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Teoria

A cidade proibida

Equipes brasileiras colaboram no esforço de reunir a física do infinitamente pequeno à do infinitamente grande

NASA / SMITHSONIAN ASTROPHYSICAL OBSERVATORYSentado diante de uma mesa repleta de papéis com fórmulas matemáticas, o físico Élcio Abdalla apanha duas canetas esferográficas e bate levemente uma contra a outra, causando um estalo. “Um choque com esse nível de energia provoca deformações nas canetas que conseguimos descrever com as leis de Newton”, afirma Abdalla, referindo-se às expressões matemáticas formuladas há quase 300 anos pelo inglês Isaac Newton para explicar o movimento dos corpos na superfície do planeta ou mesmo no espaço. No entanto, continua Abdalla, seria necessário recorrer aos conceitos de uma área mais recente da física – a Mecânica Quântica, criada no início do século passado – para justificar as transformações que ocorreriam nessas canetas caso uma fosse lançada contra a outra com uma energia alta o suficiente para fazê-las em pedaços ou mesmo fundi-las. Agora, se fosse possível arremessar uma caneta contra a outra com uma energia elevada a ponto de o impacto pulverizar os átomos das canetas em seus componentes mais elementares, os quarks, os físicos não teriam a menor idéia do que ocorreria em seguida. “As teorias de que dispomos não conseguem prever o comportamento da matéria nesse nível de energia”, diz Abdalla, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP).

Calcula-se que para isolar os quarks formadores de uma partícula é necessário aquecê-la a uns 2 trilhões de graus, temperatura bilhões de vezes mais elevada que a do interior do Sol. É que só nesse nível de energia os componentes mais elementares da matéria conseguem superar as quatro forças da natureza – a gravidade e as forças eletromagnética, nuclear fraca e nuclear forte – que os mantêm unidos no núcleo dos átomos. Tamanha energia, claro, não se encontra em um canto qualquer do cosmo. Só deve existir em situações muito específicas, como os primeiros instantes após o Big Bang, a gigantesca explosão ocorrida que teria originado o Universo e até mesmo o tempo há 13,7 bilhões de anos ou ainda em regiões próximas a poderosos buracos negros, os maiores devoradores de matéria e energia do cosmo.

Investigando essas situações pouco comuns, Abdalla e outros físicos de São Paulo, Campinas, São Carlos e Belém, no Pará, vêm nos últimos cinco anos desvendando fenômenos que ajudam a caracterizar melhor os buracos negros e o comportamento da própria natureza ao redor desses potentes aspiradores cósmicos dos quais nem a luz escapa. Assim, tentam aproximar a física do infinitamente pequeno à do infinitamente grande. Obviamente, ainda está longe de terminar esse trabalho de construção de outra forma de pensar a origem e o destino do Universo.

De acordo com a teoria do Big Bang, à medida que se recua no tempo rumo a essa explosão primordial, encontra-se um Universo mais e mais quente e denso, com a matéria concentrada em um espaço cada vez menor. Mas a partir de determinado grau de condensação as duas teorias que melhor descrevem os fenômenos da natureza e são consideradas os alicerces da física moderna – a Mecânica Quântica e a Relatividade Geral, que, respectivamente, tratam do mundo das partículas e do comportamento de estrelas, planetas e galáxias – simplesmente param de funcionar. E até o momento os físicos não conceberam uma teoria completa e consistente, aceita pela maioria deles, capaz de explicar o que deve ter ocorrido em um período muito antes do primeiro segundo de vida do cosmo, no qual toda a matéria e energia que existem hoje já estiveram comprimidas em um espaço trilhões de vezes menor que a ponta de uma agulha.

“Nessa escala se observa a confluência da física de partículas de altíssimas energias e da cosmologia, porque ela guarda a história dos tempos em que o hoje infinitamente grande era infinitamente pequeno”, comenta o físico Luiz Carlos de Menezes, da USP, que no livro A matéria – uma aventura do espírito: fundamentos e fronteiras do conhecimento físico define a física como um jogo no qual se tenta identificar a totalidade onde só se vêem fragmentos, procurar a permanência onde só se percebem transformações e abranger o maior número de fenômenos com o menor número de princípios.

Nesse ambiente especial medem-se as principais grandezas físicas (tempo, massa, energia e comprimento) em uma escala específica, a chamada escala de Planck – referência às unidades de medida definidas no início do século passado pelo físico alemão Max Planck, o criador da física quântica. A partir de três grandezas constantes do Universo, Planck conseguiu estabelecer uma espécie de métrica da natureza, em que as unidades de medida não variam de um país para outro, como acontece com o metro, usado no Brasil, ou a milha, adotada para medir comprimento nos países anglo-saxões. Alberto Vazquez Saa, físico teórico da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), classifica de extremos os fenômenos da escala de Planck. “São extremamente rápidos, extremamente energéticos e se passam em espaços extremamente diminutos”, diz. Apenas para se ter uma idéia de quão extremos são esses fenômenos, nessa escala a energia de uma única partícula atômica como o elétron corresponderia à de um carro viajando à incrível velocidade de 7 mil quilômetros por hora – se esse carro existisse, daria a volta no planeta em menos de seis horas.

O interesse dos físicos por algo tão complexo vai muito além do prazer de passar várias horas fazendo e refazendo cálculos que tentam traduzir em números os fenômenos da natureza. “Se realmente existe a intenção de compreender por que o Universo é como o conhecemos hoje, é necessário investigar o que ocorreu próximo ao Big Bang e, nesse caso, temos de saber lidar com essa escala de energia”, afirma o físico Daniel Vanzella, do Instituto de Física da USP em São Carlos, interior paulista. Como a serpente que morde a própria cauda, essa escala de energia une o princípio ao fim, criação e destruição, uma vez que é comum tanto ao Big Bang quanto aos buracos negros, em especial na fase final de sua existência.

A grande dificuldade é que para esclarecer os fenômenos da escala de Planck é necessário levar em consideração as quatro forças da natureza. E ainda não existe uma teoria única, consistente e aceita pela maioria dos físicos, capaz dessa façanha. Uma das candidatas mais populares nos últimos anos é a Teoria das Cordas, considerada elegante do ponto de vista matemático, mas vista com ressalva por boa parte dos físicos porque nenhuma de suas previsões foi comprovada até o momento.

Quem suspeita que esse não seja o caminho aposta em uma saída aparentemente mais simples: a união de duas teorias físicas já consagradas: a Relatividade Geral, formulada há 90 anos por Albert Einstein, com a Mecânica Quântica, proposta inicialmente por Planck e desenvolvida nas três primeiras décadas do século passado por físicos como Niels Bohr, Paul Dirac, Werner Heisenberg e Erwin Schrödinger, entre outros.

Os últimos 50 anos mostraram que não é tão simples assim superar esse desafio porque há uma incompatibilidade conceitual entre a Relatividade Geral, que trata dos fenômenos do mundo macroscópico em que a gravidade assume um papel relevante, e a Mecânica Quântica, a física do mundo submicroscópico, governado pelas outras três forças da natureza. A diferença mais importante entre elas é que a primeira considera o espaço uma grandeza que se mede em valores contínuos – pode assumir qualquer valor que se possa imaginar entre dois números naturais, assim como entre os números 2 e 3 há o 2,2 ou o 2,742. Já a Mecânica Quântica descreve os fenômenos medidos em valores discretos, determinados somente pelos números naturais. Fica mais fácil entender essa diferença imaginando cada uma dessas teorias como caminhos que levam do chão a uma passarela sobre uma avenida. Enquanto o primeiro caminho seria uma rampa, em que se sobe gradual e continuamente, o segundo seria uma escada, em que se ganha altura aos saltos, degrau por degrau.

Por causa dessa incompatibilidade, ainda hoje a Teoria do Tudo é para a física o que a Cidade Proibida, no coração de Pequim, foi para a população chinesa, na opinião de George Avraam Matsas, do Instituto de Física Teórica da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Protegido por espessas muralhas, esse conjunto de palácios onde vivia o imperador permaneceu por séculos interditado à maioria dos chineses, até mesmo aos familiares do monarca. “Como ainda não encontramos meios de atravessar essas muralhas, tentamos imaginar o que se passa na Cidade Proibida a partir do que é possível ver por frestas nesse muro”, compara Matsas.

Do início da década de 1970 para cá alguns físicos – bem poucos, é verdade – descobriram rachaduras nesse muro e vislumbraram o que ocorre do lado de lá. Não conseguiram a união completa da Mecânica Quântica com a Relatividade Geral, mas produziram uma teoria híbrida que incorpora parte de ambas e é conhecida como Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos, um nome complicado para definir a área da física que estuda o comportamento de partículas em regiões do espaço em que a concentração de matéria ou energia é muito elevada, como os buracos negros – segundo a Relatividade Geral, a concentração de matéria ou energia não gera uma força gravitacional, como afirmava Newton, mas provoca a curvatura do espaço-tempo semelhante à que uma bola de boliche causa em uma cama elástica.

Um dos precursores da Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos, o físico norte-americano Leonard Parker, da Universidade de Wisconsin em Milwaukee, começou a ver conexões entre a Mecânica Quântica e a Relatividade Geral ainda durante seu doutorado, há pouco mais de 40 anos, e descobriu que em regiões com campo gravitacional muito intenso, como os buracos negros ou o Big Bang, haveria também criação de partículas.

NASA / SMITHSONIAN ASTROPHYSICAL OBSERVATORYFábrica de partículas
Boa parte da fama pela descoberta de que os buracos negros não eram apenas sorvedouros de matéria e energia, mas também produtores de partículas de volta para o espaço, ficou com outro físico: o inglês Stephen Hawking, herdeiro da cadeira que já foi de Isaac Newton na Universidade de Cambridge. Nessa mesma época Hawking constatou que os buracos negros emitiam uma radiação especial – hoje chamada radiação Hawking – na forma de calor, evaporando lentamente, e publicou esses resultados em 1974 na Nature. “Antes dessa descoberta se acreditava que a Relatividade Geral fosse suficiente para descrever com precisão um buraco negro”, comenta George Matsas, da Unesp. “Hawking mostrou que só temos uma idéia precisa de como esses objetos obscuros do cosmo funcionam quando se acrescentam esses ingredientes quânticos [produção de partículas]”, diz.

Analisando os cálculos que haviam levado Hawking a identificar esse efeito, o físico canadense William Unruh descobriu um outro fenômeno do mundo microscópico que independe dos buracos negros, mas também pode ser aplicado a eles. Dois anos após o achado de Hawking, Unruh verificou que o espaço vazio (vácuo) pode, na realidade, não ser tão vazio assim e estar repleto de partículas elementares, dependendo de como se movimenta quem observa essa região. Esse fenômeno, conhecido como efeito Unruh, decorre diretamente da Mecânica Quântica.

Segundo essa teoria, o vácuo não é vazio, como em geral se imagina, mas repleto de pares de partículas que surgem e se aniquilam tão rapidamente que não podem ser detectadas. Mas em regiões do espaço em que a densidade de matéria e energia é alta o suficiente para criar fronteiras de não-retorno, como em um buraco negro, tudo muda: uma partícula ou outra poderiam escapar do campo gravitacional e, em vez de se aniquilarem, tornarem-se reais. Unruh previu que um astronauta que estivesse caindo em um buraco negro – ou seja, estivesse livre da ação de forças – não veria nada além de espaço vazio. Mas, se sua nave estivesse com os propulsores ligados, contrabalançando a tendência de cair em direção ao buraco negro, esse mesmo astronauta enxergaria nuvens de partículas elementares. “Esse é um efeito exótico da Mecânica Quântica que permaneceu escondido durante quase 50 anos de uma legião de físicos dos melhores laboratórios do mundo”, diz Matsas.

Estranho? Certamente. Tanto que muitos físicos também duvidaram que fosse possível partículas elementares existirem para observadores em uma determinada condição, mas não em outra. Às vezes, porém, é preciso deixar os preconceitos de lado para acompanhar o raciocínio dos físicos e tentar entender como a natureza possivelmente funciona. Uma vez que não é possível enviar uma nave a um buraco negro para avaliar esse efeito, Matsas e Daniel Vanzella dispuseram-se a verificá-lo de outra forma: propuseram, como geralmente se faz na física, um experimento imaginário que comprovasse que sem o efeito Unruh a natureza não poderia ser como a conhecemos. Testes em aceleradores de partículas já haviam demonstrado que o próton – partícula de carga elétrica positiva que integra o núcleo dos átomos – é estável quando viaja a velocidades constantes. Mas esse mesmo próton desintegra e se transforma em nêutron, a partícula sem carga elétrica do núcleo atômico, quando é submetido a uma força que o faça se mover cada vez mais rápido ou o freie.

A partir de uma série de cálculos publicados em 2001 na Physical Review D, Matsas e Vanzella demonstraram que um próton sob a ação de uma força muito intensa, como a que o faz ficar parado e impede que caia em um buraco negro, existiria por um período muito curto antes de se transformar em um nêutron. Esse comportamento seria óbvio apenas para alguém em queda livre rumo ao buraco negro que visse o próton parado nas proximidades desse buraco, sob a ação de uma força que impedisse o próton de ser sugado. Era preciso descobrir o que encontraria um astronauta parado em relação ao próton.

Em princípio, o astronauta não veria o próton se desintegrar, uma vez que estão parados um em relação ao outro. Mas haveria aí um paradoxo porque alguém em queda livre observaria o próton, parado fora do buraco negro, se transformar em nêutron. E o que de fato acontece, uma vez que na natureza o próton não pode ao mesmo tempo se desintegrar e permanecer íntegro? Matsas e Vanzella comprovaram que também neste caso o próton se desintegra no mesmo intervalo de tempo que haviam previsto em trabalho anterior, originando um nêutron, mas por um mecanismo diferente. Como conseqüência do efeito Unruh, um astronauta parado com o próton observa à sua volta aquela nuvem de partículas predita por Hawking. Essas partículas, então, poderiam interagir com o próton e levar ao surgimento do nêutron. Como a dupla afirmou em um artigo na Physical Review Letters em 2001, o efeito Unruh é fundamental para que esse paradoxo não ocorra. “Esse resultado ajuda a conhecer melhor não apenas o comportamento dos buracos negros, mas também das próprias partículas elementares”, comenta Matsas.

Em colaboração com Jorge Castiñeiras e Luís Crispino, da Universidade Federal do Pará, Alberto Saa, da Unicamp, e Atsushi Higuchi, da Universidade de York, Inglaterra, Matsas continua testando os limites da Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos, com o objetivo de saber até que ponto ela representa bem os fenômenos da natureza sem violar outras leis físicas já comprovadas. Recentemente, ele e André Rocha da Silva confirmaram que essas transformações sofridas por partículas nas proximidades dos buracos negros não contrariam, por exemplo, as leis da termodinâmica formuladas no século XIX, que ainda hoje explicam as transformações de diferentes formas de energia e as trocas de calor observadas na natureza.

Sineiro cego
Trabalhando com a segunda lei da termodinâmica, segundo a qual o grau de desordem ou excitação de um sistema sempre aumenta com o tempo, Abdalla e os físicos Bertha Cuadro-Melgar, Roman Konoplya e Carlos Molina tentam quantificar como essa desordem varia em um buraco negro. Recentemente ele descobriu uma forma de calcular as dimensões de um buraco negro a partir das ondas gravitacionais geradas em resposta à perturbação causada por um objeto tragado para seu interior. “É algo como estimar o tamanho de um lago a partir das ondas que se formam em sua superfície”, compara Abdalla, “ou ainda, como um cego que consegue saber o tamanho de um sino a partir do som de uma badalada.” Em princípio, as ondas gravitacionais produzidas pela perturbação poderiam ser identificadas por  experimentos como o Detector de Ondas Gravitacionais Mario Schemberg, que começou a funcionar no país em setembro.

Como todos esses efeitos ainda precisam ser comprovados, Unruh propôs em 2005 uma estratégia que talvez permita reproduzir em laboratório efeitos similares aos que, acredita-se, devem ocorrer próximo aos buracos negros, como a radiação Hawking. Unruh não planeja, claro, reproduzir um buraco negro nos centros de estudos de física, mas um fenômeno análogo, chamado buraco sônico. Convidado em 1982 para dar um curso de hidrodinâmica, especialidade que lhe era pouco familiar, Unruh imaginou que uma estrutura capaz de absorver um fluido com velocidade maior que a do som – por exemplo, o super-ralo de uma piscina – impediria que qualquer barulho em seu interior ultrapassasse as fronteiras do ralo e escapasse para o exterior, de modo semelhante ao que ocorre com a luz que cai em um buraco negro. “A produção de um análogo de buraco negro pode nos fornecer mais pistas sobre a existência da radiação Hawking”, diz Matsas, que também investiga outros modelos de análogos de buracos negros.

Em São Carlos, Vanzella se dedica agora a aplicar a Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos na investigação de outro fenômeno cósmico: a atual fase de expansão acelerada do Universo, em que estrelas e galáxias se afastam cada vez mais rapidamente umas das outras. Em colaboração com Leonard Parker, Vanzella desenvolve a parte conceitual desse modelo, segundo o qual o próprio vácuo produziria no processo de criação e aniquilação de partículas virtuais a força que supera a gravidade e faz os astros se afastarem uns dos outros de modo acelerado. Se o modelo estiver correto, Parker pode ter achado a origem da chamada energia escura, correspondente a dois terços de tudo o que existe no cosmo. “Estamos buscando uma forma de calcular a energia do vácuo”, diz Vanzella. Uma tarefa nada fácil, pois é preciso fazer várias aproximações que podem ser justificáveis ou não do ponto de vista da física. “Se forem justificáveis”, prossegue Vanzella, “esse modelo se encaixaria na mesma categoria da radiação Hawking: qualquer teoria que se candidatasse à Teoria do Tudo teria de prever a existência desses dois fenômenos.”

Os Projetos
1.
Teoria Quântica de Campos em Espaços-tempos Curvos (nº 01/09617-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenadores George Avraam Matsas (Unesp) e Alberto Vasquez Saa (Unicamp); Investimento R$ 104.000,00 (FAPESP)
2. Perturbações em relatividade geral (nº 02/07916-6); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Élcio Abdalla (USP); Investimento
R$ 131.000,00 (FAPESP)

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