Imprimir PDF Republicar

Física

A força do vácuo

Equipe da USP descobre os limites de uso da equação de onda de Schrödinger, uma das mais empregadas no estudo do átomo

NasaCampo magnético sobre um cilindro: semelhante ao vácuoNasa

Filho de médico, Aristóteles aprendeu desde pequeno a exibir segurança em tudo que dizia. Mais tarde, o sábio grego formulou a tese de que a natureza e o vácuo não combinam. Quase 3 mil anos depois, porém, o vácuo deixou de ser sinônimo de vazio e tornou-se um reservatório inesgotável de energia que não pode mais ser desconsiderado. É o vácuo que fornece energia para os elétrons – partículas atômicas com carga elétrica negativa – e os mantém em movimento ao redor do núcleo atômico. Aristóteles se surpreenderia se soubesse que, sem essa energia, os objetos não teriam se formado. Não haveria nada além de uma sopa de elétrons e prótons – partículas com carga positiva – que não conseguiriam se organizar em átomos.

Foi levando em conta o vácuo que pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) compararam as duas equações que fornecem a energia mínima do átomo – ambas foram criadas no início do século passado, quando o vácuo ainda era visto como espaço vazio, por dois expoentes da ciência moderna, o alemão Werner Heisenberg e o austríaco Erwin Schrödinger. Os físicos da USP constataram que apenas a formulação de Heisenberg funciona de modo satisfatório quando as forças do vácuo são consideradas. Desse modo, estabeleceram os limites de uso de uma das fórmulas mais usadas no estudo do comportamento dos átomos, a chamada equação de onda de Schrödinger – incluindo o vácuo, a equação de Schrödinger resulta em um valor incorreto para a energia mínima do átomo. Ao mesmo tempo, os físicos paulistas desfizeram a antiga idéia de que as duas abordagens seriam sempre equivalentes e levariam ao mesmo resultado a respeito da energia mínima do átomo – uma informação essencial para entender, por exemplo, a que temperatura um metal derrete.

Estudantes, engenheiros e físicos certamente hão de gostar da notícia porque a equação que indica corretamente a energia do átomo é a de Heisenberg, mais simples e mais fácil de ser trabalhada que a outra. A equação de onda de Schrödinger continua útil, mas lidar com ela exigirá um pouco mais de atenção a partir de agora. “De maneira ainda não compreendida, os efeitos das forças do vácuo já estão incluídos em algum elemento da formulação de Schrödinger”, observa Coraci Pereira Malta, uma das autoras do estudo, publicado em dezembro na Physics Letters A.

“Só não sabemos como Schrödinger conseguiu, já que não conhecia as forças do vácuo.” O trabalho – em co-autoria com Humberto França e dois de seus alunos, Alencar Faria e Rodrigo Sponchiado, todos da USP – demonstra que o resultado da equação de Heisenberg com o vácuo é equivalente à de Schrödinger sem o vácuo.”Provamos que Schrödinger estava mesmo errado ao dizer que sua formulação e a de Heisenberg eram equivalentes”, comenta Coraci. Para não parecerem pretensiosos a ponto de destronarem um dos fundadores da mecânica quântica, ela elabora uma versão mais modesta para explicar o que fizeram: “Confirmamos o que Dirac havia suspeitado”.

Partículas solitárias
O britânico Paul Dirac redescobriu o vácuo em 1927. Já haviam se passado quase 20 anos desde que esse tipo de energia tinha sido proposto pelo alemão Max Planck, o descobridor das primeiras leis do estranho mundo da mecânica quântica, no qual as partículas atômicas adquirem comportamentos aparentemente absurdos – podendo estar em dois lugares ao mesmo tempo ou ir de um ponto a outro sem passar pelo meio. Em 1963, Dirac levantou a possibilidade de que os dois caminhos para calcular a energia mínima do átomo, o de Heisenberg e o de Schrödinger, não levariam ao mesmo resultado. Dirac chegou a essa conclusão valendo-se de cálculos sofisticados, que descrevem a interação do elétron com as forças eletromagnéticas do vácuo. Suas conclusões permaneceram desconhecidas até serem resgatadas pelo grupo da USP no ano passado.

Os físicos paulistas chegaram ao mesmo resultado de Dirac com um modelo conceitual bastante simples, equivalente a um elétron imerso no vácuo vibrando na ponta de uma mola. É o chamado oscilador harmônico simples com carga elétrica, o mesmo que pode representar o átomo de hidrogênio, com somente um elétron orbitando uma partícula solitária – um próton – que constitui o núcleo. Esse modelo representa também os átomos de outros seis elementos químicos – lítio, sódio, potássio, rubídio, césio e frâncio – em cuja camada mais externa circula apenas um elétron.

Com base nessa plataforma de testes, os pesquisadores avaliaram, primeiro, a equação criada por Heisenberg. Curiosamente, o caminho matemático proposto pelo cientista alemão para encontrar a energia do elétron é semelhante à abordagem adotada 300 anos antes pelo físico britânico Isaac Newton para definir o movimento de um corpo qualquer. Heisenberg e Newton, cada um a seu modo, vêem a aceleração como efeito da força atuante sobre esse corpo e assim prevêem o movimento, seja de um componente do núcleo atômico, seja de um planeta. Newton, em 1687, e Heisenberg, em 1925, consideram a posição da partícula evoluindo no tempo – uma varriável abolida na equação de Schrödinger, formulada um ano mais tarde, em 1926. Schrödinger trabalha com estados de movimento independentes do tempo – o elétron não é mais visto como partícula, mas como onda. Seu enfoque resultou em uma equação um tanto mais complicada que a de Heisenberg. Mas Schrödinger garantia: ambas levavam aos mesmos resultados.

Não foi, porém, o que se verificou no final do ano passado. Os físicos da USP acrescentaram as forças do vácuo à fórmula de Heisenberg e, sem problema algum, chegaram ao valor correto para a energia mínima do elétron oscilando na ponta de uma mola. Ao fazer o mesmo com o enfoque de Schrödinger, notaram que a energia do elétron simplesmente dobrava e conduzia a situações estranhas – seria como dizer que uma pessoa comum de quase 2 metros pode ter até 4 metros de altura. A equação de Schrödinger só funcionava com perfeição sem as forças do vácuo – a altura máxima das pessoas voltou a ser 2 metros. Vem daí a recomendação prática: não adicionar as forças do vácuo à equação de onda de Schrödinger.

Exceto nessa situação, o vácuo não pode mais ser desprezado. O próprio elétron parece perceber esse tipo de energia dispersa no espaço, como uma mosca encharcando-se de umidade momentos antes de uma chuva começar. “O elétron emite e absorve radiação do vácuo a todo momento”, diz França. “E só mantém a órbita estável porque emite o mesmo tanto de energia que absorve.” Embora quase imperceptível à temperatura ambiente, o vácuo atua de modo semelhante a um campo magnético, resultado da ação de um ímã comum, e consegue aproximar duas placas metálicas neutras, paralelas e mantidas a uma temperatura próxima do zero absoluto (-273o Celsius), como já demonstrado experimentalmente – é a força de Casimir, identificada em 1954.

Mesmo que não seja tão conhecido quanto a eletricidade, o vácuo é mais intenso que a gravidade, a mais tênue e abrangente das forças que regem o Universo. A força de Casimir torna-se 16 vezes maior se a distância entre as duas placas cai à metade, enquanto a gravidade apenas quadruplica. Ainda falta provar, mas se imagina que o vácuo possa ser a misteriosa energia escura, correspondente a 73% do universo. De imediato, além de explicar a composição do cosmo, o vácuo tornou-se importante por representar uma forma de energia aproveitável, até mesmo para substituir a eletricidade. Essa possibilidade surgiu apenas alguns anos depois de a teoria quântica ter se tornado consistente, como resultado do trabalho conjunto de um grupo de físicos notáveis que incluía Dirac, Schrödinger e Heisenberg. Em 1928, quando começavam a ser esclarecidos os fenômenos que permitiriam a construção dos aparelhos de som e da televisão, o norte-americano Harold Nyquist previu que o vácuo poderia interferirem circuitos elétricos.

Com base nessa idéia, França, da USP, e uma equipe de duas empresas norte-americanas, a Mission Research e a ManyOne Networks, projetaram um equipamento que, se der certo, conseguirá extrair energia útil do vácuo. O aparelho consiste de uma bobina de 2 centímetros de diâmetro resfriada a -270o Celsius que deve funcionar como antena para captar a energia do vácuo. “Dependendo da forma como é enrolada, a bobina, a princípio, pode cancelar ou aumentar o poder de captação da energia do vácuo”, diz França. O plano é montar e testar o experimento ainda este ano, desde que superados os problemas com o orçamento. O protótipo não sairia por menos de R$ 150 mil.

Republicar