Há coisa de 2 décadas ou pouco mais, sentíamo-nos perfeitamente confortáveis em imaginar a tuberculose como um mal que acompanhara a história humana, tornara-se por vias concretas e metafóricas a grande doença do século XIX, estendera sua gravidade até a primeira metade do século XX e, então, entrara na categoria dos flagelos vencidos – por obra e graça de uma criação da cultura, isso que inventa o ser humano que conhecemos e somos. A criação a que me refiro, nesse caso, é conhecimento científico traduzido em antibióticos que se disseminaram no pós-guerra e, desde então, articulados com outros produtos e fatores, alteraram profundamente as condições de saúde e as possibilidades de duração da vida humana. Ou conhecimento traduzido numa vacina como a BCG, de aplicação obrigatória para proteger os frágeis recém-nascidos de nossa espécie dos humores aterrorizantes do bacilo identificado pelo doutor Robert Koch em 1882.
Claro que de vez em quando, dos anos 1960 aos 1990, tínhamos notícia de algum conhecido que contraíra tuberculose, doença ainda assinalada por um poderoso estigma social, mas estávamos prontos a confiar no poder da penicilina e assemelhados e a nos refugiar na certeza de que os casos que chegavam a nosso conhecimento faziam parte da exceção, jamais da regra. Assim, nesses muitos anos, podíamos partir para um encontro com a tuberculose de caráter muito mais estético e filosófico, vertiginoso, proposto por Thomas Mann, por exemplo, em seu extraordinário A montanha mágica, onde a doença examinada em Davos é também metáfora de um mal insidioso que confronta o homem com o mistério de si, com suas misérias e grandezas, seus limites e sua capacidade de transcender, corroa esse mal as vísceras de um corpo frágil e finito ou sacuda as entranhas de uma sociedade em transformação. Podíamos também tomar a via poética da coragem proposta por Manuel Bandeira em sua luta encarniçada e direta contra a doença que ameaça matá-lo ou a senda dos dramas tecidos por Dinah Silveira de Queiroz em Campos do Jordão no seu sensível Floradas na serra. Fosse qual fosse a escolha, a tuberculose tinha uma inequívoca dimensão literária para minha geração e outras próximas.
A Aids mudou isso. E hoje, longe de literária, a tuberculose se apresenta literal em sua crueza de doença. O bacilo que a produz instala-se anualmente nos pulmões de 9 milhões de pessoas em todo o mundo, do que resulta a morte de uma delas a cada 15 segundos. No Brasil, são 100 mil casos, com a morte de 5 mil pessoas por ano. É verdade que há 45 anos não se cria um medicamento novo para a doença e que cepas mais e mais resistentes da bactéria que a causa surgem ameaçadoras no horizonte. Mas – eis o dado fundamental – a tuberculose é curável, por que então ela está se transformando de novo num flagelo, inclusive no Brasil? É disso que trata a excelente reportagem do editor especial Carlos Fioravanti, a partir da página 18. É uma contribuição importante para os debates em torno da doença, que tem em 24 de março uma data especial para se refletir a seu respeito.
Nas páginas de humanidades, esta edição oferece outra contribuição significativa, bem calcada em pesquisas, para o debate de questões essenciais à definição da sociedade que queremos ser e que estamos construindo neste país. Trata-se de uma bela reportagem do editor especial Fabrício Marques (página 94) sobre os resultados até aqui dos programas de ação afirmativa para ingresso de estudantes egressos de escolas públicas ou ligados a grupos étnicos socialmente desfavorecidos no ensino superior brasileiro. Há dados surpreendentes e vale a pena conferir.
Há muito mais a descobrir nesta edição, inclusive em relação à beleza das páginas desenhadas por nossa editora de arte, Mayumi Okuyama (vejam, por exemplo, as páginas 69 a 73). Mas encerro com uma recomendação de atenção para o primeiro dos encartes especiais relativos às palestras e debates que Pesquisa FAPESP está organizando dentro da exposição Revolução genômica, que até 13 de julho está no Parque do Ibirapuera em São Paulo e depois percorrerá outras cidades do país. A exposição, trazida do Museu de História Natural de Nova York pelo Instituto Sangari, recebeu aqui acréscimos bem brasileiros e está encantando o público. Esperamos que as conferências e discussões paralelas, da lavra de brilhantes pesquisadores brasileiros e estrangeiros, possam ser uma contribuição consistente da FAPESP e desta revista para ampliar o contato da sociedade com os temas científicos.
Republicar