O lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), um canídeo brasileiro ameaçado de extinção, não é, ao contrário do que as pessoas comumente acreditam, um voraz comedor de galinhas: essa ave doméstica corresponde a apenas de 0,1 a 1,9% de sua alimentação que, diga-se em favor do lobo brasileiro, pauta-se por uma dieta bastante equilibrada, dividida meio a meio entre animais e frutos. Aliás, por ser um grande consumidor de frutos, o lobo é um ótimo dispersor de sementes, o que já deveria ser suficiente para reduzir o papel de vilão que a cultura popular lhe atribui. Entre os alimentos mais ingeridos pelo guará estão a lobeira (Solanum lycocarpum), a gabiroba (Campomanesia spp) – frutos típicos do cerrado – e pequenos roedores.
Essas são algumas das conclusões de um estudo coordenado pelo pesquisador José Carlos Motta Junior, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), sobre os hábitos dessa espécie típica da biodiversidade brasileira, hoje sob risco de desaparecimento. Nesse trabalho – Ecologia Trófica do Lobo-guará, Chrysocyon brachyurus (Mammalia: Canidae), no Sudeste do Brasil -, no qual a FAPESP investiu R$ 32,7 mil, Motta Junior procurou obter o perfil mais completo, até hoje já feito, da dieta do lobo-guará, estabelecendo sua variação nas diferentes paisagens em que ele vive.
O trabalho de campo desenvolveu-se ao longo de 27 meses, em oito localidades, seis delas no Estado de São Paulo e duas em Minas Gerais. Embora tenha partido de um estudo específico de dieta, o projeto desdobrou-se em subprojetos, entre eles o de avaliação das atitudes e do conhecimento da população rural sobre o lobo-guará. O alvo prático da pesquisa era, evidentemente, dispor de novos subsídios para um planejamento adequado de manejo e conservação da espécie.
Andarilho noturno
O caminho usado para investigar a alimentação do lobo foi basicamente a análise de fezes, prática facilitada pela característica do animal de engolir quase inteiras as presas de até três quilos, como tatus e filhotes de veado. Mas o guará é onívoro, o que significa que também se alimenta de frutos e plantas. Para chegar a essas conclusões, a análise centrou-se no exame das sementes encontradas nas fezes, que indicou o número e o tipo de frutos consumidos. A lobeira destacou-se como o fruto preferido, correspondendo a cerca de um terço de toda a alimentação.
Os dados referentes à ingestão de frutos caracterizam o lobo-guará como um legítimo dispersor de sementes. “As sementes passam pelo aparelho digestivo razoavelmente intactas e depois normalmente germinam”, diz Motta Junior. A importância do lobo como agente dispersor aumenta pelo fato de ele ser um animal que caminha muito – sobretudo durante a noite -, por áreas extensas, que variam de 20 a 110 quilômetros quadrados.
Falsa impressão
Motta Junior ouviu a população rural das áreas envolvidas na pesquisa. “Colhemos as impressões sobre o animal nas oito localidades estudadas comparamos com o conhecimento científico, em busca de convergências e divergências”, diz ele. Um resultado: a maioria esmagadora dos entrevistados respondeu que o alimento preferido do lobo eram frangos e galinhas – o que absolutamente diverge dos dados da pesquisa de campo, que indicaram que galinhas e frangos ocupam uma posição completamente secundária na dieta do animal (0,1 a 1,9%).
Mais: a pesquisa já constatara que, para cada galinha, o lobo consome de 50 a 70 ratos, prática que tem um benéfico e pouco conhecido efeito para a população (uma vez que ratos são transmissores de várias doenças e podem ser pragas agrícolas). As impressões errôneas da população sobre o animal contribuem para sua morte não natural e agravam a ameaça de extinção da espécie.
Mas essa reação negativa da população ao lobo não representa, nem de longe, a única ameaça à preservação da espécie. A devastação de seu ambiente (cerrados), os freqüentes atropelamentos e a caça são outras. As paisagens que os lobos brasileiros habitam foram outro foco do projeto. Nas oito localidades estudadas, encontraram-se condições muito diferentes, desde áreas muito devastadas até regiões bem preservadas. “Obtivemos imagens de satélite para fazer uma análise mais detalhada, procurando correlacionar as distintas paisagens com a dieta”, diz Motta Junior. “Quanto mais alterada está a paisagem natural, menos natural é a alimentação do animal, incluindo frutos cultivados e até as galinhas.”
No Estado de São Paulo, os trabalhos de campo foram realizados na Estação Experimental de Itapetininga, estações ecológicas de Itirapina, Águas de Santa Bárbara e Luís Antônio (ou Jataí), Fazenda Fortaleza, de propriedade da Ripasa S/A, no município de Ibaté, e áreas naturais do campus da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Em Minas, foram estudados o Parque Nacional da Serra da Canastra, no município de São Roque de Minas, e a Fazenda Salto e Ponte, no município de Prata, de propriedade da A. W. Faber Castell. Todas essas áreas e suas vizinhanças possuem uma cobertura vegetal principalmente de cerrados e campos cerrados.
O Parque Nacional da Serra da Canastra foi a maior e mais natural área trabalhada, enquanto a Fazenda Fortaleza foi o local mais alterado: ela abriga basicamente eucaliptos, além do cultivo de cana-de-açúcar e de cítricos em seu entorno, com uma proporção muito baixa de vegetação natural. Os dados sobre a quantidade de animais foram obtidos indiretamente, por meio de vestígios, pegadas e entrevistas com os moradores locais.
Por meio desses estudos,calculou-se que na extensão trabalhada na Serra da Canastra devam viver de cinco a seis casais. Já na fazenda Fortaleza apenas um casal foi observado. Sabe-se hoje, depois da pesquisa, que, além de frutos, pequenos roedores e aves, o guará alimenta-se também de pequenos mamíferos, marsupiais e, em menor escala, de insetos e répteis. Segundo Motta Junior, os resultados da pesquisa certamente representam uma boa contribuição aos planos de conservação do ameaçado lobo-guará.
Perfil
José Carlos Motta Junior, formado em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), fez o mestrado no Instituto de Biociências na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro e o doutorado na UFSCar. É professor de Ecologia Animal do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) desde 1996.
Projeto
Ecologia Trófica do Lobo-guará, Chrysocyon brachyurus (Mammalia: Canidae), no Sudeste do Brasil
Investimento
R$ 32.715,00