Todos os continentes bateram seu recorde de temperatura média, com exceção da Oceania e da Antártida
Dia com temperatura acima dos 35 ºC na cidade de São Paulo em setembro de 2024
Paulo Pinto/Agência Brasil
No dia 10 de janeiro, a Organização Mundial de Meteorologia (WMO) deu uma notícia que se desenhava havia alguns meses: 2024 bateu 2023 e se tornou o ano mais quente desde meados do século XIX. Ao longo do ano passado, a temperatura média da superfície do planeta foi 1,55 grau Celsius (ºC) acima da média estimada de 13,6 ºC para o período de 1850 a 1900, considerado como representativo da era pré-industrial. Em 2023, o aumento tinha sido de 1,45 ºC, nas contas da WMO. Foi a primeira vez que o aquecimento global rompeu a barreira de 1,5 ºC durante um ano calendário, de janeiro a dezembro.
Firmado em 2015, o Acordo de Paris, principal tratado climático internacional, tem como objetivo diminuir as emissões de gases de efeito estufa a fim de limitar o aumento da temperatura planetária a 1,5 ºC em relação ao nível da época pré-industrial. Embora alto, esse patamar de aquecimento é considerado o teto aceitável para que os países possam se adaptar, com razoável grau de segurança, às mudanças climáticas e mitigar seus impactos sobre seu território e população.
O número da WMO tem uma margem de incerteza de 0,13 ºC, para cima ou para baixo, e foi calculado a partir da análise e da consolidação dos valores obtidos por seis serviços climáticos independentes. Três são de instituições norte-americanas: a agência espacial (Nasa), a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa) e a entidade não governamental Berkeley Earth. Os outros três são o Copernicus, da União Europeia, o Met Office, do Reino Unido, e a Agência Meteorológica do Japão. Para amplificar sua mensagem de alerta, em razão do incremento recente do aquecimento global e da ocorrência mais frequente de eventos extremos, como os incêndios na região de Los Angeles, nos Estados Unidos, uma área alvo de secas intensas e ventos fortes, os seis serviços concordaram em divulgar no mesmo dia seus dados relativos a 2024. Normalmente, cada organização libera seus números em algum momento de janeiro, no dia em que lhe for mais conveniente.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Nas medições de todos os seis serviços, que usam metodologias e dados primários ligeiramente distintos, 2024 foi o ano mais quente desde a segunda metade do século XIX. Os valores para a temperatura média do ano passado calculados por cada uma dessas instituições são muito similares, com diferenças de no máximo de 0,16 ºC. O Berkeley Earth e o Copernicus foram os serviços que registraram as maiores elevações de temperatura global em 2024 em relação ao período pré-industrial, com aumentos de 1,62 ºC e 1,6 ºC, respectivamente. O menor número foi obtido pela Noaa: uma subida de 1,46 ºC no ano passado em relação a meados do século XIX. As medidas dos seis centros confirmam a tendência de aumento da temperatura global, especialmente a partir dos anos 2010. Os últimos 10 anos são os 10 anos mais quentes da história recente.
“A história do clima está se desenrolando diante de nossos olhos. Tivemos não só um ou dois anos com quebra de recordes [de temperatura], mas uma série completa de 10 anos, acompanhada de um clima extremo e devastador, de níveis do mar em ascensão e derretimento de gelo. Tudo isso impulsionado pela emissão recorde de gases de efeito estufa em razão das atividades humanas”, disse a meteorologista argentina Celeste Saulo, secretária-geral da WMO, em comunicado de imprensa sobre os dados do ano passado.
Com exceção da Oceania e da Antártida, todos os continentes registraram recorde de temperatura média em 2024. O mesmo foi verificado com a temperatura média sobre os oceanos fora das latitudes polares. Marcas nunca antes vistas aparecem nos mais diferentes tipos de estatísticas obtidas ou compiladas pelos serviços climáticos. Uma análise feita pela Berkeley Earth, a partir de dados globais e regionais, estimou que 104 países bateram seu recorde de temperatura média anual em 2024. Cerca de 3,4 bilhões de pessoas, 40% da população da Terra, viveram o período mais quente de suas existências, especialmente na Ásia, África, américas Central e do Sul e Leste Europeu.
O Brasil foi um dos lugares do globo em que 2024 foi o ano mais quente já registrado. Segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), a média das temperaturas no país ficou em 25,02 °C, a maior desde 1961, quando esse tipo de dado passou a ser produzido. Em 2023, agora rebaixado para a condição de segundo ano mais quente no Brasil, esse valor tinha sido de 24,92 °C. O número de 2024 foi 0,79 °C acima da média histórica de temperatura do país durante o período de 1991 a 2020. “Ocorreu o esperado, dentro dessa tendência de bater recordes ano após ano”, comenta a meteorologista Danielle Barros Ferreira, do Inmet.
Tonga Meteorological Service Erupção de vulcão submarino em 2022 no arquipélago de Tonga liberou 150 milhões de toneladas de vapor-d’água na alta atmosfera, evento que pode ter contribuído para aquecer o planeta nos dois anos seguintesTonga Meteorological Service
Em quatro estados, todos do centro-norte do país, o calor esteve mais de 1 ºC acima da média histórica: Roraima (1,6 ºC), Mato Grosso do Sul (1,5 ºC), Mato Grosso (1,4 ºC), e Rondônia (1,2 ºC). Por ter a maior parte de seu território em área tropical, a temperatura média sobre a superfície do Brasil é bem mais elevada do que a de todo o planeta. Em um ano de calor global sem precedentes na história recente, como foi 2024, a temperatura média da Terra foi, nas contas do serviço europeu Copernicus, de 15,10 ºC, praticamente 10 graus abaixo da do Brasil.
O recorde global de calor em 2024 era previsto. Com exceção de 2020, o primeiro ano da pandemia de Covid-19, as emissões planetárias de gases de efeito estufa, como dióxido de carbono, metano e óxido nitroso, não param de subir (ver Pesquisa FAPESP nº 346). O cenário torna impossível prever um resfriamento significativo do clima na Terra no curto prazo. Desde os anos 1970, a temperatura média global tem crescido por volta de 0,2 °C por década. Paralelamente a essa tendência de alta, ocorrem flutuações inesperadas, tanto para cima como para baixo, que podem proporcionar um refresco passageiro ou amplificar ainda mais o sufoco.
Ainda assim, o ritmo de crescimento do aquecimento global nos últimos 10 anos é impressionante. As temperaturas de 2023 e 2024, os dois anos mais quentes desde o século XIX, foram tão altas que ultrapassaram em cerca de 0,2 ºC as previsões dos modelos climáticos. Em vez de estar atualmente em 1,3 ºC, o aquecimento global bateu, precocemente, na casa do 1,5 ºC nesses dois anos.
Alexandre Affonso / Revista Pesquisa FAPESP
Não há nenhuma dúvida de que o grande motor da subida dos ponteiros nos termômetros é a emissão de gases de efeito estufa produzidos por atividades humanas, como a queima de combustíveis fósseis e a promoção de desmatamentos e queimadas em florestas e áreas verdes. Mas alguns dados sugerem que talvez fatores localizados, alguns aparentemente pontuais, outros mais duradouros, possam ter amplificado a tendência de alta da temperatura global em 2023 e 2024.
A lista dessas causas secundárias inclui níveis recordes de vapor-d’água no topo da atmosfera em 2024, redução acentuada de nuvens de baixa altitude, sobretudo em 2023, e diminuição na produção de um tipo de poluição liberada por navios em rotas oceânicas, as partículas (aerossóis) de dióxido de enxofre (SO2). O vapor-d’água esquenta a atmosfera, as nuvens baixas e os aerossóis (apesar de ruins para a saúde) diminuem as temperaturas na superfície. Parte do excesso de vapor-d’água – em 2024, foram medidos os maiores níveis desse gás na alta atmosfera fora das zonas polares dos últimos 33 anos – é atribuída à erupção do vulcão submarino Hunga Tonga-Hunga Ha‘apai, vizinho ao arquipélago de Tonga, no sul do Pacífico, em janeiro de 2022.
Essa foi a maior explosão sob o mar já registrada pela instrumentação moderna. O evento injetou na alta atmosfera, a altitudes superiores a 50 quilômetros, cerca de 150 milhões de toneladas de vapor-d’água, uma quantidade nunca antes observada. A erupção de grandes vulcões terrestres, como o filipino Pinatubo em junho de 1991, libera grandes quantidades de aerossóis compostos de dióxido de enxofre, que podem resfriar um pouco o clima da Terra por breves períodos. Esses eventos levam os aerossóis até a estratosfera, a segunda camada da atmosfera, bloqueando parte da radiação solar que chega à superfície. No caso do monte submarino de Tonga, a quantidade de vapor-d’agua ejetada foi muito maior do que a de aerossóis, o que pode ter contribuído para turbinar ligeiramente as temperaturas nos dois últimos anos.
No entanto, a hipótese não é consenso entre os especialistas. “Estamos emitindo uma quantidade de gases de efeito estufa decorrentes de atividades humanas que é o dobro do que o planeta poderia suportar sem ter de aumentar a sua temperatura atmosférica”, comenta o meteorologista Gilvan Sampaio, coordenador-geral da área de Ciências da Terra do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Além disso, o último El Niño também contribuiu para os recordes de calor dos dois últimos anos.”
Apu Gomes/Getty ImagesTempo mais seco do ano passado intensificou os incêndios de janeiro na área de Los AngelesApu Gomes/Getty Images
Fenômeno periódico de origem natural, o El Niño se caracteriza pelo aquecimento anormal das águas superficiais do centro do Pacífico Equatorial. A alteração aquece o planeta e altera o padrão de chuvas e secas em várias partes do globo. O mais recente teve início em junho de 2023 e terminou em maio de 2024. Foi forte, mas não bateu nenhum recorde ligado diretamente ao fenômeno. Desde então, o Pacífico entrou numa fase neutra que agora parece se encaminhar para uma fraca La Niña (o inverso do El Niño), o resfriamento das águas dessa região do oceano.
Historicamente, a ocorrência de La Niña diminui um pouco a tendência dominante de aumento do aquecimento global. Entre 2020 e 2023, houve uma sucessão de três anos com a ocorrência desse fenômeno, de intensidade entre fraca e moderada. Ainda assim, recordes de elevação de temperatura foram quebrados nesse período. Alguns pesquisadores suspeitam de que a La Niña esteja perdendo sua capacidade de jogar para baixo o ponteiro dos termômetros. “A atmosfera está confusa e estamos passando por uma fase de transição”, diz o meteorologista Humberto Barbosa, coordenador do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). “Não dá mais para analisar o clima como fazíamos há 30 anos.”
Para a oceanógrafa Regina Rodrigues, do Laboratório de Extremos Climáticos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), não se pode descartar o possível papel do enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc) no aumento recente das temperaturas globais. A Amoc leva água quente e superficial do Atlântico Sul para o Norte e traz água fria e profunda da Groenlândia até a ponta da América do Sul. Vários estudos recentes apontam que a circulação oceânica está atualmente em seu período mais fraco neste milênio, tendo perdido 15% de sua intensidade. Seu eventual colapso poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século. “Ainda não temos certeza disso, mas é possível que já estejamos vendo o efeito do enfraquecimento da Amoc sobre o clima terrestre”, comenta Rodrigues, autora de vários trabalhos sobre circulação.
Apesar de as temperaturas recordes de 2023 e 2024 terem atingido precocemente o teto de 1,5 °C para o aquecimento global, alguns pesquisadores dizem que ainda é prematuro dizer que a meta do Acordo de Paris foi ultrapassada. “Um único ano com [aumento de] temperatura maior que 1,5 °C não significa que não conseguimos cumprir as metas de longo prazo do acordo, que são medidas [para serem tomadas] ao longo de décadas, não em um ano individual”, disse Celeste Saulo, da WMO. “Contudo, é importante reconhecer que cada fração de grau de aquecimento é importante. Quer estejamos em um nível abaixo ou acima de 1,5 °C de aquecimento, cada incremento adicional aumenta os impactos nas nossas vidas, economias e no nosso planeta.”
A reportagem acima foi publicada com o título “Calor recorde em 2024” na edição impressa nº 348, de fevereiro de 2025.
É permitida a republicação desta reportagem em meios digitais de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. É obrigatório o cumprimento da Política de Republicação Digital de Conteúdo de Pesquisa FAPESP, aqui especificada. Em resumo, o texto não deve ser editado e a autoria deve ser atribuída, assim como a fonte (Pesquisa FAPESP). O uso do botão HTML permite o atendimento a essas normas. Em caso de reprodução apenas do texto, por favor, consulte a Política de Republicação Digital.