus, pode ser considerada um caso extremo de impacto econômico, mas as mortes e doenças decorrentes da poluição em grandes cidades e as enfermidades causadas por más condições de moradia também impactam a economia. Em 2012, o Laboratório de Poluição Atmosférica da USP, coordenado por Saldiva, calculou que uma redução de 10% da poluição no município de São Paulo pouparia 114 mil vidas, o que corresponderia a uma economia de R$ 10 bilhões.
Agora a expectativa é de um forte impacto econômico da pandemia, sobretudo entre os mais pobres. Em editorial publicado pela revista The Lancet, os economistas Faheem Ahmed, Na’eem Ahmed, Christopher Pissarides e Joseph Stiglitz, os dois últimos vencedores do prêmio Nobel de Economia, estimam que cada ponto percentual de queda do Produto Interno Bruto (PIB) mundial, causado pelo vírus Sars-CoV-2, lançará 10 milhões de pessoas na pobreza. Ainda não se sabe, porém, quão grave será a recessão, tampouco o tempo que vai durar. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) estimou que as economias latino-americanas devem encolher pelo menos 1,8% este ano, mas não descarta que a queda na região chegue a 4% do PIB. Os dados estão no relatório “América Latina e Caribe ante a pandemia da Covid-19: Efeitos econômicos e sociais”.
Artigos científicos
MARINHO DE SOUZA, Maria de Fátima et al. Microcephaly in Brazil: Prevalence and characterization of cases from the information system on live births (Sinasc), 2000-2015. Epidemiologia e Serviços de Saúde: Revista do Sistema Único de Saúde do Brasil, v. 25, n. 4, p. 701-12, 2016.
AHMED, Faheem e AHMED, Na’eem et al. Why inequality could spread Covid-19. The Lancet Public Health, 2020.