No futuro próximo, a Medicina, através de técnicas da Biologia Molecular, vai poder utilizar a terapia gênica no tratamento de doenças causadas por mutações genéticas e salvar da morte pacientes com moléstias raras e fatais. A técnica revolucionária é capaz de inativar o gene alterado e levar para dentro do organismo os genes naturais e normais, restabelecendo suas condições de funcionamento.
No caso da hipercolesterolemia familiar, por exemplo, uma doença do sistema endócrino que provoca o acúmulo de colesterol no sangue, a terapia gênica é capaz de solucionar o defeito que o paciente traz no receptor da LDL, lipoproteína de baixa densidade. Para isso, um gene normal (produzido in vitro), que codifica o receptor de LDL, é injetado no doente, livrando-o da morte iminente por enfarte.
Mas, para que a terapia gênica possa ser aplicada, é preciso descobrir, antes, as causas das mutações genéticas que resultam em doenças difíceis de diagnosticar. No Brasil, um grupo de pesquisadores da Disciplina de Endocrinologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) vem se dedicando ao estudo de várias doenças que afetam o sistema endócrino, com resultados animadores.
Juntos, os pesquisadores estão desenvolvendo o Projeto Temático Genética Molecular de Moléstias Familiares e Hereditárias dos Sistemas Endócrino e Neuroendócrino, coordenado pelo professor Geraldo Antonio de Medeiros-Neto, com apoio integral da FAPESP no valor de R$ 280 mil. Iniciadas há um ano, as pesquisas já permitiram o rastreamento de mutações no gene do receptor de insulina e detectaram uma nova mutação na proteína transportadora de sódio/iodeto, denominada simporter, além de terem coletado grande quantidade de dados clínicos e laboratoriais sobre os casos em estudo.
“Nosso objetivo é caracterizar, do ponto de vista molecular, as mutações gênicas envolvidas na fisiopatologia das doenças endócrinas de origem genética”, explica o professor Daniel Giannella Neto, da Disciplina de Endocrinologia, responsável pelo Laboratório de Endocrinologia Celular e Molecular (LIM-25), onde três grupos de pesquisadores estão atuando desde o ano passado.
Doenças mais comuns
A pesquisa consiste basicamente na identificação das mutações genéticas e a expressão do gene defeituoso em células in vitro, além do estudo de como este gene age ou deixa de agir, acumulando um número considerável de dados genéticos, moleculares e fisiológicos, que ajudam a explicar o mecanismo íntimo de cada doença.
As doenças familiares, segundo Giannella, ocorrem de acordo com a Lei de Mendel, quando uma mutação de linhagem germinativa é transmitida aos descendentes do indivíduo afetado. São moléstias de características únicas, cuja incidência média mundial é de um doente entre 20 mil a 40 mil o professor Daniel Giannella Neto dedica-se às mutações no receptor de insulina, o professor Geraldo Medeiros-Neto, às moléstias hereditárias do sistema tireóideo e o professor Sérgio Pereira de Almeida Toledo, à deficiência do hormônio de crescimento.
Um grande aliado dos pesquisadores é o novo Laboratório de Endocrinologia Celular e Molecular, montado especialmente para o projeto e equipado com aparelhos de última geração em Biologia Molecular, como o sintetizador de oligonucleotídeos e o seqüenciador automático de DNA. O primeiro sintetiza os reagentes imprescindíveis a qualquer técnica que envolva amplificação do DNA, enquanto o outro identifica a seqüência de bases do DNA de um gene, automaticamente.
Mutação nova e inédita
“Um dos principais resultados da pesquisa, até agora, foi a identificação de uma mutação totalmente nova e inédita, que afeta a proteína responsável pela captação do iodo pela célula tiroideana”, comunica o pesquisador Geraldo Medeiros-Neto. Segundo ele, sem essa proteína a célula tiroideana fica incapacitada de levar o iodo para fabricar hormônios.O resultado é uma grave deficiência da função da tireóide e o desenvolvimento de um bócio volumoso no paciente.
Graças à Biologia Molecular, os pesquisadores conseguiram retirar o gene defeituoso e colocá-lo em uma célula preparada. A partir daí, as células foram cultivadas com o gene mutado, permitindo investigar em laboratório por que este não funcionava. Conclusão: o gene anormal produzia uma proteína alterada, cerca da metade da proteína normal, que não conseguia transportar o iodo para dentro da célula.
Um outro caso, em que os pesquisadores foram bem-sucedidos, envolveu uma família com defeito na molécula de tireoglobulina. O grupo conseguiu detectar em uma mulher grávida, no sétimo mês de gestação, um feto com um bócio de grande volume. A criança foi tratada através de uma terapêutica inédita, que consistiu na introdução do hormônio tiroideano (tiroxina) diretamente no líquido amniótico.
Resultado: a criança nasceu no prazo biológico, sem o bócio e sem qualquer risco de vida. Para que isso fosse possível, a equipe de pesquisadores examinou o DNA de toda a família até diagnosticar o defeito no gene da tireoglobulina. Na história, foi constatado que o filho mais velho do casal nascera com bócio e hipotireoidismo.
Casos raros
O professor Giannella destaca um dos quatro casos de resistência à insulina que ele vem estudando, encaminhado ao Hospital das Clínicas pela médica Aline da Mota Rocha, de Campina Grande, na Paraíba: “Descobrimos que a paciente apresenta uma mutação rara ainda não identificada na região de ativação da tirosinoquinase do receptor de insulina”. O defeito no receptor de insulina não . permite a distribuição da glicose pelo corpo, que se acumula no sangue e pode causar diabetes Segundo o professor, neste caso particularmente foi observado, ainda nos exames clínicos, que a mutação determinava deformações na aparência física da paciente completamente diferentes daquelas determinadas por uma outra mutação ocorrida em área muito próxima, a cerca de quatro aminoácidos de distância.
Para chegar até o defeito, os pesquisadores rastrearam todos os 22 exons (regiões codificadoras das proteínas) do receptor de insulina da paciente, através da técnica SSCP (Single Strand Conformational Polymorphism). Esse método apontou a necessidade de fazer o seqüenciamento do exon número 20, local onde a mutação teria ocorrido. No momento, estão em estudo outros seis pacientes que apresentam quadro clínico semelhante, com mutações provavelmente em locais diferentes do gene do receptor de insulina.
Para o pesquisador, um maior conhecimento das mutações envolvidas nos casos de resistência insulínica vem facilitar, inicialmente, o diagnóstico de outros pacientes com um quadro semelhante, além de contribuir para o desenvolvimento de novas formas de tratamento.
Nanicos podem crescer
Os resultados mais visíveis e imediatos da pesquisa ocorreram na área de estudo do pesquisador Sérgio Toledo, professor associado da Disciplina de Endocrinologia. Ele vem pesquisando dois grupos que apresentam deficiência do hormônio de crescimento (GH): uma comunidade do município de Itabaianinha, em Sergipe, onde as pessoas têm estatura média de 1,10 m, e a comunidade de anões da cidade mineira de Desterro do Melo.
A proposta do trabalho dentro do projeto temático é caracterizar o gene desses pacientes no qual se previa existir uma mutação que causasse a doença. “Não chegamos a uma conclusão definitiva, mas há fortes evidências de que o gene alterado seja o do receptor do hormônio liberador do hormônio de crescimento”, explica o pesquisador.
Ele acredita que, em quatro meses, será possível caracterizar a mutação com absoluta certeza, através da clonagem e do seqüenciamento gênico. O trabalho inicial dos pesquisadores foi a caracterização do perfil endócrino dos pacientes, em que se constatou a deficiência isolada do hormônio de crescimento. Tratados com hormônios, eles ainda podem crescer.
Esse projeto de equipe também está aberto a pesquisadores associados e estagiários e já resultou em seis teses de pós-graduação. A pesquisa conta ainda com a colaboração de universidades de outros países como Argentina, Estados Unidos e Holanda, e seus resultados já foram publicados em revistas científicas internacionais. Além do professor Daniel Giannella, são pesquisadores associados: Meyer Knobel, Cecília Luiza Simões dos Santos, Célia Regina Nogueira, Cesar Y. Hayashida, Neusa Abelin, Patrícia Dahia, Marilza Ezabella e Isio Schulz.
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