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Literatura

A escritora das entrelinhas

Colóquio internacional, filmes, peça teatral e livros evidenciam permanência da obra de Clarice Lispector nos 100 anos de seu nascimento

Registro de Clarice Lispector em 1976, ano em que também se dedicou à pintura

Madalena Schwartz / Instituto Moreira Salles

Às vésperas do centenário de Clarice Lispector (1920-1977), a ser celebrado em 10 de dezembro, uma série de eventos vem homenageando a autora de clássicos como A hora da estrela (Livraria José Olympio, 1977) e A paixão segundo G.H. (Editora do Autor, 1964). “Muita gente acha que Clarice ganhou fama agora, mas ela é uma das poucas escritoras brasileiras que foram reconhecidas em vida – e traduzida para o francês já na primeira metade dos anos 1950. Em 2010 eram 180 as traduções de suas obras, do Oriente ao Ocidente”, diz Nádia Battella Gotlib, professora aposentada de literatura brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). “Talvez uma boa forma de homenageá-la agora seja ficar em silêncio e reler seus livros.”

Nascida na Ucrânia, Lispector chegou ao Brasil em 1922 com os pais e duas irmãs para fugir do antissemitismo e da miséria. Primeiro, a família de origem judaica aportou em Maceió (AL), onde moravam alguns parentes. Três anos mais tarde, mudaram-se para Recife (PE). “Clarice, cujo nome de nascença era Haia, viveu uma infância muito pobre”, prossegue Gotlib, autora da primeira biografia sobre a escritora, Clarice, uma vida que se conta, resultado de sua tese de livre-docência, lançada pela editora Ática em 1995 e atualmente no catálogo da Edusp. “No Recife, aprendeu a ler e se apaixonou pela literatura. Chegou a mandar algumas histórias para a página infantil do jornal Diário de Pernambuco, que nunca foram publicadas, e também escreveu uma peça de teatro. Foi o início de tudo.”

Na década de 1930, após a morte da mulher, Pedro Lispector decidiu levar as filhas para estudar no Rio de Janeiro. A caçula, Clarice, escolheu o curso de direito. Em 1939, ingressou na antiga Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Ela era muito preocupada com a questão social e dizia que optou pelo direito para tentar melhorar o sistema prisional brasileiro, mas nunca exerceu a profissão”, conta o poeta Eucanaã Ferraz, da Faculdade de Letras da UFRJ. Já durante a graduação começou a trabalhar como jornalista, época em que também publicou contos em revistas. “Clarice foi uma das primeiras jornalistas brasileiras em um tempo em que as mulheres não estavam nas redações”, observa Yudith Rosenbaum, professora de literatura brasileira da FFLCH-USP, que estuda a obra da autora pelo viés da psicanálise desde a década de 1990.

Em 1943, ano de sua formatura, a editora A noite lançou Perto do coração selvagem, primeiro romance de Lispector, que mereceu o seguinte comentário do crítico literário Antonio Candido (1918-2017), à época: “Tentativa impressionante para levar nossa língua canhestra a domínios pouco explorados, forçando-a a adaptar-se a um pensamento cheio de mistério para o qual sentimos que a ficção não é um exercício ou uma aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito”. O livro, que acompanha sem fio cronológico os passos da protagonista Joana, teve uma “recepção esplendorosa”, relembra João Camillo Penna, da Faculdade de Letras da UFRJ, e recebeu críticas favoráveis, como as do poeta Sérgio Milliet (1898-1966). Uma das vozes dissonantes foi Álvaro Lins (1912-1970), do jornal Correio da Manhã, que não gostou da narrativa fragmentada, justamente o aspecto inovador da obra. “De qualquer forma, Clarice ganhou projeção imediata com o livro, em que já estão colocados aspectos que seriam recorrentes em sua obra, como a questão feminina e a metafísica”, relata Penna.

Arquivo da família de Clarice Lispector A autora de A paixão segundo G.H. em seu apartamento, no Rio de Janeiro, na década de 1960Arquivo da família de Clarice Lispector

Ainda em 1943 Lispector casou-se com um colega de faculdade, o futuro diplomata Maury Gurgel Valente (1921-1994), com quem teve dois filhos, Pedro e Paulo. Por causa da profissão do marido, ela moraria em lugares como Inglaterra e Estados Unidos. Em Nápoles, na Itália, finalizou seu segundo romance, O lustre (Agir, 1946) ), e, mais tarde, na Suíça, “em meio ao silêncio aterrador das ruas de Berna”, como registrou em carta para as irmãs, concluiu A cidade sitiada (A noite, 1949). Os três primeiros livros da autora foram relançados no final do ano passado pela Rocco e abriram a série de publicações prevista pela editora carioca para seu centenário. “Serão ao todo 18 títulos, entre romances, coletâneas de contos e crônicas”, diz o editor Pedro Karp Vasquez. “Ao final de cada volume trazemos um posfácio assinado por especialista para que funcione não como um guia de leitura, coisa que desagradaria a Clarice, mas como um instrumento de expansão das possibilidades de interpretação.”

No projeto gráfico do designer Victor Burton, as capas são pinturas feitas pela própria escritora já no final da vida, entre 1975 e 1976. “Clarice não tinha pretensão de ser artista plástica: o ato de pintar era uma forma livre de expressão”, opina Ricardo Iannace, professor do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da USP. No livro Retratos em Clarice Lispector: Literatura, pintura e fotografia (Editora UFMG, 2009), desdobramento de sua tese de doutorado naquela universidade, o pesquisador reuniu 22 pinturas produzidas pela escritora que estavam depositadas nos acervos da Fundação Casa de Rui Barbosa e do Instituto Moreira Salles (IMS) e na casa de uma de suas amigas mais próximas, a escritora Nélida Piñon. “Com exceção de uma tela, os trabalhos são feitos sobre madeira com tinta, vela derretida, caneta esferográfica e até mesmo esmalte de unha. É uma técnica mista, da ordem sobretudo do abstrato, que traz grande correspondência com a literatura clariciana.”

Um dos títulos mais aguardados por pesquisadores foi lançado em setembro. O livro Todas as cartas reúne 284 correspondências escritas por Lispector entre as décadas de 1940 e 1970. “Dentre as inéditas estão cerca de 50 cartas enviadas para interlocutores como Rubem Braga [1913-1990], Otto Lara Resende [1922-1992], Mário de Andrade [1893-1945] e Lygia Fagundes Telles”, aponta Teresa Montero, doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e estudiosa da obra clariciana há três décadas. “Na correspondência para João Cabral de Melo Neto [1920-1999], por exemplo, ela reflete sobre o fazer literário e seu estado de espírito diante daquela espécie de exílio em Berna, quando acompanhava o marido.”

Responsável pelo prefácio e as 510 notas que contextualizam o material reunido na obra, Montero prepara para o ano que vem a edição ampliada de seu livro Eu sou uma pergunta: Uma biografia de Clarice Lispector, lançado originalmente em 1999. Também pela Rocco está previsto para 2021 o lançamento de G.H. – Diário de um filme, título provisório do livro escrito e organizado por Melina Dalboni, roteirista de A paixão segundo G.H, dirigido por Luiz Fernando Carvalho. Segundo Dalboni, a ideia foi mapear o passo a passo da produção cinematográfica e também o diálogo entre literatura e cinema. Antes do início das filmagens, em 2018, parte da equipe frequentou oficinas teóricas ministradas por especialistas na obra de Lispector como Gotlib, Rosenbaum, José Miguel Wisnik e Franklin Leopoldo e Silva. “Eles nos ajudaram a entrar no universo clariciano, onde é preciso ler por trás das palavras”, conta Dalboni. “Clarice é uma autora das entrelinhas.”

Arquivo da família de Clarice Lispector Bilhete enviado por Lispector, pouco antes de sua morte, para a escritora Lygia Fagundes Telles, em novembro de 1977Arquivo da família de Clarice Lispector

No longa-metragem ainda sem data de estreia e inspirado no romance homônimo de Lispector, a atriz Maria Fernanda Cândido interpreta uma escultora de classe média alta que, ao visitar o quarto de Janair, a empregada doméstica demissionária, passa por uma profunda experiência existencial em que chega a comer uma barata. “É uma história incomodamente atual e de uma potência revolucionária avassaladora que, na maioria das vezes, costuma ser lida pelo viés filosófico e psicológico, invisibilizando inúmeras camadas estruturais do romance, como a luta de classes e o preconceito racial”, observa Carvalho.

“No livro, o processo de tomada de consciência de G.H. acontece de forma densa, rápida e impactante”, constata a pesquisadora Ludmilla Carvalho Fonseca, que em sua tese de doutorado comparou esse processo a outro similar em Les belles images, publicada em 1966 pela francesa Simone de Beauvoir (1908-1986). Defendida em julho na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Assis, na tese Fonseca busca entender como as duas protagonistas desses romances escritos na década de 1960 modificaram o próprio modo de pensar sobre a condição social na qual estavam inseridas e também sobre a condição existencial feminina.

Outra produção cinematográfica em curso é O livro dos prazeres. O filme, livremente inspirado em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, romance de Lispector lançado pela editora Sabiá em 1969, narra a história de amor entre o filósofo Ulisses, interpretado por Javier Drolas, e a angustiada professora Lóri, papel de Simone Spoladore. “O enredo foi adaptado para os dias de hoje e trata da jornada de investigação íntima de Lóri e seu embate com o afeto e a autorrealização numa sociedade ainda patriarcal, mesmo 50 anos após o lançamento do livro. Lóri aprende a amar enfrentando a própria solidão”, analisa a cineasta Marcela Lordy, diretora do longa-metragem, com estreia prevista para o ano que vem. “É um livro escrito após o AI-5, no auge da ditadura militar [1964-1985], onde Lóri toma as rédeas da própria vida. Clarice promove uma revolução feminista para o lado de dentro.”

Em mesa com a psicanalista Maria Lúcia Homem, a cineasta vai falar sobre o filme no Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, organizado pelas professoras Rosenbaum e Cleusa Rios Passos, também da FFLCH-USP. Previsto para acontecer entre 19 e 21 de outubro, a programação do evento, virtual em decorrência da pandemia da Covid-19, terá a participação de especialistas do Brasil, de Portugal, dos Estados Unidos e da França, e reflete o crescente alcance mundial da obra clariciana, na opinião de Rosenbaum. “A permanência de uma obra não depende apenas da excelência do autor, mas das várias leituras que se fazem dela”, constata a autora de Metamorfoses do mal: Uma leitura de Clarice Lispector (Edusp/Fapesp, 1999). “E isso hoje Clarice tem de sobra. O resultado é que surge renovada a cada leitura.”

As várias leituras suscitadas pela obra clariciana também estão presentes no livro Visões de Clarice Lispector: Ensaios, entrevistas e leituras, lançado neste ano pela Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará (UFC). Organizada por Fernanda Coutinho e Sávio Alencar, a publicação reúne trabalhos de 24 estudiosos que refletem sobre o legado da escritora, incluindo as tradutoras de sua obra para o italiano, alemão, espanhol e iídiche. “Clarice estava em permanente indagação e sua escrita, de desenho inquieto e perturbador, conseguia dizer o indizível ao tratar de temas como o feminino e a animalidade”, constata Coutinho, do Programa de Pós-graduação em Letras da UFC. “Acho que por isso é tão contemporânea e seduz novas gerações de leitores.”

Em 1959, separada do marido, Lispector voltou ao Rio de Janeiro com os dois filhos pequenos, após 16 anos fora do Brasil. Para se sustentar, voltou a publicar contos, dessa vez na revista Senhor, e lançou o livro Laços de família (Livraria Francisco Alves Editora, 1960), que a insere novamente no circuito literário carioca. “Além disso, a produção de contos a revela para um público mais amplo”, observa Penna, da UFRJ. Público que vai se expandir quando Lispector passa a escrever crônicas para o Jornal do Brasil em 1967. Parte dessa produção foi reunida no livro A descoberta do mundo (Nova Fronteira, 1984), organizado pelo filho caçula, o economista e escritor Paulo Gurgel Valente.

A mulher desse período de retorno ao Brasil, em torno dos 40 anos de idade, se encontra com a quase sexagenária no espetáculo Ao redor da mesa, com Clarice Lispector, escrito e dirigido por Clarisse Fukelman, professora da Faculdade de Comunicação da PUC-RJ e especialista na obra clariciana. A peça, que entrou em cartaz no Espaço Sesc, no Rio de Janeiro, em março, teve suas sessões interrompidas por causa da pandemia. Convertida em uma série de 9 episódios, agora sob o título Ao redor da tela, com Clarice Lispector, durante o mês de outubro o espetáculo está disponível na Plataforma Sesc RJ no YouTube.

O contexto de pandemia também afetou a exposição Constelação Clarice, do IMS, que detém parte do acervo da escritora. Prevista para estrear em dezembro, a mostra deve ser aberta em julho do ano que vem, em São Paulo. “A ideia é reunir não apenas material biográfico da homenageada, mas também obras de artistas visuais contemporâneas a Clarice, como Djanira [1914-1979], Fayga Ostrower [1920-2001] e Maria Bonomi”, explica Eucanaã Ferraz, curador da mostra com a escritora Verônica Stigger e também organizador do site Clarice Lispector, do IMS. “Queremos tentar descobrir o que inquietava essas mulheres em uma época ainda marcada pela submissão feminina e, assim, estabelecer laços entre elas.”

Projeto
Estilhaços de paixão e beleza: A tomada de consciência em A paixão segundo G.H. (1964), de Clarice Lispector, e Les belles images (1966), de Simone de Beauvoir (nº 16/13683-7); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisadora responsável Daniela Mantarro Callipo (USP); Bolsista Ludmilla Carvalho Fonseca; Investimento R$ 152.405,89.

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