De cada 1.000 crianças, uma nasce com problemas de surdez. Dados mundiais indicam que 60% dos casos são causados pela herança genética do bebê. No Brasil, mesmo que a maioria dos casos tenha causas não-genéticas, como rubéola, meningite ou falta de oxigênio no parto, com a melhoria da atenção da saúde materno-infantil a proporção de casos de origem genética tende a aumentar progressivamente. Entretanto, dificilmente a surdez é constatada antes que a criança complete dois anos. Nessa altura, ela já pode ter sofrido prejuízos, causados pela falta de estímulos cerebrais relacionados com a fala, que vão prejudicá-la pelo resto da vida. É consenso entre os médicos que a melhor época para o tratamento ocorre por volta de um ano e meio.
Um teste simples e barato pode mudar essa situação e mostrar, logo na maternidade, se o bebê tem o problema. É o que indicam os primeiros resultados de um estudo que vem sendo realizado no Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O teste, que custa apenas o equivalente a US$ 5, indica com certeza se o recém-nascido tem o problema genético mais comum relacionado com a surdez, a mutação 35delG no gene conexina 26.
“É importante informar à população, aos médicos e aos pesquisadores a existência desse teste, tão simples quanto outros, já feitos rotineiramente”, diz a coordenadora do estudo, a pesquisadora Edi Lúcia Sartorato. O projeto, chamado Aplicação das Técnicas de Biologia Molecular no Diagnóstico Etiológico da Deficiência Auditiva , começou em 1999, com apoio da FAPESP, e tem prazo de dois anos para ser terminado.
Além de Edi, participa do estudo a médica Andréa Trevas Maciel Guerra, do Departamento de Genética Médica da Unicamp, atuando como geneticista responsável pela triagem e avaliação clínica das crianças envolvidas. A contribuição da FAPESP foi de R$ 10 mil, mais US$ 10 mil. Essa verba cobre, basicamente, a aquisição de material de apoio.
Maior precisão
O teste é apenas um dos primeiros resultados da pesquisa, que envolve o estudo de outros genes relacionados à surdez. “Além do diagnóstico precoce, à medida que os estudos avançarem será possível fazer prognósticos mais precisos sobre a doença, uma vez que existem diferentes graus de surdez e diferentes genes envolvidos”, diz Edi. Como se trata de um problema genético, é possível calcular a probabilidade do aparecimento de casos de surdez numa família. Já se sabe, por exemplo, que o simples aparecimento da mutação 35delG não deixa a criança surda: é preciso que ambos os pais tenham o mesmo problema, mais comum em pessoas de origem italiana, grega ou espanhola.
Para se fazer o teste, recolhe-se uma pequena amostra do sangue do recém-nascido, que pode ser colhida mesmo num pedacinho de papel. O resultado sai em algumas horas. A pesquisadora trouxe a idéia do teste do congresso da Sociedade Americana de Genética Humana realizado em 1998 em Denver, no Colorado, nos Estados Unidos. Aqui, adaptou a metodologia, conhecida como PCR alelo-específico.
O teste consiste em ampliar a região do gene a ser estudada, por meio de uma reação em cadeia de polimerase. O especialista verifica, então, se a região apresenta a mutação mais freqüente nos casos de surdez de origem genética. Essa mutação é conhecida como 35delG e ocorre no gene conexina 26, encontrado no braço longo do cromossomo 13. É um chamado hot spot (ponto quente) do gene – um lugar suscetível a alterações, provavelmente por causa da repetição da base guanina.
Edi está realizando uma campanha para divulgar a existência do teste, especialmente entre entidades de apoio aos deficientes auditivos. Ela admite que o teste precisa de materiais específicos e pessoal qualificado e de uma avaliação prévia cuidadosa, realizada por um geneticista clínico. Mas, na execução e análise, é muito simples. Além disso, é mais barato que o teste otoacústico, um exame capaz de determinar o nível de audição do bebê por meio de uma sonda que mede vibrações sonoras no canal auditivo, que custa US$ 7,50.
Dois testes
Desde 1993, o Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (NIH) vem recomendando a realização do teste otoacústico nos recém-nascidos, reconhecendo a importância dos problemas de surdez serem descobertos antes dos dois anos de idade. Em janeiro deste ano, a prefeitura de Campinas tornou obrigatória a realização desse exame nas maternidades do município.A pesquisadora diz que não pede que a lei seja emendada ou alterada. Também não quer envolver-se diretamente em assuntos políticos. Mas defende que, se o teste otoacústico encontrar algum problema de surdez na criança, ela seja submetida também ao teste genético. “O exame otoacústico informa se o bebê vai ter um problema de audição, mas não diz se sua causa é genética ou não”, explica.
“Também não informa o grau de surdez que a criança tem ou desenvolverá. O ideal seria que, depois do teste otoacústico, fossem feitos, além de outros testes audiológicos, os testes genéticos nos recém-nascidos com problemas”, acrescenta. Edi se diz disposta a passar a metodologia para outros centros, fora da Unicamp, e para laboratórios interessados em fazer a análise. Para ela, essa divulgação faz parte da pesquisa. “A FAPESP está apoiando um projeto importante para a saúde pública e os resultados devem ser divulgados”, observa.
Amostras de sangue
Até o mês de janeiro, a pesquisa tinha estudado 27 famílias. De acordo com Edi, a idéia da pesquisa surgiu em conversas com Andréa, começando no Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Doutor Gabriel Porto (Cepre), da Unicamp.Uma participação fundamental partiu de Joyce Maria Annichino-Bizzacchi, coordenadora-associada do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro) da Unicamp, pelo estudo em colaboração do rastreamento da mutação 35delG em 620 amostras de sangue colhidas de cordão umbilical de recém-nascidos da região de Bragança Paulista.
A partir dessas amostras, foi possível chegar à conclusão de que a mutação 35delG é “muito freqüente” no Brasil. “Falar em termos de população brasileira é difícil, porque ela é muito heterogênea”, diz Edi. Mas o índice encontrado está em torno de 1%, o que significa que aproximadamente 1 entre cada 100 recém-nascidos são heterozigotos para a mutação (com a mutação no gene conexina 26 herdada apenas do pai ou da mãe).
Logicamente, nem todas essas crianças são surdas. A surdez provocada pela mutação 35delG do gene conexina 26 é dada pelo padrão autossômico recessivo: tanto o pai como a mãe da criança precisam ter o gene conexina 26 mutante para que a criança nasça surda. De posse dessas informações, os pesquisadores pretendem fazer o aconselhamento genético das famílias com problemas de surdez hereditária. Nestes casos, examinam o histórico familiar e, quando necessário, explicam os riscos de recorrência ou surgimento da surdez. Vão lembrar, principalmente, que as crianças heterozigotas têm 25% de chance de terem filhos com deficiência auditiva de origem genética se casarem com outra também heterozigota.
O risco aumenta quando se sabe que as populações do sul da Europa, de onde se origina grande parte dos brasileiros, têm as proporções mais altas de genes mutantes. A porcentagem mais alta é a da Itália, onde 4% da população é heterozigota para a mutação 35delG. Outros índices altos: Grécia, com 3,5%, e Espanha, 2,3%. Por outro lado, nunca se encontrou a mutação entre pessoas de origem asiática. A proporção nos Estados Unidos, outro país de população de origem heterogênea, é de 1%, igual à do Brasil. “De qualquer maneira, outros estudos são necessários, pois os dados disponíveis se baseiam apenas em amostras da população”, comenta Edi. Na França, por exemplo, até hoje apenas 68 indivíduos foram estudados com relação à mutação.
Origem e tratamento
Nos casos de surdez de origem genética, 70% são não-sindrômicos, ou seja, a criança não tem problemas de formação que possam estar ligados à surdez. Como os órgãos estão bem formados, o tratamento é facilitado.Existem muitos genes envolvidos nos casos de etiologia genética da surdez – até o momento, 14 já foram mapeados e clonados. Mas na grande maioria dos casos de surdez de origem genética a causa está numa mutação do gene conexina 26. A mutação mais freqüente, ocorrendo em 70% dos casos, é a deleção de uma base, a guanina.
É nessa deleção que consiste a mutação 35delG. O tratamento mais indicado é um implante de cóclea, uma parte do labirinto, em espiral, também conhecida como caracol. O período ideal para esse implante ocorre quando a criança tem por volta de um ano e meio. Nessa fase, ela tem mais oportunidades de aproveitar os estímulos cerebrais ligados à fala, muito desenvolvidos nessa época.
Para o implante ter resultado, a cóclea da criança deve estar íntegra e não ter nenhum comprometimento neurológico. É o que acontece nos casos de origem genética. A mutação 35delG do gene conexina 26 não altera a estrutura da cóclea. Apenas faz com que o produto desse gene, uma proteína também chamada conexina, não chegue a funcionar.
Ou seja, o tratamento tem tudo para dar certo se for realizado no momento apropriado. O problema é identificar a causa genética e providenciar sua correção antes que esse período passe. Além disso, ressalta a pesquisadora, é muito importante o diagnóstico naqueles casos de etiologia indefinida em que existe uma angústia muito grande em estimar os riscos de recorrência na família. É o que o exame desenvolvido pelos pesquisadores da Unicamp pode fazer.
Perfil :
A professora Edi Lúcia Sartorato tem 37 anos. Formada em Química pelo Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), tem mestrado e doutorado em Genética Médica, obtidos no Instituto de Biologia da mesma universidade. Desenvolveu parte de sua tese de doutorado no Centro Médico da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos. É pesquisadora do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Unicamp desde 1997.
Projeto: Aplicação das Técnicas de Biologia Molecular no
Diagnóstico Etiológico da Deficiência Auditiva
Investimento : R$ 10 mil e US$ 10 mil