Há livros que conseguem ultrapassar o círculo de interesse traçado por sua área sem abrir mão do rigor. Tornam-se assim referência básica para vários campos do conhecimento, menos por nascerem de uma proposta transdisciplinar que pela profundidade e extensão com que abordam seu problema. Metrópole em Sinfonia: História, Cultura e Música Popular na São Paulo dos Anos 30, de José Geraldo Vinci de Moraes, é um desses casos. O livro, que foi editado pela Estação Liberdade Editora, contou com o apoio da FAPESP.
Por isso, antes de tudo esse é um lançamento a ser saudado. Os acertos da obra são muitos, a começar pela lacuna que preenche em nossa literatura, tão necessitada de estudos que discutam com profundidade e sabor esse importante período. Mas existem outros elementos que também revestem o lançamento desse livro de especial relevo, pois, com Metrópole em Sinfonia, a história da canção e demais estudos da cultura urbana brasileira passam a contar com um novo parâmetro, se não a ser diretamente seguido em sua forma de investigação, ao menos a ser imitado em sua falta de preguiça. Originalmente tese de doutorado em História Social apresentada à USP, o trabalho é minucioso sem cuidar de pormenores inúteis, perseguindo com afinco os documentos e a análise de um quadro “fragmentado e disperso”, como lhe chama o autor.
A pesquisa recorre a fontes que vão das administrações públicas municipais à memória coletiva, dando ênfase às modinhas paulistanas recolhidas por Antônio de Alcântara Machado e às canções de Adoniran Barbosa e de Paulo Vanzolini. Os dados históricos incluem cinco mapas da cidade, números e estatísticas, mas não dispensam sínteses biográficas de artistas e a referência mais ampla à história do Brasil, dos EUA e da Europa.
Enfim, a proposta de compreender a cultura popular de São Paulo por meio da canção, nos anos 30, integrando-a aos movimentos sociais e históricos, é desenvolvida com cuidado exemplar. A compreensão do autor, por sua vez, gira em torno do eixo formado pelas “ambiguidades e contradições” da metrópole, que no período se caracteriza pela “paradoxal situação” de conjugar “múltiplas temporalidades”.
Os exemplos são vários, mas podem ser reduzidos à soma moderno/industrial + rural/provinciano. Talvez seja o caso, porém, de discutir a postura final de Moraes: se as relações entre canção popular e meios eletrônicos merecem ser vistas de modo simpático (o termo é meu) -nem apocalíptico, nem integrado-, qual o verdadeiro motivo? As conquistas estéticas? Contudo, a difusão em massa com fins publicitários não é responsável pela descaracterização dos programas de calouros, a partir dos 50 (p. 82)? Esse processo ruinoso não estaria desde então se acelerando a olho nu, atingindo cada vez mais a canção, produzida majoritariamente “em favor do lucro ou da ideologia” (p. 292) conformista? Por outro lado, se o motivo se liga à ascensão do artista popular, como avaliar “a concentração de riquezas de um mercado em franca expansão” (página 108)?
A discussão se justifica pela qualidade mesma do livro. De resto, o autor apenas fica devendo uma melhor inserção da análise musical. Sem negligenciar a linguagem da canção, o que é um fato raro, seu estudo ainda deve muito à análise temática e parcial das letras.
Walter Garcia é professor da PUC-SP, músico e autor de Bim Bom: a Contradição sem Conflitos de João Gilberto (Paz e Terra Editora).
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