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Economia

A cidadania no tempo digital

Governo eletrônico cresce no país, mas estudo aponta carências

Guilherme LepcaAté a década de 1970, quatro serviços públicos eram oferecidos aos brasileiros com a ajuda de novas tecnologias, representadas, na época, pelo telefone. Eram os números de emergência de três dígitos: 190, da Polícia Militar;192, do Pronto Socorro; 195, para a falta ou vazamento de água; e 199, da Defesa Civil. Nos últimos 15 anos, porém, a informatização da máquina pública acelerou: o país é, hoje, pioneiro em diversas áreas do chamado governo eletrônico, ou e-Gov. Entre os grandes avanços brasileiros, há a entrega de 98% das declarações de Imposto de Renda pela internet e o voto eletrônico.

Apesar de ser referência em inovação nas áreas eleitoral e tributária, o país precisa informatizar diversos setores da administração pública. Na maioria dos municípios o atraso é grande. A avaliação é de Florencia Ferrer, doutora em sociologia econômica pela USP, que coordenou o Núcleo de Estudos e Desenvolvimento em Governo Eletrônico (Ned-Gov), na Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), com apoio da FAPESP, e hoje dirige uma empresa que funciona como um think tank sobre o tema, a e-Estratégia Pública. A socióloga desenvolveu metodologias para medir a economia e a eficiência que as novas tecnologias possibilitam em administrações públicas como a do estado de São Paulo, projeto que contou com uma Bolsa Jovem Pesquisador da FAPESP.

A área de compras públicas é uma das que mais têm a avançar no uso de meios eletrônicos, como afirma a especialista. Se todas as aquisições de produtos e serviços realizados pelos governos federal, estadual e municipal ocorressem de forma eletrônica, o Brasil economizaria R$ 23 bilhões por ano, segundo seus cálculos. “Não há dúvidas quanto à redução de custos e de burocracia possibilitada pelo e-Gov, o que o torna mais necessário para economias emergentes”, diz.

O governo eletrônico ajuda a reduzir preços nas compras públicas porque permite não só aumento da concorrência como maior integração com a cadeia de fornecedores. “Empresas de todo o país, independentemente do porte, podem disputar a preferência, em igualdade de condições, desse que é o maior consumidor de produtos e serviços: o governo”, diz a socióloga, que aborda o tema em livros como Gestão pública eficiente – Impactos econômicos de governos inovadores (Editora Campus) e e-Government – O governo eletrônico no Brasil (Editora Saraiva).

A automação da administração pública pode contribuir para eliminar deficiências que favorecem a corrupção, segundo a pesquisadora. Calcula-­-se que, ao fechar as vias pelas quais a fraude faz escoar dos cofres públicos algumas dezenas de milhares de reais por dia, a economia representaria 10% daquilo que o Fisco arrecada por ano. “O governo eletrônico deve ser visto como sinônimo de democracia e transparência”, acrescenta.

No Brasil, a chamada informática pública começou já na década de 1970. Os primeiros a fazer grandes incorporações de tecnologia da informação foram o governo federal e os estaduais de São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Bahia, Ceará e Pernambuco. A partir dos anos 1990, gestões como as de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), em escala nacional, de Mario Covas (1995-2001), Geraldo Alckmin (2001-2006) e Aécio Neves (2003-2010), nos seus respectivos estados, foram algumas das que implantaram como prioridade uma agenda de e-Gov, como explica Florencia Ferrer. “As primeiras experiências ocorrem no que se refere às obrigações do cidadão com o Estado”, como explica a pesquisadora.

No âmbito tributário, as mudanças começaram há mais de uma década. O Brasil foi um dos primeiros países do mundo a ter declaração de IR por internet. Quando era obrigatória a declaração de isentos de CPF, apesar de esta fatia da população ser considerada de “excluídos digitais”, quase 70% declararam pela web. Esse modo se tornou o preferido por ser gratuito; opções como correio e casas lotéricas representavam custo. O pagamento de impostos de veí­culos foi um dos primeiros processos a migrar ao meio eletrônico. “Nota-se uma grande mudança na relação do cidadão com o poder público, uma vez que o e-Gov facilita a realização de tarefas que devem cruzar as estruturas burocráticas de vários departamentos”, observa a especialista.

Guilherme LepcaA entrega de serviços e a realização de trâmites ao cidadão são áreas onde há pouco uso de novas tecnologias, avalia a pesquisadora. Em âmbito municipal, também é raro encontrar tecnologia de ponta. “A maioria dos municípios não possui investimentos nem políticas direcionadas nesse sentido.” Porém, segundo diz, é cada vez maior o entendimento de que o acesso à internet e o ingresso na economia digital devem ser políticas públicas. Como exemplos, destaca, em âmbito federal, a Política Nacional de Banda Larga (PNBL) e, no estadual, o recente caso do Acre, que oferece internet gratuita em boa parte da capital.

Estudos realizados pela equipe de Florencia Ferrer avaliaram, a partir de metodologias próprias, a economia feita no estado de São Paulo com o uso de meios eletrônicos. Com a Bolsa Eletrônica de Compras (BEC), implantada em 2000, por exemplo, houve uma queda de 25% nos preços e de 51% no custo do processo de compras. Para as empresas fornecedoras, o custo de participar de licitações caiu mais: 93%.  Em termos absolutos, a economia anual é de cerca de R$ 94 milhões.

A versão eletrônica do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) levou o Estado a uma economia de R$ 20 por processo – caiu de R$ 22 para R$ 2. Para o cidadão, o diferencial é maior: antes da modernização, era preciso pagar, para licenciar o veículo, R$ 68 a um despachante ou ir pessoalmente ao Detran, o que o fazia ter despesas que, na média, somavam R$ 56. Esse trâmite hoje não é mais necessário, pois é possível que o pagamento seja realizado pela internet. O custo é apenas o da postagem do documento, de R$ 10, enviado para a casa do contribuinte. A mudança permitiu uma economia de R$ 715 milhões em termos absolutos. Ao mesmo tempo, houve aumento de 300% dessa arrecadação.

Com a adoção de meios eletrônicos, houve grande economia na emissão de documentos como carteira de identidade e certificação de antecedentes criminais. O custo médio total ponderado para todos os trâmites analisados é de R$ 47,08 para o processo tradicional, na Polícia Civil, e de R$ 34 para os postos do Poupatempo, uma redução de 29%: uma queda de R$ 50 milhões por ano nesses custos. A emissão de um boletim de ocorrência (BO) pode ser realizada hoje pela internet. A economia é grande, em comparação com o método antigo, que exigia ida às delegacias: para o cidadão, a redução de custos é de 88%, para o Estado, de 67%. “Da mesma forma como os setores produtivo e bancário já fazem há algum tempo, os governos, como prestadores de serviço, precisam adotar as novas tecnologias de forma intensiva e irreversível”, defende a especialista.

Florencia Ferrer ressalta que, para reestruturar a máquina pública – reduzir as despesas (custos de produção) e aumentar os financiamentos de capital (poupança) –, deve-se combinar não só a incorporação do governo eletrônico como a adoção de um novo tipo de gestão. “A tecnologia é um fator que facilita, acelera e melhora processos, mas não os determina”, ressalva. Ou seja, o governo eletrônico é um meio de modernização da gestão pública, mas depende fundamentalmente da mudança de gestão. “O governo eletrônico deve ser inserido numa política mais ampla de reforma do Estado, que contemple a análise e a reformulação de processos, de estrutura administrativa, de marco regulatório, do relacionamento entre os agentes, das funções do próprio Estado e do relacionamento do Estado com a sociedade civil.”

Entre as metodologias desenvolvidas para calcular a economia e a eficiência que as novas tecnologias possibilitam em administrações públicas, um dos destaques é o Binps (Benefícios sobre Investimentos Públicos). O índice apura e quantifica economicamente a redução de custos para o governo como consequência da inovação. Há outro índice, chamado Medidor de Benefícios Públicos, que compara custos de processos de gestão entre suas formas tradicional e inovada. Há o índice e-Licitações, que mensura o aumento de eficiência de compras públicas negociadas em licitações realizadas por meio de processos inovados. Seu objetivo é demonstrar os avanços que esses procedimentos acarretam na forma de executar o gasto público. O índice de Aderência a Governo Eletrônico (IA e-gov) foi criado para ir além de mensurações subjetivas e pesquisas de percepção sobre o fenômeno da corrupção. Demonstra o grau de eficiência decorrente do uso de meios eletrônicos em qualquer processo inerente à gestão pública, além do desvio do nível máximo de maturidade de e-Gov que esse processo pode atingir.

O líder mundial em serviços de e-Governo e inclusão digital é o Canadá. Outros países fizeram nos últimos anos esforços expressivos: Cingapura, por exemplo, chegou ao topo dos rankings internacionais sobre o setor ao executar com sucesso cinco planos nacionais de informática. Para sair da crise provocada pelo colapso da antiga União Soviética, a Finlândia passou de exportador de matérias-primas a exportador de tecnologia e tornou-se modelo de economia do conhecimento. O Sri Lanka foi o primeiro a adotar no mundo um programa nacional de e-Desenvolvimento com o apoio do Banco Mundial. “Esses são países que aproveitaram bem as TICs (Tecnologias da Informação e Comunicação) em suas estratégias de desenvolvimento socioeconômico”, afirma Peter Titcomb Knight, Ph.D. em economia por Stanford (EUA) e coordenador do projeto e-Brasil, organizador de e-Desenvolvimento no Brasil e no mundo (volume editado pela Yendis/ Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico).

Se antes era o líder em governo eletrônico entre os países da América Latina, o Brasil perdeu o posto para o Chile. Após o período militar, o primeiro governo democrático, de Patrício Aylwin (1990-1994), concentrou-se inicialmente na reestruturação política, constitucional e institucional. Foi apenas no governo de Eduardo Frei (1994-2000) que se iniciou a modernização da gestão pública, como explica Patricio Gutiérrez, coordenador para e-Gov na Secretaria Geral da Presidência no Chile. Com Ricardo Lagos (2000-2006), o governo eletrônico se tornou concreto. A administração chilena passou a incluir, sistematicamente, iniciativas para diminuir a brecha digital. Há aquelas destinadas à gestão dos centros de acesso comunitários, como infocentros, telecentros, bibliotecas públicas etc. E há outras orientadas para a oferta de conteúdos e serviços na internet. “Nos últimos 10 anos, o uso das novas tecnologias na administração pública levou a mudanças extraordinárias no Chile”, avalia o especialista, num dos capítulos de e-Desenvolvimento no Brasil e no mundo.

Os grandes custos acarretados pela implementação de softwares e construção da infraestrutura tecnológica podem ser transferidos, segundo Florencia Ferrer, para o setor privado. Ou ao menos parte deles. Ela dá como exemplo o governo do Arizona, nos Estados Unidos, que criou um sistema para licenciamento de carros feito pela internet. O site foi construído e é mantido pela IBM, que passou a receber 2% do valor de cada transação efetuada. O processamento on-line custa só US$ 1,60 – no processamento antigo custava US$ 6,60. Com isso, o Estado poupa dinheiro.

“O fornecimento de serviços governamentais pode contribuir na eficiência do setor empresarial com informação e simplificação dos procedimentos burocráticos, e melhorar o custo país.”

O projeto
O governo eletrônico no Brasil (nº 03/10454-7); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coordenadora Maria Florencia Ferrer – Fundap / USP; Investimento R$ 130.036,80

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