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Artes visuais

Museus em quarentena

Fontes de entretenimento e pesquisa, instituições buscam oferecer programação on-line, mas a difusão dos acervos brasileiros na internet está longe de ser uma realidade

Considerado o mais importante acervo de arte europeia do hemisfério sul, o Museu de Arte de São Paulo não tem data prevista para reabertura

Léo Ramos Chaves

Desde meados de março, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19, museus e instituições culturais do mundo inteiro foram gradativamente fechando as portas por tempo indeterminado, com o objetivo de evitar aglomerações e, assim, tentar reduzir a disseminação do vírus Sars-CoV-2. Na impossibilidade de receber visitantes, esses espaços trataram de construir alternativas para oferecer acesso on-line aos acervos, que vão da visualização de obras pontuais até a realização de tours virtuais completos, sem restrições de público. Para além do entretenimento, muitos desses acervos também constituem fontes fundamentais de investigação científica. Desde o início da quarentena, alguns deles têm registrado recorde no número de visitantes. 

É o caso do Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba, Paraná, cujo aumento de acessos virtuais surpreendeu Juliana Vosnika, diretora-presidente da instituição especializada em artes visuais, arquitetura e design. O link, que costuma ser acessado por pesquisadores, dispõe de 7 mil obras digitalizadas, com imagens em baixa resolução e informações técnicas, como dimensões e número de identificação museológica dos objetos. “Se compararmos o período que vai de 1º de janeiro a 11 de maio de 2019 com o mesmo período deste ano, teremos um número de acessos 22 vezes maior ao link voltado para pesquisa. Os 2.154 acessos do ano passado saltaram para 47.500 neste ano”, afirma. “Antes da pandemia recebíamos muitas visitas presenciais em nosso centro de documentação e pesquisa. Tudo leva a crer que, com o fechamento do museu em 17 de março, esse público passou a fazer pesquisas on-line.”

A difusão de acervos dos museus brasileiros na internet, no entanto, está longe de ser uma realidade. Segundo a TIC Cultura 2018, pesquisa realizada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil para investigar o uso das tecnologias de informação e comunicação nos equipamentos culturais brasileiros, apenas 15% das instituições do país disponibilizam seu conteúdo na internet. “Essa é uma das principais dificuldades dos investigadores que dependem dos museus para ter acesso aos seus objetos de pesquisa durante a pandemia”, constata a antropóloga Stela Politano, que faz doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na Universidade Estadual de Campinas (IFCH-Unicamp) sobre o artista pernambucano Maurício Nogueira de Lima (1930-1999) e também atua como curadora do acervo do concretista, no instituto que leva seu nome, em Campinas, interior de São Paulo.

Na avaliação de Amanda Oliveira, coordenadora substituta da Coordenação de Arquitetura de Informação Museal do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), órgão ligado ao Ministério do Turismo, muitos dos museus do país só agora, em plena pandemia, estão despertando para a importância de disponibilizar seus acervos. “O universo virtual é uma novidade para grande parte deles”, diz ela. De acordo com a TIC Cultura 2018, apenas 26% dos museus dispõem de site próprio. São poucas também as ferramentas que poderiam ampliar o acesso às atividades e aos equipamentos de maneira remota, como a transmissão de vídeos ao vivo ou a possibilidade de visita virtual. Para se ter ideia, apenas 10% dos museus brasileiros disponibilizavam recurso de visita virtual em seus sites, à época da pesquisa, em 2018. 

Léo Ramos Chaves Temporariamente fechado, o MAC-USP constitui exceção: seu acervo começou a ser digitalizado no início dos anos 1980Léo Ramos Chaves

Humanidades digitais
Nesse sentido, o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP) constitui exceção. Seu acervo começou a ser digitalizado no início dos anos 1980 e, desde 2017, a instituição vem desenvolvendo projeto de pesquisa em que discute metodologias utilizadas no trato com acervos museológicos. “O principal objetivo é integrar o site da instituição ao nosso banco de dados digital, que vem sendo construído desde os anos 1980 e conta hoje com 9.049 obras, de suas cerca de 10 mil catalogadas”, explica Ana Gonçalves Magalhães, curadora e vice-diretora do MAC-USP. “Toda a atualização em nosso banco de dados, como a chegada de novas obras, subirá automaticamente para o site.”

Atualmente 8.185 dessas obras, produzidas por 2.398 artistas, já estão disponíveis para consulta. Em uma primeira fase, as obras foram disponibilizadas na internet apenas com informações básicas. “Na segunda etapa, que está sendo concluída agora, devemos oferecer uma ficha mais completa, com histórico de exposições e publicações”, prossegue Magalhães, para completar: “Quando a migração estiver completa, nossa ideia é criar uma linha do tempo no site, com uma cronologia das exposições realizadas pelo museu, a exemplo do que fez o MoMA [Museum of Modern Art], de Nova York”.

Dois grandes desafios permeiam o projeto, segundo a curadora. Um deles é o custo financeiro da empreitada. “Trata-se de uma infraestrutura cara, que inclui não apenas os recursos tecnológicos, mas também o treinamento de pessoal e a manutenção do sistema”, aponta. Outra questão é articular uma equipe multidisciplinar que, no caso, inclui pesquisadores do Instituto de Física, do Museu Paulista, do Museu de Zoologia e do Museu de Arqueologia e Etnologia, todos da USP, além do Centro Memória Unicamp e profissionais de tecnologia da informação. “Até há pouco tempo, quem era da área de humanas não tinha o hábito de dialogar com áreas técnicas. Isso vem mudando desde os anos 2000, quando o mundo entrou na chamada era das humanidades digitais, mas trata-se de um universo ainda muito novo, sobretudo no Brasil”, observa Magalhães.

Deusa indígena
“Os custos de implementação e manutenção da infraestrutura tecnológica, assim como a necessidade de mão de obra especializada dificultam o processo de digitalização, armazenamento e, por fim, a disponibilização na internet de acervos de museus, entre outras instituições culturais brasileiras”, diagnostica Dalton Lopes Martins, professor do curso de Biblioteconomia e do Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação da Universidade de Brasília (UnB). Em relação à veiculação dos acervos na internet, há ainda as limitações derivadas de direitos autorais, como lembra a advogada Mariana Giorgetti Valente, diretora do InternetLab, centro independente de pesquisa nas áreas de direito e tecnologia, e coordenadora do Creative Commons Brasil. “Se a obra não estiver em domínio público ou com uma licença livre,  vários de seus usos podem depender de autorização do autor ou de seus herdeiros.”

“No Brasil, falta uma política nacional para acervos digitais em rede, capaz de criar marcos de referência e instruções normativas que apoiem as instituições nesse sentido”, indica Martins. Enquanto isso não acontece, ele investe no Tainacan, software livre e gratuito que vem sendo desenvolvido desde 2014, à frente do grupo de pesquisa Laboratório de Inteligência de Redes, a partir de um projeto de cooperação firmado entre o então Ministério da Cultura e a Universidade Federal de Goiás (UFG). “O Tainacan funciona como plugin, que, ao ser conectado a um site desenvolvido com a plataforma WordPress, uma das mais populares e versáteis da internet, consegue importar e criar catálogos do acervo já digitalizado, além de disponibilizar essa informação na web e nas redes sociais”, explica o pesquisador, que à época de desenvolvimento do projeto coordenava o laboratório na UFG. “A ideia foi fazer um software de baixo custo, que também pudesse se adaptar às necessidades técnicas de organização de acervos e coleções digitais dentro da precária realidade dos museus brasileiros.”

Em 2016 o Ibram se interessou pela ferramenta, cujo nome homenageia uma deusa indígena. Atualmente, 22 dos 30 museus sob a alçada do órgão federal utilizam a plataforma, com 16 museus com acervo publicado, sendo 15 mil itens acessíveis nos respectivos sites. O Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, disponibilizou on-line mais de 500 pinturas de seu acervo museológico, composto por mais de 170 mil itens. Também no Rio de Janeiro, o Museu Villa-Lobos  permitiu o acesso a cerca de 1.800 imagens de sua coleção de fotografias. Além desses museus, mais de uma centena de instituições de todo o país, como a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), localizada em Porto Alegre, utiliza a ferramenta. Ao todo, cerca de 66 mil imagens já circulam na rede graças ao Tainacan, projeto que, além do Ibram, tem hoje como parceiros a Fundação Nacional das Artes (Funarte) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

No momento, Martins dedica-se a um projeto de pesquisa que busca lidar com os desafios envolvidos na integração de repositórios digitais das instituições que já dispõem de acervos digitalizados, disponíveis em plataformas abertas. A meta é criar uma ferramenta de busca para reunir em uma mesma plataforma instituições federais como bibliotecas, museus e centros culturais. “Como essa informação está espalhada pela rede, o usuário fica perdido. Às vezes, nem sabe que determinada instituição existe e pode, por exemplo, ser útil para seu projeto de pesquisa”, explica Martins, que vê, nessas bases, grande potencial de alimentação de “novos fluxos de inovação e reúso de conteúdos pela indústria criativa”. 

Reprodução Com a pandemia, no Brasil e no exterior museus trataram de construir alternativas para oferecer acesso on-line aos acervosReprodução

Trabalho colaborativo
Em 2013, quando fechou para reforma, o Museu Paulista da Universidade de São Paulo, mais conhecido como Museu do Ipiranga, passou a oferecer em seu site cerca de 80% de seu acervo de mais de 100 mil peças, entre objetos e imagens, e mais de 200 metros lineares de documentação textual (cerca de 300 mil papéis). Mais tarde, em 2017, a tradicional instituição tomou uma decisão ousada: também levou parte desse material para os projetos Wikimedia, em especial a enciclopédia colaborativa Wikipédia, em que é possível baixar as imagens em alta resolução e usá-las livremente. Atualmente, podem ser acessados ali 24 mil itens do Museu Paulista as coleções de pinturas, fotografias e mapas e o acervo com 1.400 itens do aviador e inventor Santos Dumont (1873-1932). A historiadora Solange Ferraz de Lima, diretora do museu, não esconde o entusiasmo com o projeto. “É uma troca muito rica: disponibilizamos um acervo qualificado em uma plataforma que permite colaborações. Essas, por sua vez, podem aprimorar nossa pesquisa.” 

A iniciativa do Museu Paulista faz parte do projeto Glam (Galerias, Bibliotecas, Arquivos e Museus) da Wikipédia, que já publicou itens de mais de 150 instituições no mundo. A primeira delas foi a Biblioteca de Alexandria, no Egito, em 2008. Depois vieram, entre outros, o British Museum, de Londres, no Reino Unido, o Metropolitan Museum, em Nova York, nos Estados Unidos. Por aqui, esse processo é desenvolvido, em parte, de forma voluntária pelo Wiki Movimento Brasil, que tem à frente João Alexandre Peschanski, da Faculdade Cásper Líbero e pesquisador associado do Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática (NeuroMat), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP. Ele conta que, além do Museu Paulista, outras instituições brasileiras abraçaram essa ideia, como o Museu de Anatomia Veterinária da USP e o Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro – em 2019, os conteúdos dessas três instituições brasileiras chegaram a quase 50 milhões de visualizações por mês. “O objetivo do Glam é fazer com que a informação guardada em museus e institutos culturais possa ser acessada pela internet por qualquer um que por ela se interesse. Livremente e sem custos”, resume Peschanski. 

Projetos
1. Coletar, identificar, processar, difundir: O ciclo curatorial e a produção do conhecimento (nº 17/07366-1); Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Ana Gonçalves Magalhães (MAC-USP); Investimento R$ 1.840.776,89.
2. Interoperabilidade entre os repositórios digitais do patrimônio cultural brasileiro: da Web Semântica e dados abertos ligados às ferramentas de busca e recuperação da informação (nº 18/23068-3); Modalidade Auxílio à Pesquisa ‒ Regular; Convênio MCT/MC; Pesquisador responsável Dalton Lopes Martins (UnB); Investimento R$ 68.624,00.

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