Podcast: Mário Assine
Naquela época, a distribuição dos continentes era bem diferente da atual. No início do Aptiano, que durou de 125 milhões a 113 milhões de anos atrás, os imensos blocos rochosos que hoje formam a América do Sul e a África estavam soldados no supercontinente Gondwana, do qual já haviam feito parte a Antártida, a Austrália e Madagascar (ver mapa). Depois de muito tempo unidos, eles começaram a sofrer rupturas causadas por forças do interior do planeta e a se afastar. Aos poucos, as águas de oceanos primitivos ocuparam o espaço entre os continentes e contribuíram para o nascimento dos oceanos atuais.
À medida que América do Sul e África se afastavam, em um processo de separação que começou na porção austral, desenhava-se o futuro Atlântico Sul. Enquanto isso, próximo ao equador terrestre, ao norte de Gondwana, o proto Atlântico Norte recebia as águas de um oceano chamado Tethys e ganhava corpo com o distanciamento entre a América do Norte, a Europa e a porção setentrional da África. Passaram-se milhões de anos até que o afastamento se completasse e existisse um oceano Atlântico único, pois o que hoje é o Nordeste brasileiro permanecia conectado à África.
As rochas do Araripe contam parte da história do surgimento do Atlântico, mas não mostram todos os detalhes. Faltam informações para responder a questões fundamentais. Uma delas é definir os caminhos da entrada das águas marinhas naquela região do planeta, conectando o Atlântico Norte ao Sul, por volta de 115 milhões de anos atrás. Por ora, os fósseis marinhos encontrados no Araripe sugerem apenas que a origem dessas águas é o Atlântico Norte.
Em busca de mais informações sobre o que teria ocorrido nesse período, Assine e seus colaboradores estenderam a busca por vestígios dessas invasões para os afloramentos rochosos da serra do Tonã, na Bahia, a 200 quilômetros a sudeste do Araripe. Os resultados dessa busca compõem a dissertação de mestrado do geólogo Filipe Varejão, feito sob a orientação de Assine, e foram publicados em julho na revista Cretaceous Research.
Nesse trabalho, Assine e seus colaboradores mostraram que os estratos rochosos daquela época preservados na serra do Tonã sugerem que as águas de Tethys teriam, primeiro, avançado para o sul por algum caminho desconhecido, a leste da costa brasileira. Ao alcançar a região onde hoje é o sul da Bahia, elas teriam sido desviadas para noroeste e invadido o interior do Nordeste.
Essa interpretação se baseia no registro geológico preservado nas bacias sedimentares, recuperado em marcas petrificadas que o fluxo dos rios então existentes deixou na região. Essa conclusão contradiz a reconstituição paleogeográfica (das paisagens antigas) proposta pelo geólogo especializado em paleontologia Mitsuru Arai a partir do estudo de fósseis marinhos encontrados no Nordeste. Arai e Assine concordam que as águas que ocuparam a região vieram do Atlântico Norte. Eles divergem, porém, quanto ao percurso que teriam feito no interior do antigo continente.
“A meu ver, a conclusão de que a invasão marinha do Nordeste teria ocorrido a partir de águas vindas do sul é um absurdo”, diz Arai, que trabalhou 37 anos na Petrobras e hoje é professor na Unesp em Rio Claro. O geólogo-paleontólogo apresentou o seu cenário paleogeográfico em 2014 no Brazilian Journal of Geology. “O mar veio do norte”, afirma.
O impasse já rendeu debates acalorados entre eles. Para ambos, é preciso fazer estudos mais aprofundados em afloramentos do Aptiano na bacia sedimentar do Parnaíba, para resolver de vez essa questão.
Conexão com o pré-sal
A pesquisa de Assine no Araripe e na serra do Tonã foi realizada com financiamento de projetos da FAPESP e da Petrobras. A indústria petrolífera se interessa em conhecer melhor as rochas do final do Aptiano no Nordeste porque elas têm a mesma idade, composição química e geológica das rochas que abrigam as reservas de petróleo do pré-sal nas bacias sedimentares de Santos e do Espírito Santo, na margem continental brasileira. “A formação das rochas dessa época no Nordeste e na margem continental guardam registros da mesma sequência de eventos”, explica Assine. “O Araripe e a serra do Tonã funcionam como modelos para entender a sucessão de rochas do pré-sal, a que temos acesso limitado.”
O geólogo Webster Mohriak, especialista em tectônica de sal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), conta que no Aptiano, entre 125 milhões e 113 milhões de anos atrás, o Atlântico Sul era um oceano aberto da Argentina até a atual bacia sedimentar de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ali uma cadeia de montanhas vulcânicas chamada Elevação Rio Grande guardava a entrada de um estreito golfo marinho, que terminava ao norte onde hoje é o litoral de Sergipe e Alagoas (ver Pesquisa FAPESP nº 224). O golfo tinha contornos semelhantes ao do golfo do Mar Vermelho, que vem se abrindo entre a África e a península Arábica – em 2014 e 2015 Mohriak apresentou em conferências internacionais evidências de que o mecanismo de formação de ambos tenha sido idêntico.
No fim do Aptiano, o clima da Terra se tornou mais árido e o golfo marinho do interior de Gondwana, entre o que viria a ser a América do Sul e a África, pode ter secado totalmente. Com a evaporação da água, o sal precipitou e formou uma espessa camada que selou matéria orgânica nas camadas de sedimentos existentes logo abaixo, criando as reservas de petróleo do pré-sal.
Acima da camada de sal das bacias da costa brasileira, os geólogos encontraram camadas de calcário marinho, típico de águas salobras rasas, cobertas por camadas de sedimentos depositadas em um ambiente de mar profundo. Essa sucessão indica que, após secar, o golfo voltou a se encher, abrindo-se cada vez mais até a crosta continental entre Brasil e África rasgar-se completamente há 100 milhões de anos, no fim do Albiano.
Diferentes interpretações
Segundo Assine, as principais reconstituições de como eram os continentes no passado, como as feitas pelo geólogo Christopher Scotese, da Universidade do Texas em Arlington, nos Estados Unidos, indicam que as águas do Atlântico Norte e do Atlântico Sul só se encontraram depois que a América do Sul se separou de vez da África. “Essas reconstituições, no entanto, não levam em conta que o mar invadiu o interior de Gondwana no Aptiano, por volta de 115 milhões de anos atrás”, explica. “As camadas de folhelhos contendo fósseis marinhos que existem sobre os depósitos de sal e de calcários laminados da chapada do Araripe são evidências claras dessa invasão.”
Mais recentemente, Assine reuniu indícios de que o Araripe já fez parte de uma bacia sedimentar maior. Os depósitos de calcário encontrados por lá seriam sobras de sedimentos que se acumularam em uma região bem mais vasta, que abrangia ao menos o Araripe e a serra do Tonã. Quase toda essa área foi erodida nos últimos 65 milhões de anos pelos rios, depois que o Nordeste se elevou acima do nível do mar. Assine compara os depósitos do Araripe ao que restou de um bolo de festa: “É o maior pedaço, que sobrou no centro da bandeja”.
Nos anos 1960, o geólogo Oscar Gross Braun já havia identificado dois pedaços menores desse bolo: a serra Negra, em Pernambuco, e a serra do Tonã, na Bahia. Agora, Assine, Varejão e os geólogos José Perinotto e Lucas Warren, também da Unesp, revisitaram essas formações para analisá-las em detalhe com ferramentas modernas. Em colaboração com os geólogos Bernardo Freitas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Renato Paes de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP), e Virgínio Neumann, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), eles identificaram duas sequências de camadas de rochas do Aptiano idênticas às sequências de mesma idade existentes no Araripe. Para Assine e colaboradores, essa coincidência confirma que a chapada do Araripe e a serra do Tonã já integraram a mesma bacia.
Essas sequências de camadas começam como depósitos de ambientes fluviais e são sucedidas por rochas carbonáticas e argilosas formadas em estuários de rios e lagos. A partir das estruturas e das formas das camadas de arenito do Tonã, os pesquisadores identificaram o sentido de correntes fluviais antigas (paleocorrentes) e definiram para onde corriam as águas dos rios que existiram ali nesse passado distante. “As águas fluíam em direção ao sul, sugerindo que havia terras mais altas ao norte do Araripe”, afirma Assine. “Fica claro que o interior do Nordeste tinha um relevo alto que funcionava como um divisor de águas entre a bacia do Parnaíba, no Maranhão, e a formação da qual faziam parte as bacias do Araripe e do Tucano, onde está a serra do Tonã. Com essa barreira natural, o mar que invadiu a região só pôde ter vindo do sul para o norte, entrando no continente pelo fundo dos vales fluviais, na direção contrária à do fluxo dos rios.”
Como as análises de fósseis de microrganismos e de peixes sugerem que a fauna marinha do Araripe e do Tonã eram aparentadas de espécies do oceano Tethys (uma indicação de que as águas teriam vindo do norte), Assine tenta conciliar as evidências conflitantes. Ele especula que poderia haver uma passagem na margem equatorial do Brasil, região do litoral que vai da atual foz do rio Amazonas ao Rio Grande do Norte, pela qual as águas de Tethys teriam entrado e percorrido a região hoje formada pela costa do Rio Grande do Norte, de Alagoas e de Sergipe, para então finalmente se encaminharem para o sul e invadirem o interior do Nordeste até o Araripe. “Essa é uma questão em aberto”, admite. “A margem equatorial brasileira, assim como a bacia do Parnaíba, ainda é pouco conhecida e podemos ter surpresas.”
Mitsuru Arai discorda da existência do divisor de águas entre as bacias do Parnaíba e do Araripe. “O conteúdo fossilífero das rochas encontradas em uma bacia e em outra é muito parecido”, diz. “Se tivesse existido um divisor de águas, a fauna e a flora das duas bacias seriam diferentes entre si.”
Arai também questiona o sentido das correntes dos rios primitivos do Tonã proposto por Assine e colaboradores. Para o paleontólogo, os depósitos de arenito não se formaram pela ação de rios, mas de correntes de maré que teriam existido quando a bacia do Parnaíba e a do Araripe foram invadidas pelas águas do oceano. Essas águas, vindas do norte, teriam formado um imenso canal marinho no interior do continente, semelhante ao canal da Mancha, que separa a Grã-Bretanha da França.
“Precisamos medir como eram as paleocorrentes dos rios e das marés na bacia do Parnaíba também”, sugere Arai. “Se as paleocorrentes de lá se dirigirem para o sul, eu ganho a parada. Se correrem para o norte, o Assine pode continuar me questionando.”
Projetos
1. Reavaliação da geologia da bacia do Araripe, Nordeste do Brasil (nº 2004/15786-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Mario Luis Assine (Unesp); Investimento R$ 78.939, 46.
2. Desenvolvimento de modelos de fácies para grandes rios: Processos e produtos em barras ativas na Amazônia brasileira e implicações para as reconstruções paleogeográficas do Neógeno na Amazônia e do Mesozoico gondwânico no NE-Brasil e E-Austrália (nº 2014/16739-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Renato Paes de Almeida (IGc-USP); Investimento R$ 224.884,80.
Artigos científicos
VAREJÃO, F. G; et al. Upper Aptian mixed carbonate-siliciclastic sequences from Tucano Basin, Northeastern Brazil: Implications for paleogeographic reconstructions following Gondwana break-up. Cretaceous Research. v. 67, p. 44-58. jul. 2016.
ARAI, M. Aptian/Albian (Early Cretaceous) paleogeography of the South Atlantic: A paleontological perspective. Brazilian Journal of Geology. v. 44 (2), p. 339-50. jun. 2014.
ASSINE, M. L. et al. Comments on paper by M. Arai “Aptian/Albian (Early Cretaceous) paleogeography of the South Atlantic: A paleontological perspective”. Brazilian Journal of Geology. v. 46 (1), p. 3-7. mar. 2016.