Deparar-se com a edição brasileira de O Corego traz a sensação de que a pesquisa em música antiga realizada no país encontrou seu rumo, goza de boa saúde e dá sinais cada vez maiores de robustez. Na bela publicação da Edusp, Ligiana Costa nos apresenta sua tradução do mítico tratado anônimo italiano do século XVII sobre a arte da encenação, o que por si só já traz importante contribuição para a literatura em português na área, dado que até hoje existiam apenas a transcrição do manuscrito original em italiano e sua tradução, para o inglês.
Eduardo CesarEntretanto, a obra organizada por Ligiana vai além, apresenta a tradução do tratado amparada por textos complementares de vários autores brasileiros e estrangeiros, que nos ajudam a entender o ofício do corego, ao mesmo tempo em que contextualizam o então recém-inventado gênero de espetáculo cênico-musical, de peças inteiramente cantadas, que se consolidaria pelos séculos seguintes com o nome genérico de ópera. Deste modo temos, entre outros, textos sobre a história de O Corego (Paolo Fabbri), a poética nos séculos XVI e XVII (Paulo Mugayar Kühl) e a voz do cantor no século XVII (Jean-François Lattarico). Completando a coleção de textos, há a linda série de ilustrações de Georg Rembrandt Gütlich, que cumpre o papel de dar ao leitor uma ideia do que poderiam ser os 43 desenhos citados, porém ausentes, no tratado. O trabalho de Gütlich dá vida e forma ao descrito pelo tratadista anônimo, e é uma pena que algumas das ilustrações tenham sido prejudicadas pela diagramação ao serem divididas em duas páginas. O cuidado na edição também aparece na encadernação diferenciada, original, com lombada aparente e capa em papel pergamentado que remete ao imaginário dos tratados manuscritos, de cadernos costurados à mão, numa edição primorosa, quase luxuosa para os padrões na área de música.
A publicação organizada pela tradutora de O Corego é, em sua complexidade e textos complementares, ela mesma, uma metáfora da própria ópera que, desde sua origem, é complexa, multidisciplinar (para se usar uma linguagem atual), “uma obra mista e feita com todos os artifícios” (nas palavras do próprio autor do tratado). Na obra, ao explicitar aquilo que o corego deve saber para exercer seu ofício, o autor desconhecido dá instruções precisas sobre o fazer de músicos, pintores, pedreiros, poetas, cantores, arquitetos, compositores, bailarinos e outros tantos profissionais envolvidos com a “arte da encenação”. É impossível não se admirar com a erudição do tratadista e seu implacável senso prático, que sempre torna à importância de se primar pelo decoro e a adequação, evitar o tédio do público e as despesas desnecessárias. Do mesmo modo, chama atenção a quase dificuldade do autor em nomear o profissional deste novo gênero de espetáculo, pois ele usa os termos ator, cantor e histrião, para denominar “aquele que atua cantando peças dramáticas”. Parece claro que paira uma indefinição quanto a tudo que cercava esta então nova atividade artística, o que é natural, dado que o espetáculo inteiramente cantado estava ainda em suas auroras.
DivulgaçãoE justamente por tratar de assunto pouco conhecido entre nós e cujo entendimento depende de um conjunto de informações que ainda não fazem parte de nossa formação acadêmica, é que a tradução de O Corego poderia trazer notas explicativas, falando das escolhas da tradução, esclarecendo passagens nebulosas do tratado. A tradução teria assim sua importância ampliada, podendo servir como referência para futuros trabalhos semelhantes e tão necessários para a área.
É louvável a capacidade de Ligiana Costa de relacionar sua pesquisa de pós-doutoramento, orientada por Mônica Lucas (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, ECA-USP), com textos de professores e pesquisadores brasileiros ligados a instituições como as universidades do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Federal do Paraná (UFPR), Estadual de Campinas (Unicamp), de Taubaté (Unitau) e USP, além de pesquisadores estrangeiros do peso do italiano Paolo Fabbri. Nesse sentido, seria importante breve apresentação dos autores dos capítulos que compõe a bela edição da Edusp, para que o leitor pudesse, ele próprio, ser capaz de vislumbrar a relação que se consolida entre instituições e pesquisadores brasileiros na área de interesse de O Corego.
Ao mesmo tempo em que dá suporte aos temas abordados pelo tratadista anônimo, cada um dos textos revela resultados de pesquisa de seus próprios autores. Temos aí um ciclo virtuoso de produção e compartilhamento de conhecimento, fundamental para o desenvolvimento de qualquer área. Por fim, os textos da orelha (Silvana Scarinci) e da contracapa (Ellen Rosand) ajudam a dimensionar o impacto da publicação de O Corego em português, especialmente no que se refere ao estudo e à produção de óperas do século XVII no Brasil.
Lucia Becker Carpena é professora de flauta doce nos cursos de graduação e pós-graduação em música do Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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