Apesar de cristão, o provérbio “diga-me com quem andas que te direi quem és” não poderia ser aplicado nos primórdios do cristianismo. Pesquisa desenvolvida na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) mostra que, ao contrário do que muitos historiadores indicam, os passos de judeus e cristãos continuaram a seguir trilhas comuns mesmo após a separação da Igreja Católica da sinagoga. O projeto, financiado pela FAPESP, revela que as duas religiões promoveram intercâmbios de símbolos, narrativas e tradições religiosas, pelo menos até o segundo século. Ou seja: continuaram a andar juntas, mas sendo de crenças distintas.
“Nossa questão é saber se os elementos contínuos entre o judaísmo e o cristianismo primitivo desempenharam um fator determinante apenas nos primeiros impulsos e elaborações cristãs ou se houve intercâmbio mesmo após o cristianismo conquistar autonomia e identidade, motivados por padrões de experiência e linguagem religiosa comum”, diz Paulo Augusto de Souza Nogueira, coordenador do projeto temático Estruturas Religiosas Convergentes no Judaísmo e no Cristianismo do Primeiro Século.
Constituído de sete pesquisadores que trabalham em torno de três eixos, o estudo vai publicar os resultados em livro a ser editado no próximo ano. O ponto de partida é a compreensão de que o nascimento do cristianismo não é fruto de rompimento radical com o judaísmo, versão difundida ao longo dos tempos. Com base em documentos literários, em especial das tradições apocalípticas, os pesquisadores identificaram intensas relações bilaterais do cristianismo com o judaísmo. Segundo Nogueira, a religião de Jesus, seus seguidores e das gerações seguintes de cristãos tem de ser compreendida a partir de práticas e crenças religiosas judaicas.
“Boa parte das análises de história pressupõe que o uso das tradições judaicas teria ocorrido nos estágios de formação da tradição religiosa cristã primitiva em via única. Ou seja, fica descartada a possibilidade de que os cristãos e judeus estivessem se influenciando mutuamente por períodos maiores”, afirma. A pesquisa caminha na contramão da visão hegemônica de que não houvesse mais influências após a separação.
“Perguntamos se as diferenciações institucionais implicaram um corte nos intercâmbios de tradições religiosas”, diz. “Não poderiam esses ter coexistido em vários círculos mesmo após a separação dos cristãos da sinagoga?” Para responder à pergunta, os pesquisadores elaboraram estudo comparativo em textos apocalípticos nos Manuscritos do Mar Morto, na literatura judaica pseudepígrafa (produzida até 70 d.C.), e na literatura do cristianismo primitivo (tanto do Novo Testamento como dos apócrifos). O período estudado vai desde o século segundo a.C. até o segundo d.C. A escolha desses textos ocorreu porque há indicações de que os primeiros cristãos eram judeus apocalípticos. “Trabalhamos com uma compreensão diferenciada de apocalíptica, para além da idéia de que o fim do mundo chegaria acompanhado de cataclismos cósmicos e da redenção dos justos”, observa.
Os pesquisadores consideram que o elemento central da apocalíptica é a experiência religiosa visionária, provavelmente de origem extática, que tem como conteúdo principal visões sobre os céus, suas estruturas de poder, os anjos e o culto místico ali desenvolvido. O acesso a essas revelações é possível por meio de viagens celestiais. “Em vez de dizer que Jesus era apocalíptico apenas porque acreditava no fim do mundo, apresentamos a religiosidade de Jesus e de seus seguidores como reflexo de uma complexa religiosidade visionária, na qual o próprio Jesus passou a ser compreendido como alguém que revela os segredos e os mistérios de Deus.”
Para Paulo Nogueira, essa abordagem permite reconstruir o quadro cultural e religioso que torna possível compreender os parâmetros religiosos dos primeiros cristãos e suas relações com os judaísmo, assim como sincretismos com as religiões do Mediterrâneo. Era por meio da experiência visionária que judeus e cristãos tinham acesso às estruturas do cosmo, aos poderes angelicais e ao mundo labiríntico em que Deus era imaginado. “A apocalíptica é aqui interpretada como uma forma de misticismo judaico, muito além da sua tradicional compreensão como expectativa de fim do mundo e de crítica da história e do poder”, afirma o professor. “O destaque dado ao aspecto extático-visionário permite compreender a apocalíptica em relação às tradições populares e iletradas do judaísmo, representando os textos apocalípticos apenas o produto final de uma corrente mais ampla.”
A acepção da apocalíptica como literatura de revelação visionária pode ser encontrada, por exemplo, nas elaboradas descrições das hierarquias de poderes celestiais, tanto em textos judaicos como o Livro dos Vigilantes, da Apocalípse de Enoque (Enoque Etíope), nos Cânticos do Sacrifício Sabático de Qumran, assim como na Carta aos Efésios, nas disputas com anjos e seu culto em Hebreus, e na busca por ascender às moradas celestiais e na preocupação com a contemplação da glória de Deus noEvangelho de João , sem contar com sua recepção no Apocalipse de João e na Ascensão de Isaías. Nogueira destaca que importa menos saber se essas experiências ocorreram de fato com Jesus ou com Paulo de Tarso do que compreender como esses grupos vivenciavam esse modelo de religião visionária em seus cultos de êxtase.
“É muito possível que algumas narrativas atribuídas a Jesus tivessem sido inclusive experiências posteriores de seus seguidores atribuídas a ele ou então que tivessem sido narradas nas comunidades cristãs primitivas de forma paradigmática, para serem imitadas em outras ocasiões”, diz o coordenador da pesquisa. “Isso não tira a importância do tema, ao contrário, mostra certa ligação entre os pressupostos religiosos de Jesus com seus seguidores posteriores, uma vez que procedem de um âmbito comum: a apocalíptica judaica.”
O pesquisador Luigi Schiavo, que desenvolve sua tese de doutorado dentro do projeto temático, tem se dedicado a estudar justamente a tentação de Jesus de Lucas, considerado um dos textos mais importantes do documento Q, também chamado de Fonte dos Ditos, por apresentar uma narrativa em que Jesus luta contra Satanás pelo domínio cósmico. “Os temas do julgamento, da oposição dualística, da espera messiânica, do reino de Deus e da apresentação de sua ética nos levam a pensar num documento de forte caráter escatológico, com elementos apocalípticos de visão e revelação”, diz a pesquisa. “Nesse contexto, o relato das tentações de Jesus é aqui interpretado como um relato de viagem celestial, uma forma literária bastante conhecida na literatura apocalíptica e pseudepigráfica a partir do segundo século a.C., cujo objetivo era descrever a experiência extática do visionário.”
Essa interpretação se baseia em vários aspectos, como o termo técnico da visão “levado em espírito”, o transporte para fora do corpo e a viagem pelo céu, o anjo que acompanha o visionário, o lugar deserto que, com o jejum, representa a condição para que tal experiência possa acontecer, etc. A pesquisa adota como modelo para a compreensão de Jesus no seu embate com Satanás nesse relato, o mito do combate entre o anjo Miguel e Satanás, tal como é retratado, por exemplo, na Regra de Guerra de Qumran e refletido no Novo Testamento em Apocalipse 12. A pesquisa de Schiavo está inserida em um eixo do projeto que analisa figuras messiânicas da apocalíptica judaica que podem ter influenciado as primeiras elaborações cristológicas, ou seja, as primeiras afirmações sobre a divindade de Jesus e sua origem celeste.
Outro eixo da pesquisa pretende relacionar esses textos apocalípticos cristãos primitivos com o culto celestial como era idealizado por círculos judaicos místicos do período. A hipótese, neste caso, é que esse mundo místico se insere no culto das casas dos primeiros cristãos, permitindo formação de identidade religiosa e organização social em torno da experiência religiosa.
Além dessa discussão da relação do cristianismo com judaísmo, o projeto contempla mais um eixo de pesquisa que analisa também a recepção de temas apocalípticos na religião popular do Mediterrâneo, mais especificamente nos papiros mágicos e nos amuletos e talismãs antigos. Afinal, judeus e cristãos estavam por sua vez inseridos no mundo religioso greco-romano.Para o coordenador, os textos selecionados para a pesquisa estabelecem também conexões com os dias atuais, pois se referem a um novo milênio, ao desejo de mudança libertária, da realização de utopias e sonhos. “Os estudos bíblicos são de relevância no Brasil, uma vez que se trata de um país com vertentes de sua cultura popular e de um grande número de grupos religiosos que se alimentam de símbolos bíblicos”, justifica. “Em uma sociedade plural cultural e religiosamente como a nossa, análises estanques que não consideram também a complexidade dos textos fundantes correm o risco de não compreenderem o passado e, tampouco, o presente”, conclui.
O projeto
Estruturas Religiosas Convergentes no Judaísmo e no Cristianismo do Primeiro Século (nº 98/13311-2); Modalidade Projeto temático; Coordenador Paulo Augusto de Souza Nogueira – Universidade Metodista de São Paulo; Investimento R$ 83.871,00