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medicina

Crianças com Síndrome Congênita do Zika têm atraso no desenvolvimento motor, cognitivo e de linguagem

Danos neurológicos causados pelo vírus prejudicam a capacidade de se movimentar, aprender e falar

Aline van Langendonck

Em 2015, quando engravidou de seu segundo filho, Inabela Souza da Silva Tavares nem pensou em pedir que a criança viesse com saúde. Queria apenas que fosse menina. “Meu sonho era ter mais uma filha”, contou em meados de maio em uma conversa por videochamada a partir de sua casa, em Recife, capital de Pernambuco. Graziela nasceria no final daquele ano prematura, cerca de um mês antes do esperado. Uma infecção ocorrida na gravidez afetara a saúde da bebê, influenciando de modo drástico a vida da filha e de toda a família. Certa manhã, por volta do quinto mês de gestação, Inabela acordou com dor de cabeça e por todo o corpo e foi internada. No hospital, os médicos inicialmente diagnosticaram como causa a infecção pelo vírus da dengue, que desde os anos 1980 provoca epidemias de tempos em tempos no país. O mais provável, no entanto, é que não fosse dengue, ou não só dengue. Naquele período, já circulava silenciosamente no Brasil o vírus zika, um patógeno originário da África – e até então considerado inofensivo – que jamais havia sido detectado nas Américas.

Exames de ultrassom feitos a partir do sexto mês da gestação trouxeram notícias preocupantes. Primeiro, indicaram que Grazi, como a mãe a chama, tinha acúmulo de líquido nas cavidades do cérebro e entre as membranas que o protegem. Mais tarde, revelaram também que o seu crânio era bem menor do que o esperado para a idade gestacional. Ela tinha microcefalia congênita, um problema sem cura e até hoje não atribuído à dengue. Testes posteriores confirmariam que, ainda no útero, Grazi havia sido exposta ao vírus recém-introduzido no país. Por essa razão, nasceu com o que se tornaria conhecido como Síndrome Congênita do Zika (SCZ). A enfermidade decorre de uma ampla gama de lesões no sistema nervoso central e pode comprometer em graus variados o desenvolvimento e a independência. Apesar de limitações importantes – Grazi não anda, não fala e se alimenta por sonda –, ela frequentou a creche, que pôde atendê-la graças às adaptações sugeridas pela mãe, e hoje está no primeiro ano do ensino fundamental.

Grazi não foi a única criança a sofrer os efeitos nefastos do vírus. Outros 1.833 casos de bebês com SCZ foram oficialmente confirmados desde 2015 no Brasil, um dos países mais afetados pelo zika no mundo – apenas em 2016, o pior ano da epidemia, houve mais de 250 mil casos suspeitos de infecção pelo vírus. Desde a identificação das primeiras ocorrências em território nacional, 20.444 casos suspeitos de SCZ foram notificados ao Ministério da Saúde. Desses, 3.017 ainda permanecem em investigação, segundo a edição de fevereiro deste ano do Boletim Epidemiológico do ministério, a mais recente a tratar do assunto. Cerca de 90% das crianças com a síndrome nasceram em 2015 e 2016, no auge da epidemia, que arrefeceu nos anos seguintes. A maior parte delas, em estados do Nordeste. As mais velhas estão chegando aos 7 anos de idade e, à medida que crescem, alguns problemas de desenvolvimento começam a ficar evidentes e a ser retratados em estudos realizados por vários grupos de pesquisa.

Entrevista: Lavinia Schüler-Faccini
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Um trabalho publicado em março deste ano na revista Frontiers in Genetics traz uma síntese atualizada de como evolui a saúde dessas crianças nos primeiros anos de vida. Sob a liderança da médica e geneticista Lavinia Schüler-Faccini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aproximadamente 30 pesquisadores de seis estados brasileiros analisaram as informações de pouco mais de 160 artigos científicos publicados até meados de 2021 sobre as manifestações clínicas e problemas de desenvolvimento mais comuns apresentados pelas crianças com a síndrome, além dos potenciais mecanismos de ação do vírus. “A SCZ abrange uma ampla gama de deficiências sensoriais e motoras com múltiplos efeitos sociais e de saúde”, afirmam os autores.

A síndrome é marcada pela ocorrência simultânea de algumas destas seis características associadas à ação do vírus: tamanho da cabeça menor que o esperado para a idade (microcefalia); calcificações no sistema nervoso central; diminuição do volume do cérebro; aumento das cavidades cerebrais (ventrículos) contendo líquido cefalorraquidiano; lesões nos olhos ou nas estruturas cerebrais associadas à visão; e artrogripose, uma forma grave de malformação das articulações.

Rodrigo Cunha

Uma proporção bastante elevada (de 70% a 88%) das crianças com SCZ nasce com microcefalia, em geral mais grave do que a causada pela infecção na gravidez por outros cinco patógenos, que formam um acrônimo conhecido por pediatras e neurologistas como SToRCH: a bactéria da sífilis, o protozoário da toxoplasmose, o vírus da rubéola, o citomegalovírus e o vírus do herpes. Além da redução na circunferência da cabeça, os bebês com a SCZ costumam apresentar uma diminuição no volume da parte superior do crânio, o que faz a face parecer desproporcionalmente grande, e dobras excedentes no couro cabeludo. O quadro gerou as imagens impactantes que chamaram a atenção quando começaram a ser veiculadas pelos meios de comunicação durante a epidemia.

Todos esses danos resultam da predileção do vírus por infectar e se reproduzir nas células do sistema nervoso. Em meados de 2016, as equipes coordenadas pelos neurocientistas Jean Pierre Peron e Patrícia Beltrão Braga, na Universidade de São Paulo (USP), e Stevens Rehen e Patricia Garcez, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor), verificaram que o vírus invade e danifica preferencialmente os progenitores neurais: células precursoras dos diferentes tipos de células cerebrais, abundantes no início do desenvolvimento do feto. Ao infectar os progenitores neurais, o zika assume o comando celular e inicia a produção de novas cópias. Esse processo leva os progenitores à morte de duas maneiras: por apoptose (morte programada), na qual a célula murcha em face de sinais indicando que não poderá recuperar seu funcionamento normal; e por autofagia, quando bolsas contendo ácidos e enzimas se rompem e digerem o conteúdo celular (ver Pesquisa FAPESP nº 244).

Na infecção por zika, a apoptose é precedida de desarranjos que também impedem os progenitores neurais de se multiplicarem e de originarem neurônios, as células responsáveis pelo processamento e armazenamento de informações, levando o cérebro a ficar menor e com menos de suas dobras características. Mais recentemente, o grupo de Rehen e o do neurocientista André Quincozes Santos, da UFRGS, verificaram que a infecção pelo vírus zika também desperta uma inflamação tóxica para outras células cerebrais.

As alterações que caracterizam a síndrome aumentam muito – em até 14 vezes – o risco de morte, revelou um estudo publicado em fevereiro deste ano na revista médica New England Journal of Medicine. Trabalhos anteriores indicavam que cerca de 10% das crianças com SCZ iam a óbito nos primeiros anos de vida. Não se sabia, no entanto, o quanto esse risco era maior nas crianças com SCZ em comparação com aquelas sem o problema. Também não se conhecia como a probabilidade de morrer era influenciada por fatores importantes para a sobrevivência infantil, como a duração da gestação e o peso ao nascer. A epidemiologista Enny Paixão Cruz, professora na Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, no Reino Unido, e pesquisadora da Fiocruz na Bahia, ajudou a esclarecer essas questões ao analisar os óbitos ocorridos entre 11.481.215 de crianças nascidas no Brasil de 1º de janeiro de 2015 a 31 de dezembro de 2018.

Ao longo desses três anos, o país registrou o nascimento de 3.308 crianças com SCZ e 11.477.907 sem o problema – o número de casos da síndrome já analisados e confirmados pelo ministério é menor. No mesmo período, morreram 398 (12%) do primeiro grupo e 120.609 (1%) do segundo. Até o 3º ano de vida, a taxa de mortalidade das crianças com SCZ foi de 52,6 óbitos em cada grupo de mil crianças por ano e 5,6 mortes em cada grupo de mil crianças por ano entre aquelas sem a síndrome. A diferença foi ainda maior (14,3 vezes) entre os bebês que nasceram após 37 semanas de gestação ou pesando mais de 2,5 quilos (12,9 vezes). “Esse risco continuou elevado nos três primeiros anos de vida, que foi o período avaliado”, conta Cruz.

A maioria dos danos resulta da predileção do vírus por infectar e se reproduzir nas células do sistema nervoso

No primeiro ano de vida, a principal causa de morte entre as crianças com SCZ foram as malformações congênitas, em especial a microcefalia. A partir do segundo ano, aumenta a frequência de mortes por doenças do sistema nervoso central (paralisia) e do sistema circulatório (arritmias e falência cardíaca). “Estamos agora analisando detalhadamente as causas. Conhecê-las pode permitir aprimorar o manejo clínico dessas crianças”, conta a pesquisadora.

De 80% a 100% das crianças com SCZ que completam o primeiro ano de vida apresentam formas graves de paralisia cerebral, indicam os estudos incluídos no artigo de revisão da Frontiers in Genetics. Decorrente de lesões no cérebro e em outros órgãos do sistema nervoso central, essa condição provoca rigidez muscular, dificuldade de controle da postura corporal e da coordenação dos movimentos. Pode também afetar a fala e a deglutição. Essas crianças raramente são capazes de andar por conta própria. Quase sempre precisam ser transportadas em cadeira de rodas e, nos casos menos severos, conseguem se deslocar com o suporte de andadores especiais.

Ao menos seis em cada 10 delas desenvolvem epilepsia, muitas vezes de difícil controle, exigindo o uso de dois, três ou mais medicamentos para dominar as crises convulsivas. Uma proporção semelhante tem rigidez muscular e movimentos exacerbados, além de preservar os chamados reflexos primitivos, um conjunto de movimentos involuntários – por exemplo, os de sugar, fechar os dedos em torno de um objeto encostado na mão ou girar a cabeça em direção ao toque no rosto – que em geral desaparecem depois dos 6 meses de idade. Muitas não apresentam progresso em avaliações feitas no segundo ou terceiro ano de vida.

Em um estudo coordenado pelo epidemiologista Antônio Augusto Moura da Silva, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a fisioterapeuta Eliana Morioka Takahasi analisou a habilidade motora grossa de 100 meninos e meninas com SCZ atendidos no Centro de Referência em Neurodesenvolvimento, Assistência e Reabilitação de Crianças (Ninar), em São Luís, capital do estado. Ela aplicou uma bateria de testes que avaliam a capacidade de sentar, rolar, ficar em pé, engatinhar, andar, correr e pular. São atividades que envolvem a mobilização de grandes grupos musculares e costumam ser dominadas até o segundo ano de vida pela maior parte das crianças sem SCZ nem paralisia cerebral.

No momento da primeira avaliação, as crianças tinham idades variando de 1 ano e 8 meses a 2 anos e meio de idade e 90% delas apresentavam o grau mais severo de limitação. Tinham de ser carregadas no colo ou transportadas em cadeira de rodas e mostravam dificuldade para manter o tronco ereto ou firmar a cabeça, de acordo com os resultados, publicados em outubro de 2020 na revista Neuropediatrics. Quarenta e seis delas passaram por uma segunda avaliação entre seis e oito meses mais tarde, quando já estavam com quase 3 anos. Nenhuma apresentou melhora no quadro. Para os pesquisadores, a maioria estava próxima de alcançar o seu limite de desenvolvimento motor, bem inferior ao das crianças sem a síndrome.

Rodrigo Cunha

Pernambuco, o estado em que primeiro se observou um aumento nos casos de microcefalia em 2015, foi um dos mais afetados nas duas ondas da epidemia. Ali, foram confirmados 332 casos de SCZ em 2015 e 64 em 2016, segundo levantamento publicado em 2018 pelo epidemiologista Giovanny Araújo de França, da Secretaria de Vigilância em Saúde do ministério, na revista Epidemiologia e Serviços de Saúde. Em Recife, equipes de fonoaudiologia, terapia ocupacional e psicologia do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), entidade filantrópica na área da saúde, acompanharam cerca de 40 crianças com SCZ nascidas naquele período até o início da pandemia de Covid-19. Elas tinham quadros de gravidade variada, mas, mesmo assim, conseguiram ganhos limitados.

“Os dois primeiros anos são uma janela de oportunidade para o desenvolvimento motor. É quando a resposta é mais rápida. Depois disso, as crianças atingem um limite”, conta a fisioterapeuta Marcela de Oliveira Lima, coordenadora de reabilitação no Imip. Quando crescem com dificuldade motora, elas podem apresentar limitações para brincar e explorar o ambiente e ter atraso intelectual. “É preciso assistir as mães o tempo todo para que aprendam a lidar com as crianças em casa e as estimulem do modo mais adequado”, explica. Por essa razão, o grupo do Imip desenvolveu uma cartilha com orientações distribuída para os pais de crianças com SCZ.

Na Paraíba, outro estado com um número importante de crianças com SCZ, o grupo da enfermeira Altamira Reichert, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), organizou oficinas e cartilhas de primeiros-socorros para ensinar as mães das crianças atendidas na instituição a lidar com dois problemas frequentes na síndrome: as convulsões e os engasgos. Depois do treinamento, 10 mães foram avaliadas em um estudo qualitativo, para identificar o impacto na vida delas e das crianças. Os resultados, apresentados em 2021 na revista Applied Nursing Research, indicam que o treinamento deu autonomia e confiança para as mães atuarem em situações de engasgo ou crise convulsiva e resolverem o problema. Antes elas adotavam medidas ineficazes ou danosas. “Observamos que, mesmo sem ter bom nível educacional, a mãe, se for bem orientada, consegue cuidar adequadamente da criança nessas situações”, conta Reichert.

Além do atraso marcante no desenvolvimento motor, as crianças com a síndrome têm problemas de cognição e de linguagem. Na Bahia, outro estado com elevado número de casos de infecção por zika durante a epidemia, a pediatra Alessandra Carvalho, da Rede Sarah de Hospitais de Reabilitação em Salvador, avaliou 82 crianças de aproximadamente 1 ano de idade com paralisia cerebral associada à SCZ por meio de uma série de testes. Todas apresentaram desempenho extremamente baixo nas três áreas (cognição, linguagem e habilidade motora), segundo os resultados, publicados em 2019 na revista Brain & Development.

Em um trabalho mais recente, os psicólogos Anne Wheeler e Donald Bailey Jr., ambos do Instituto de Pesquisa Research Triangle International, nos Estados Unidos, usaram os mesmos testes para verificar o desempenho de 121 meninos e meninas com SCZ um pouco mais velhos, com idade ao redor de 2,5 anos. Essas crianças eram atendidas na Fundação Altino Ventura, entidade filantrópica em Recife que já acompanhou 344 crianças com a síndrome desde 2015. Atualmente, 148 delas – entre as quais Grazi – seguem recebendo cuidados médicos e tratamento de fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional e psicologia.

Rodrigo Cunha

Novamente, o desempenho das crianças se mostrou bastante comprometido. Aos 2,5 anos, a maioria delas tinha habilidades comparáveis às de bebês com 2 ou 3 meses de vida, relataram os pesquisadores em maio de 2020 na revista JAMA Network Open.

No domínio cognitivo, três em cada quatro reagiam a sons e reconheciam o cuidador (quase sempre a mãe), mas só 20% delas se mostraram capazes de se envolver e explorar objetos e uma proporção ainda menor (10%) demonstrou habilidade de resolver um problema (encontrar algo que havia caído). Cerca de metade delas conseguia seguir um objeto com o olhar ou movendo a cabeça e até segurá-lo se fosse colocado em suas mãos. Somente 8%, no entanto, eram capazes de agarrar objetos por conta própria. Uma proporção grande (61%) mantinha controle do pescoço e da cabeça quando era carregada, mas só duas crianças caminhavam sozinhas e outras duas engatinhavam.

Elas se saíram melhor na avaliação da linguagem receptiva, quando alcançavam o desempenho de crianças de pouco mais de 1,5 ano. Quase todas reagiam a sons do ambiente e um terço delas demonstrou identificar o próprio nome, mas apenas uma reconheceu os objetos a partir das palavras que os denominam. Duas crianças conseguiram se expressar usando palavras e outras nove balbuciavam ou imitavam sons.

Na Bahia, o grupo coordenado pelo epidemiologista Albert Ko, da Escola de Saúde Pública Yale, nos Estados Unidos, e pesquisador-visitante do Instituto Gonçalo Muniz, da Fiocruz, acompanha cerca de 400 crianças que foram expostas ao vírus zika na gestação, das quais 42 desenvolveram SCZ. Em uma análise recente dessas crianças com quadro grave, publicada na revista PLOS ONE em 2021, ele e seus colaboradores verificaram que quase todas apresentam atraso importante do desenvolvimento cognitivo, motor e de linguagem. Elas, no entanto, manifestaram padrões de desenvolvimento bastante heterogêneos. “Ainda é um desafio entender esses resultados”, afirmou Ko.

Cuidar das crianças com Síndrome Congênita do Zika é uma tarefa complexa. Elas necessitam de cuidados médicos frequentes, além de sessões de fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e estimulação extra em casa para tentar compensar o atraso no desenvolvimento. É uma rotina dura para a família, em especial para as mães, que quase sempre assumem o papel de cuidador em tempo integral. “A mãe passa a viver 24 horas por dia para a criança, o que pode gerar desgaste com o marido e afetar o relacionamento com os outros filhos”, conta a oftalmologista pediátrica Liana Ventura, coautora do estudo publicado na JAMA Network Open e presidente do conselho curador da Fundação Altino Ventura.

Aos 2,5 anos, muitas crianças com a síndrome congênita do zika têm habilidades comparáveis às de bebês de poucos meses

Com a também oftalmologista Camila Ventura, coordenadora de investigação científica da fundação, Liana e seus colaboradores já publicaram 70 artigos científicos detalhando os danos que o zika causa aos olhos e às estruturas cerebrais responsáveis pela visão. A maioria das crianças com SCZ apresenta deficiência visual moderada ou grave por lesões no cérebro. Metade daquelas com microcefalia também tem lesões no olho.

Em uma colaboração com o grupo da oftalmologista Andrea Zin, do Instituto Fernandes Figueira (IFF), centro de referência em saúde materno-infantil da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) no Rio de Janeiro, a equipe coordenada pela psicóloga Dora Fix Ventura, da Universidade de São Paulo (USP), identificou uma proporção ainda mais elevada de alterações oculares. Das 44 crianças assistidas pelo IFF, 29 apresentavam lesões nas estruturas internas dos olhos e 24 tinham uma acuidade visual tão baixa que atendiam aos critérios estabelecidos para definir a cegueira legal.

As regiões geográficas mais afetadas pelo vírus, e com mais casos de SCZ, são aquelas com maior disparidade social, níveis de pobreza mais elevados e menos recursos especializados de saúde, geralmente concentrados nas capitais. Apesar disso, o sistema público de saúde supre uma parte importante das necessidades dessas crianças, embora um bom tanto fique a cargo de instituições filantrópicas. Mesmo assim, cuidar das crianças com a síndrome gera um impacto financeiro alto nas famílias.

A economista Márcia Pinto, pesquisadora do IFF, realizou um levantamento com 95 cuidadores de crianças com a forma grave da SCZ. Oito em cada 10 pertenciam às classes econômicas C, D e E. Para cuidar do filho, 54% haviam deixado de trabalhar (outros 27% já estavam desempregados antes de o problema de saúde surgir). Metade deles consumia 40% da renda familiar para cuidar da criança com SCZ. Um dos fatores com peso importante foi o gasto com deslocamento – a maior parte dessas crianças passava por atendimentos em três unidades de saúde distintas, segundo o trabalho, publicado em novembro passado nos Cadernos de Saúde Pública. Desde 2019, a legislação federal garante um benefício vitalício no valor de um salário mínimo mensal – hoje de R$ 1.212,00 – para a criança com SCZ. “Esse benefício mal dá conta dos gastos com a criança, que muitas vezes precisa de alimentação especial, fraldas e medicamentos nem sempre disponíveis no sistema público. E há ainda o restante da família para cuidar”, relata a economista. “Essas famílias precisam de um mecanismo de proteção social e financeira.”

Em vários estados brasileiros, mulheres como Inabela se organizam em grupos de mães nas redes sociais para trocar experiências sobre como cuidar dessas crianças e exigir acesso a tratamentos e outros direitos para os filhos. “Essas mães vão atrás de tudo para conseguir o atendimento e os medicamentos de que as crianças necessitam”, conta a pediatra Maria Elisabeth Moreira, coordenadora no IFF de uma equipe que já atendeu mais de 500 crianças com SCZ e hoje acompanha 146. “São verdadeiras guerreiras.”

O mistério da concentração no Nordeste

A epidemia de infecção pelo vírus zika atingiu o Brasil de modo bastante heterogêneo em 2015 e 2016. O Nordeste, onde vive menos de um terço da população do país, concentrou de 50% a 84% dos casos suspeitos da Síndrome Congênita do Zika (SCZ). Alguns estudos testaram seis hipóteses plausíveis, mas não se chegou a um consenso de qual seria a mais provável nem da contribuição de cada uma delas.

“Muito provavelmente o problema resulta da interação de fatores genéticos e ambientais”, pondera o neurocientista Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor). Alterações no DNA podem ter algum papel no surgimento da síndrome. As crianças com SCZ têm variações genéticas que tornam mais suscetíveis à ação do vírus as células progenitoras neurais, responsáveis por gerar os diferentes tipos de células cerebrais. O grupo da geneticista Mayana Zatz, da Universidade de São Paulo (USP), coletou células da pele de gêmeos em que um dos irmãos tinha a síndrome e o outro não e as estimulou a se tornarem progenitores neurais. Nas crianças com SCZ, os progenitores eram infectados mais facilmente e se desenvolviam menos. Essa propensão foi determinada por um conjunto de genes, segundo o trabalho, publicado em 2018 na Nature Communications.

A carência de proteína na dieta também pode ter contribuído. Na UFRJ, a equipe da neurocientista Patricia Garcez submeteu fêmeas prenhes de camundongo a uma dieta com redução de proteínas e as infectou com o vírus. A combinação causou alterações na placenta e prejudicou o desenvolvimento do feto, diminuindo a formação de células do sistema nervoso central. Como mostram os dados apresentados em 2020 na Science Advances, esses filhotes tinham o cérebro menor.

Também na UFRJ, Rehen e colaboradores mostraram que a exposição à saxitoxina, substância produzida por cianobactérias e encontrada em maior concentração nos reservatórios de água do Nordeste, dobrou a morte de progenitores neurais em minicérebros humanos infectados pelo zika. Administrada a fêmeas prenhes de camundongo contaminadas com o vírus, a toxina levou ao nascimento de filhotes com anomalias cerebrais. O estudo foi publicado em 2020 na PLOS Neglected Tropical Diseases.

Albert Ko, epidemiologista da Escola de Saúde Pública Yale e da Fiocruz na Bahia, investiga outro efeito ambiental: a presença nas áreas pobres do Nordeste de maior quantidade de mosquitos infectados com o vírus, o que aumentaria a probabilidade de transmissão para gestantes. A razão da suspeita? Em estudo publicado em 2019 na Science, sua equipe verificou que 73% das pessoas de uma região carente de Salvador haviam sido infectadas em um período muito curto de tempo. “As áreas com grande infestação apresentaram maior transmissão”, afirma.

Existe ainda a possibilidade, controversa, de que a infecção prévia pelo vírus da dengue, frequente no Nordeste, exacerbe os danos causados pelo zika. Os anticorpos produzidos contra a dengue produziriam imunidade parcial contra o zika. Em vez de proteger, essa imunidade falha facilita a invasão das células pelo vírus e também sua multiplicação, agravando a infecção, como observaram em 2019 os grupos de Ko e de Michel Nussenzveig, da Universidade Rockefeller, nos Estados Unidos.

Já o virologista Maurício Nogueira, da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp), e seus colaboradores compararam o efeito da infecção por zika em gestantes de duas cidades: Rio de Janeiro, com mais infestação de mosquito e ocorrências de SCZ, e Manaus, onde o problema foi mais raro. O estudo publicado em 2021 na Viruses mostrou que a proporção de casos da síndrome foi maior entre as mães infectadas no primeiro trimestre da gestação.

Artigos científicos
SCHULER-FACCINI, L. et al. Neurodevelopment in Children Exposed to Zika in utero: Clinical and Molecular Aspects. Frontiers in Genetics. 8 mar. 2022.
TAKAHASI, E. M. et al. Gross motor function in children with Congenital Zika Syndrome. Neuropediatrics. v. 52, n. 1, p. 34-43. fev. 2021.
DIAS, T. K. C. et al. First aid intervention with mothers/caregivers of children affected by the Zika virus in Brazil. Applied Nursing Research. v. 57, 15135. fev. 2021.
PAIXÃO, E. S. et al. Mortality from Congenital Zika Syndrome – Nationwide cohort study in Brazil. New England Journal of Medicine. v. 386, n. 8, p. 757-67. 24 fev. 2022.
CARVALHO, A. et al. Clinical and neurodevelopmental features in children with cerebral palsy and probable congenital Zika. Brain & Development. v. 41, n. 7, p. 587-94. ago. 2019.
WHEELER, A. C. et al. Developmental outcomes among young children with Congenital Zika Syndrome in Brazil. Jama Network Open. v. 3, n. 5, e204096. 5 mai. 2020.
AGUILAR TICONA, J. P. et al. Heterogeneous development of children with Congenital Zika Syndrome-associated microcephaly. PLOS ONE. v. 16, n. 9, e0256444. 15 set. 2021.
VENTURA, C. V. et al. Zika: Neurological and ocular findings in infant without microcephaly. The Lancet. v. 387, n. 10037, p. 2502. 18 jun. 2016.
VENTURA, L. O. et al. Visual impairment evaluation in 119 children with Congenital Zika Syndrome. Journal of the American Association Pediatric Ophthalmology and Strabismus. v. 22, n. 3, p. 218-22. 12 abr. 2018.
VENTURA, C. V. et al. Ophthalmological manifestations in Congenital Zika Syndrome in 469 Brazilian children. Journal of the American Association Pediatric Ophthalmology and Strabismus. Jun. 2021.
PINTO, M. et al. Gasto catastrófico na síndrome congênita do vírus Zika: resultados de um estudo transversal com cuidadores de crianças no Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública. v. 37, n. 11. 22 nov. 2021.
CAIRES-JUNIOR, L. C. et al. Discordant congenital Zika syndrome twins show differential in vitro viral susceptibility of neural progenitor cells. Nature Communications. v. 9, 475. 2 fev. 2018.
BARBEITO-ANDRÉS, J. et al. Congenital Zika syndrome is associated with maternal protein malnutrition. Science Advances. v. 6, n. 2. 10 jan. 2020.
PEDROSA, C. S. G. et al. The cyanobacterial saxitoxin exacerbates neural cell death and brain malformations induced by Zika virus. PLOS Neglected Tropical Diseases. v. 14, n. 3, e0008060. 12 mar. 2020.
RODRIGUEZ-BARRAQUER, I. et al. Impact of preexisting dengue immunity on Zika virus emergence in a dengue endemic region. Science. v. 363, n. 6427, p. 607-10. 8 fev. 2019.
ROBBIANI, D. F. et al. Risk of Zika microcephaly correlates with features of maternal antibodies. Journal of Experimental Medicine. v. 216, n. 10, p. 2302-15. 14 ago. 2019.
DAMASCENO, L. et al. Why did ZIKV perinatal outcomes differ in distinct regions of Brazil? An exploratory study of two cohorts. Viruses. v. 13, n. 5, p. 736. 23 abr. 2021.

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