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História da FAPESP VII

A escalada do etanol

Articulação dos pesquisadores paulistas ajuda a multiplicar o uso da bioenergia

Delfim Martins

Campo experimental de cana-de-açúcar da Usina da Barra, em Barra Bonita (SP), em 2000Delfim Martins

Pesquisadores das universidades de São Paulo (USP) e Estadual de Campinas (Unicamp) desvendaram em 2011 cerca de 10,8 gigapares de bases do DNA da cana, 33 vezes o produto dos dois anos do projeto Genoma Cana, encerrado em 2001, que mapeou os genes expressos da planta. O resultado faz parte de dois projetos temáticos, coordenados pela bióloga molecular Glaucia Souza e a geneticista Marie-Anne Van Sluys, professoras da USP, e com conclusão prevista para 2013, que buscam o mapeamento dos genes da cana-de-açúcar. Dada a complexidade do genoma, 300 regiões já estão organizadas em trechos maiores que 100 mil bases, que contêm de 5 a 14 genes contíguos de cana. Os pesquisadores querem ir além do Genoma Cana tanto na quantidade de dados como nas perguntas sobre como funciona o genoma da planta que se tornou sinônimo de energia renovável. Estudos de gramíneas como sorgo e arroz mostraram que para melhorar a produtividade das plantas é preciso saber como a atividade dos genes é controlada, função de trechos do DNA conhecidos como promotores.

A pesquisa é um exemplo de como o conhecimento sobre cana-de-açúcar e etanol avançou nos últimos 15 anos, com apoio da FAPESP. Do projeto Genoma Cana, que mapeou os genes expressos da cana-de-açúcar entre 1998 e 2001, ao Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (Bioen), iniciado em 2008, do qual Glaucia é coordenadora, a Fundação vem patrocinando um grande esforço de investigação, que articula pesquisadores de várias áreas do conhecimento, voltado para aprimorar a produtividade do etanol brasileiro e avançar em ciência básica e tecnologia relacionadas à geração de energia de biomassa.

Com três anos de existência, os resultados do Bioen são palpáveis e variados. Um processo inovador para a produção de bioquerosene a partir de vários tipos de óleos vegetais, que poderá tornar o combustível usado em aviões menos poluente e mais barato, foi desenvolvido na Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Após sua extração e refino, o óleo é colocado em um reator junto com uma quantidade específica de etanol e um catalisador, responsável por acelerar as reações químicas. “A maior contribuição do processo de obtenção do bioquerosene são os altos índices de pureza do produto final”, disse Rubens Maciel Filho, professor da FEQ e coordenador do estudo.

Outra contribuição de Maciel é um projeto que busca criar compostos de alto valor econômico a partir de substratos da cana. O projeto vem obtendo bons resultados na produção do ácido acrílico e do ácido propiônico a partir do ácido láctico. “É possível desenvolver produtos com valores 190 mil vezes maiores do que o do açúcar”, diz Maciel.

A experiência em genômica da geneticista Marie-Anne Van Sluys, da USP, levou-a à liderança de um projeto cujo objetivo é gerar um sequenciamento parcial de dois cultivares de cana (R570 e SP80-3280) e subsidiar o desenvolvimento de ferramentas moleculares capazes de auxiliar na compreensão deste genoma. Um dos alvos é o estudo dos chamados elementos de transposição, regiões de DNA que podem se transferir de uma região para outra do genoma, deixando ou não uma cópia no local antigo onde estavam. “Programas de melhoramento também poderão ser beneficiados tendo acesso a informações moleculares com potencial para o desenvolvimento de marcadores”, diz Marie-Anne.

Um projeto liderado por Ricardo Zorzetto Vêncio, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, desenvolveu a versão piloto de um software para tentar caracterizar as funções de genes da cana-de-açúcar. A abordagem é inovadora porque não se limita a atribuir a uma sequência de genes de um organismo as funções já observadas numa sequência semelhante de outro ser vivo. A ideia é utilizar algoritmos que contemplem a incerteza contida nessa associação. “Em vez de simplesmente dizer que um gene tem uma função específica queremos dizer qual é a probabilidade de ele ter essa função e, neste cálculo, levar em conta diferentes evidências como a relação evolutiva com outros genes ou se tem algum experimento que confirma a função”, diz Vêncio. Augusto Garcia, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, está desenvolvendo um software voltado para a utilização de marcadores genéticos em programas de melhoramento, explorando a genética e a fisiologia da cana-de-açúcar. “Essa é uma das grandes expectativas de obtenção de cultivares mais rapidamente”, diz Glaucia Souza. A cada ano, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) testa 1 milhão de mudas em busca de plantas mais produtivas. Demora 12 anos para que surjam duas ou três variedades promissoras.

Estudos de André Meloni Nassar, diretor-geral do Instituto de Estudos do Comércio e Negociações Internacionais (Icone), avançaram também na utilização de modelos econômicos para avaliar as mudanças de uso da terra causadas pela produção em larga escala de biocombustíveis. Já na busca do etanol de celulose, um dos destaques é um projeto que avalia como é possível romper a resistência das paredes celulares de vegetais lignificados, como a cana, por meio de hidrólise enzimática. A lignina é uma macromolécula encontrada em plantas, associada à celulose na parede celular, cuja função é conferir rigidez e resistência. Quebrá-la é um desafio para obter etanol de celulose. “Para entender como a remoção de lignina pode diminuir a recalcitrância das paredes celulares, têm sido avaliados, além de variedades comerciais, híbridos de cana com teores contrastantes de lignina”, diz Adriane Milagres, professora da Escola de Engenharia de Lorena, da USP, uma das coordenadoras do projeto. “Quando materiais são tratados com métodos seletivos, a remoção de 50% da lignina original já eleva o nível de conversão da celulose para 85-90%.”

Desde os seus primeiros anos, a FAPESP deu suporte a iniciativas que criaram massa crítica para o esforço recente. Um exemplo foi o lançamento, em 1968, do Laboratório de Biotecnologia Industrial da Escola Politécnica da USP. Desde a década de 1940 a Poli havia montado uma usina piloto para a produção de etanol por fermentação, mas faltavam reatores de pequeno porte e equipamentos que permitissem a realização de trabalhos mais completos. Outra contribuição da Fundação foi o Programa Bioq-FAPESP, lançado em 1972 (ver Pesquisa FAPESP nº 185). Ao formar recursos humanos no campo da biotecnologia, abriu caminho para a tarefa de sequenciar o genoma de vários organismos nos anos 1990 e 2000, entre os quais o da cana. “Tanto o Bioq-FAPESP, nos anos 1970, quanto o Programa Integrado de Genética, do CNPq, nos anos 1980, são pilares do esforço atual”, diz Marie-Anne Van Sluys, professora do Instituto de Biociências da USP e uma das coordenadoras do Bioen.

Um salto no interesse pela pesquisa em cana e etanol aconteceu em abril de 1999, com o advento do Genoma Cana, cujo nome oficial era Programa FAPESP Sucest (Sugar Cane Est). O projeto, que mapeou 250 mil fragmentos de genes funcionais da cana, caracterizou-se pela interação com o setor privado que marca o esforço de pesquisa em bioenergia até hoje. Paulo Arruda, professor da Unicamp, lembra que foi convidado a liderar o projeto depois que a Cooperativa dos Produtores de Açúcar e Álcool do Estado de São Paulo (Copersucar) procurou a diretoria científica da FAPESP e propôs uma parceria entre universidades e indústria para o mapeamento do genoma da cana. “O professor José Fernando Perez, diretor científico à época, me perguntou o que eu achava. Observei que a cana tem um genoma muito complexo e sugeri o mapeamento dos fragmentos funcionais do genoma”, diz Arruda, que hoje é um dos coordenadores da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP. A cana é um um organismo poliploide: cada cromossomo tem de 6 a 10 cópias – nem sempre iguais. Essa peculiaridade fez com que o sequenciamento integral do genoma fosse descartado.

Desafios e talentos
O Genoma Cana durou dois anos e meio, reuniu 240 pesquisadores e teve financiamento da ordem de US$ 4 milhões da FAPESP e outros US$ 400 mil da Copersucar. “O projeto foi realmente inovador. Centrado em gente muito jovem, que tinha mais facilidade de lidar com tecnologia que os pesquisadores mais experientes, o Genoma Cana mostrou que é possível identificar grandes desafios e reunir talentos para resolvê-los”, afirma Arruda. Fundamentalmente, deu início ao esforço, ainda em curso, de aprofundar o conhecimento sobre o metabolismo da cana para obter mais rapidamente variedades mais produtivas e resistentes à seca ou a solos pobres.

A conclusão do Genoma Cana não arrefeceu o interesse dos pesquisadores e da indústria em seguir buscando conhecimento sobre a planta. Depois de 2003, Glaucia Souza assumiu a coordenação do Sucest e iniciou o Projeto Sucest-FUN, dedicado à análise dos genes da cana. A identificação dos 348 genes associados ao teor de sacarose foi realizada em um projeto entre o CTC, a Usina Central de Álcool Lucélia e pesquisadores da USP e Unicamp, num projeto liderado por Glaucia. Outro projeto importante foi a identificação de marcadores moleculares a partir das sequências do Sucest, sob a liderança da pesquisadora Anete Pereira de Souza, do Instituto de Biologia da Unicamp. “Os projetos da Glaucia e da Anete foram dois marcos, porque demonstraram haver uma comunidade preparada a investir no tema. Os avanços viabilizaram mapear o Genoma da Cana, o que não era possível na época do Sucest”, diz Marie-Anne.

Simultaneamente, crescia o interesse das empresas pela pesquisa em bioenergia. Em 2006, a FAPESP, em parceria com o BNDES, firmou um convênio com a Oxiteno, do Grupo Ultra, para o desenvolvimento de projetos cooperativos em que se investiga desde o processo de hidrólise enzimática do bagaço da cana para a obtenção de açúcares até a produção de etanol de celulose. No ano seguinte, a Dedini Indústrias de Base celebrou um convênio com a FAPESP para financiar projetos sobre técnicas de conversão do bagaço de cana em etanol. No início de 2008, a FAPESP e a Braskem também estabeleceram um convênio para o desenvolvimento de biopolímeros. Duas empresas de biotecnologia, formadas em boa medida por pesquisadores vinculados ao Programa Genoma da FAPESP, a Alellyx e a Canavialis, foram adquiridas no final de 2008 pela multinacional Monsanto, que as transformou em sua plataforma mundial de pesquisa em cana-de-açúcar – Paulo Arruda, que liderou o Genoma da Cana, trabalhava na Alellyx.

Milho com subsídios
A crescente importância econômica da cana ajudou a impulsionar o interesse dos pesquisadores. O Brasil colheu na safra de 2009 569 milhões de toneladas de cana – quase o dobro da colheita de 1999, segundo dados da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Metade da produção foi transformada em etanol – o equivalente a 27 bilhões de litros –, o que coloca o Brasil como o segundo maior produtor mundial de combustível. O primeiro lugar cabe aos Estados Unidos, que extraem etanol de milho a poder de pesados subsídios. São Paulo respondeu por 60% da produção nacional. O ganho de produtividade tem sido maior do que 3% ao ano nos últimos 40 anos, resultado de melhoramento genético da cana. O etanol fez do Brasil um exemplo único de país que substituiu o uso de gasolina em grande escala. No estado de São Paulo, 56% da energia vem de fontes renováveis, sendo 38% da cana.

Para articular os esforços existentes e dar impulso a vertentes de pesquisa ainda incipientes, a FAPESP lançou em julho de 2008 o Programa Bioen. Um dos objetivos é superar entraves tecnológicos e ampliar ainda mais a produtividade do etanol de primeira geração, feito a partir da fermentação da sacarose. Outro mote é participar da corrida internacional em busca do etanol de segunda geração, produzido a partir de celulose. O programa tem cinco vertentes. Uma delas é o de pesquisa sobre biomassa, com foco no melhoramento da cana. A segunda é o processo de fabricação de biocombustíveis. A terceira está vinculada a aplicações do etanol para motores automotivos e de aviação. A quarta é ligada a estudos sobre biorrefinarias, biologia sintética, sucroquímica e alcoolquímica. E a quinta trata dos impactos sociais e ambientais do uso de biocombustíveis.

Um desdobramento do Bioen foi a criação em 2010 do Centro Paulista de Pesquisa em Bioenergia. Trata-se de um esforço para estimular a pesquisa interdisciplinar e ampliar o contingente de pesquisadores envolvidos com o tema, mantido pela FAPESP, o governo do estado de São Paulo e as três universidades estaduais paulistas. Pelo convênio, o governo repassa recursos para a USP, a Unicamp e a Unesp, que serão usados para a construção de laboratórios, reformas e compra de equipamentos. As universidades incumbem-se de contratar mais pesquisadores em diversas vertentes da bioenergia. Já a FAPESP assumiu a missão de selecionar e financiar os projetos vinculados ao centro. “Atualmente as três universidades estão organizando editais para contratar os primeiros 17 pesquisadores do centro, sendo 7 nas unidades da USP, 5 na Unicamp e 5 na Unesp”, diz Luis Cortez, professor da Unicamp e coordenador do centro. Esse número deve chegar a cerca de 50, à medida que novos investimentos forem feitos pelo governo. Um exemplo é o Centro de Biologia Sintética e Sistêmica da Biomassa, na USP, idealizado em 2008 por Glaucia Souza, Marie-Anne Van Sluys e Marcos Buckeridge. Esse centro vai reunir pesquisadores dos institutos de Química, de Matemática e Estatística, de Biociências, de Ciências Biomédicas, e da Escola Politécnica. A biologia sintética combina biologia e engenharia para construir novas funções e sistemas biológicos. “A intenção é investir numa área em que o Brasil ainda não tem grande expertise e envolver pesquisadores de várias disciplinas”, diz Glaucia Souza

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