Você, provavelmente, conhece uma história semelhante à de João e Maria. Os dois vivem juntos. João bate constantemente em Maria. Um dia, Maria apanha tanto que o caso vai parar numa das Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) de São Paulo. O exame de corpo de delito confirma a agressão e o caso se transforma em processo. João nunca foi castigado. Diante do juiz, Maria diz que se enganou. Foi ela quem tentou agredir o companheiro, declara. “Eu me machuquei quando queria encher ele de tapa, ele me segurou e eu caí”, afirma no tribunal.
O caso, naturalmente, foi arquivado. João e Maria continuaram a viver juntos. Os nomes de João e Maria são inventados. Mas o caso é absolutamente real. Ele é um dos 849 processos criminais, saídos de casos atendidos pela primeira e pela terceira DDM da Cidade de São Paulo, que estão sendo estudados pela pesquisa Violência Doméstica: Questão de Polícia e de Sociedade. O objetivo da pesquisa, que tem a FAPESP entre suas financiadoras, é o de conseguir uma visão mais ampla da violência doméstica no Brasil. Para isso, procurou-se uma fonte básica: os boletins de ocorrência dos casos registrados em delegacias policiais.
A pesquisa deve ficar pronta apenas em abril de 2000, mas, pelo que se viu até agora, casos como o de João e Maria estão longe de ser exceção. Nos casos de lesão corporal dolosa, a mais freqüente causa das queixas estudadas, a porcentagem de processos arquivados chega a 70%. O índice de condenações beira o ridículo: apenas 2% dos 178 processos resultantes de inquéritos instaurados em 1992 pela Terceira Delegacia de Defesa da Mulher de São Paulo.
“Os dados estatísticos confirmam que a mulher brasileira possui uma cidadania precária”, diz a professora Heleieth Iara Bongiovani Saffioti, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenadora da pesquisa. Além da FAPESP, que contribuiu com 10% dos US$ 400 mil gastos até agora no trabalho, participam do financiamento do projeto o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o Fundo das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Unifem), a Organização Pan-Americana de Saúde, a Fundação Ford e a Fundação MacArthur.
Elaborada em 1993 e iniciado em agosto de 1994, a pesquisa levantou mais de 170 mil boletins de ocorrência. São examinados todos os boletins dos anos de 1988 e 1992 das delegacias de defesa da mulher da cidade de São Paulo, de alguns municípios do interior de São Paulo e das capitais de outros 21 Estados brasileiros. Além disso, entra no trabalho uma amostragem de 10% dos Distritos Policiais, tomando-se os crimes mais freqüentemente perpetrados contra mulheres, aí inclusos os casos classificados de crimes contra a vida, como homicídio, aborto e induzimento ao suicídio. Os que se enquadram na definição de violência doméstica são incluídos na pesquisa.
Tabulação
Por enquanto, os únicos dados completos são os do grupo que inclui o caso de João e Maria. Os trabalhos nas outras delegacias de defesa da mulher de São Paulo e dos outros estados estão em fases variadas de coletas de dados ou tabulação. No Distrito Federal, Amapá, Acre e Ceará, o trabalho de coleta de dados já terminou, mas as informações ainda estão sendo tabuladas nos computadores.
Além dos boletins de ocorrência, também há dados referentes aos processos, que são procurados nos fóruns. Em São Paulo, o ano de 1988 foi escolhido por representar um período no qual já havia várias delegacias de defesa da mulher em funcionamento, depois da criação da primeira, em 1985. O ano de 1992 foi escolhido porque, ao que se esperava, na fase intermediária da pesquisa os inquéritos já se encontrariam em fase de análise pela Justiça Em várias cidades de São Paulo e de outros Estados, nas quais as delegacias de defesa da mulher foram criadas em 1989, são estudados esse ano e o ano de 1992. Nos lugares em que as delegacias foram criadas em 1990 e 1991, são computados apenas os dados referentes ao ano de 1992.
O assunto relações de gênero não é novidade para a professora Heleieth Saffioti. Ela o estuda há 37 anos, mas há 15 anos se especializou em violência doméstica e intrafamiliar. Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora se aposentou como professora titular de Sociologia na Universidade Estadual Paulista (UNESP). Trabalha como professora de Sociologia nos cursos de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e como pesquisadora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Neste trabalho, atuam também Sandra Regina Colucci Takeshita, como bolsista de pós-graduação, e uma equipe com mais de 60 auxiliares de pesquisa. Os auxiliares estão distribuídos por todo o País. Para o levantamento e tabulação dos dados na cidade e Estado de São Paulo, há um grupo de dez pessoas. Nos outros 21 Estados, há equipes formadas por duas ou três pessoas em cada um.
Dez para um
Os primeiros resultados da pesquisa já levam a conclusões importantes. Uma delas: dificilmente o acusado é castigado. Como já vimos, de 178 processos, resultantes de inquéritos instaurados pela Terceira DDM de São Paulo em 1992, somente 2% chegaram a condenações. Isso não é tudo. Nada menos que 70% dos processos foram arquivados e em 21% dos casos, os acusados foram absolvidos. Ou seja, a proporção de absolvidos para condenados é de mais de dez para um.
Isso acontece mesmo quando uma boa parte desses casos tem origem em algo muito mais sério do que pequenas rusgas familiares. Dos 849 processos analisados até agora, referentes a casos apresentados na Primeira DDM de São Paulo, em 1988, e na Terceira DDM de São Paulo, em 1988 e 1992, 81,5% se referem a lesões corporais dolosas, ou seja, houve evidências de agressão suficientes para que a Polícia levasse o caso à Justiça.
Há mais. Dos casos restantes, 4,47% se referem a estupro ou atentado violento ao pudor; 7,77% a ameaças; e 1,53% a seduções. Na maioria dos casos de arquivamento, ele parte de uma intervenção da própria agredida, que chega a mudar seu depoimento, quando o processo já está correndo na Justiça.
É o exemplo de Maria. O réu se diz arrependido, busca a reconciliação e a vítima troca o testemunho. Mas há muitos casos também em que o processo é arquivado porque foi mal preparado, com quadro de provas confuso e muitas deficiências na denúncia. “Também contribui para isso o machismo dos agentes da Lei”, aponta a professora Heleieth Saffioti.
Numa amostra de 20 casos, proporcionais aos tipos de crimes, apenas um acusado foi condenado, mesmo assim porque era reincidente e isso foi considerado uma circunstância agravante. Essa coleção de exemplos ajuda a traçar um perfil da mulher agredida em casa: metade tem entre 30 e 40 anos, 30% têm entre 20 e 30 anos. Também na metade dos casos o casal tinha entre 10 e 20 anos de convivência e, em 40%, entre um e dez anos.
Esses dados mostram que, depois da queixa, 40% dos casais se separam. A maioria, de 60%, continua a viver conjugalmente.É possível, porém, que a situação esteja mudando. Em 1988, 85% das denúncias registradas nas primeira e terceira DDM de São Paulo foram de agressão e 4,17% de ameaças. Em 1992, nas mesmas delegacias, as denúncias de agressão caíram para 68% dos casos, com as ameaças subindo para 21,3%. “Essa alteração é um indicador de que, em alguns casos, a mera apresentação da queixa numa delegacia e uma advertência da autoridade policial conseguem cessar a violência”, afirma a professora.
A situação teve outra alteração em dezembro de 1995, quando entrou em vigor uma mudança no rito judiciário para crimes puníveis com menos de um ano de reclusão. Nesses casos, os processos passaram a ser julgados em juizados especiais, nos quais normalmente o agressor é punido com uma pena alternativa, como o pagamento de uma multa, em vez de ir para a prisão. “Parte dos profissionais envolvidos considera que, com a nova lei, a mulher passou a ser ouvida e tratada como cidadã”, diz a professora Heleieth Saffioti. “Outros setores, entretanto, acreditam que a lei favoreceu os agressores, que pagam uma multa e repetem a agressão, pois nunca deixam de ser primários e vão apenas voltar a pagar a multa”, acrescenta.
Dependência
De qualquer maneira, a violência doméstica pode ter causas muito mais profundas do que o simples afloramento de raivas e tensões. “Mais que a dependência econômica com relação ao homem, é a dependência emocional que faz a mulher suportar as agressões”, declara a professora. Ela acha que o problema só será superado com educação, qualificação profissional, fatores de conscientização e de proteção, como casas-abrigo eficientes, e, também, com o que chama de “empoderamento” da mulher: isto é, sua participação efetiva nas instâncias que tomam as decisões na sociedade.
“A violência doméstica é possível porque o homem estabelece um território físico e um território simbólico nos quais tem domínio quase total”, afirma a professora. “Todas as pessoas que vivem sob o mesmo teto, vinculadas ou não por laços de parentesco, devem obediência ao chefe do local”, acrescenta. Em algumas ocasiões, entretanto, a violência se manifesta mesmo fora do ambiente doméstico.
“Há casos de maridos que vão ao local de trabalho da mulher e a agridem diante de colegas, e de abusos sexuais de pais contra filhas depois que ela se afastou do domicílio comum”. Mesmo a separação não significa o fim da violência. “Numerosas vezes, o marido continua a importunar a ex-mulher, especialmente quando ela vive só ou com os filhos”, prossegue a professora Heleieth Saffioti. O caso pode mudar, contudo, quando a mulher passa a viver com um novo marido ou companheiro. “O ex-marido, se quiser ter domínio sobre ela, terá aí de enfrentar um novo chefe de território”, acrescenta.
Violência verbal
Nem sempre, porém, a mulher é a vítima. Principalmente quando o homem não está presente, diz a professora, ela se torna toda-poderosa com relação aos filhos e podem ocorrer casos de agressão contra as crianças. “Em decorrência de sua menor força física e da tolerância da sociedade em relação à violência masculina, a mulher tende a se especializar na violência verbal”, segundo a professora Saffioti. “Não existe vítima passiva, pois ela sempre reage, física ou verbalmente”.
De qualquer maneira, lembra ela, a violência doméstica não é uma exclusividade brasileira. “É uma praga que atinge todos os países e culturas, com formas e incidências variadas”, afirma. Não existe no Brasil um tipo de violência contra a mulher como a ablação do clitóris e a sutura dos grandes lábios da vulva, comuns em países africanos, ou a prática do sati, o costume indiano que obriga a viúva a imolar-se na mesma pira em que é cremado o corpo do marido. Mas há, por exemplo, a esterilização, o que a pesquisadora classifica de “um verdadeiro crime”.
Há altos e baixos mesmo em sociedades mais antigas. Na França, por exemplo, qualquer relação sexual entre cônjuges que não seja consentida é considerada estupro – o que não ocorre no Brasil, onde a mulher deve estar sempre disponível para o companheiro. Mas, na Grã-Bretanha, a mulher que mata o marido normalmente recebe pena maior que o assassino da esposa. A lei inglesa parte do princípio de que, como a mulher é mais fraca fisicamente, só conseguirá matar um homem se houver premeditação. Esta constitui um agravante, que eleva a pena.
No Brasil, nunca se realizou pesquisa sobre o assunto. Quanto aos homens que assassinam suas companheiras, em geral, ou não são punidos ou são apenas brandamente, “pois se considera como atenuante o muitas vezes alegado estado de forte emoção do indivíduo, critério ainda presente na legislação brasileira”, afirma a pesquisadora. Ela considera fundamental a formulação e implementação de uma verdadeira política pública de controle da violência doméstica.
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