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Resenhas

Justiça distributiva e liberdade individual

Livro confronta neoliberalismo apontando deficiências de sua moralidade

“A justiça igualitária e seus críticos” Álvaro de Vita Editora Martins Fontes – 320 páginas, R$ 45,00

Em A justiça igualitária e seus críticos, Álvaro de Vita defende as posições centrais do liberalismo igualitário diante de teorias contemporâneas rivais, exaltando o caráter distributivo e o potencial democrático da concepção liberal-igualitária de justiça de John Rawls.  O argumento do livro se constrói a partir de uma análise crítica do libertarianismo de Nozick, da versão contemporânea mais relevante do contratualismo hobbesiano, de Gauthier, e do utilitarismo de preferências sustentado por Harsanyi. Expostas as deficiências dessas teorias, o autor faz uma análise da proposta de Rawls, respondendo às objeções mais bem elaboradas à justiça igualitária. O livro vem para mostrar que “uma sociedade liberal bem ordenada, tal como Rawls a concebe, é muito mais igualitária do que qualquer coisa que conhecemos” (p. 23).

O autor confronta o neoliberalismo de Nozick e Gauthier, apontando as deficiências de sua moralidade. O êxito da ideologia neoliberal se deve menos à sua capacidade de prever o desempenho econômico resultante das reformas de mercado e mais a um argumento hábil contra a intervenção estatal calcado numa concepção específica de justiça: as políticas públicas distributivas são recusadas porque afrontam a liberdade individual. Na versão de Nozick, o Estado, que deve ser “escrupulosamente neutro entre os seus cidadãos”, não pode impor aos mais privilegiados qualquer sacrifício em nome dos menos favorecidos. A perspectiva liberal-igualitária corrige a deficiência dessa teoria ao atribuir valor moral não apenas ao interesse próprio, mas também aos interesses mais fundamentais dos outros. Nesse sentido, assume uma feição menos individualista, admitindo que somos responsáveis pelas privações a que muitos estão sujeitos, quando contribuímos para um arranjo institucional que as causa.

Enquanto a moralidade neoliberal peca ao supervalorizar a não interferência na liberdade pessoal e desconsiderar o bem-estar dos outros, o utilitarismo de Harsanyi falha ao assumir que o critério último para julgar o bem-estar dos indivíduos é dado por suas próprias preferências. A deficiência, nesse caso, é a ausência de um critério não-subjetivo que permita comparar os níveis de bem-estar de diferentes indivíduos. O mesmo problema advém de concepções relativistas, para as quais não é possível dissociar o julgamento do nível de bem-estar das crenças e tradições morais locais. Contra toda sorte de subjetivismo e relativismo moral, o autor argumenta que é impossível deixar de considerar que as preferências individuais são condicionadas pelo contexto socioeconômico, ou ainda por valores enraizados (que muitas vezes operam em favor de uma situação de inferiorização no interior da comunidade). Para escapar do beco sem saída a que leva a métrica subjetiva, o autor sustenta que há certos bens que são valiosos independentemente da diversidade de concepções individuais do bem e da variedade de contextos culturais. Partindo precisamente desse princípio, a concepção liberal-igualitária entende que esses bens devem ser assegurados eqüitativamente pelas instituições básicas da sociedade.

O argumento de que a justiça distributiva se opõe à manutenção da liberdade individual é rejeitado: é a garantia da igualdade distributiva na estrutura básica da sociedade que protege as preferências e escolhas individuais de interferências. A virtude do liberalismo-igualitário está em valorizar as condições institucionais capazes de garantir recursos e oportunidades eqüitativas e, ao mesmo tempo, respeitar o pluralismo de valores. Por outro lado, ao assumir que o Estado tem uma função redistributiva, desbanca o argumento de que atribuir prioridade às liberdades fundamentais implica uma concepção formalista dessas liberdades. Ajuda a pensar o Brasil? Para além da excelente reconstrução teórica, Álvaro de Vita não se furta ao desafio de mobilizar a teoria da justiça igualitária para refletir sobre a pobreza e a violação de direitos em um país que abriga um bairro como o Jardim Ângela.

Yara Frateschi é professora de ética e filosofia política no Departamento de Filosofia da Unicamp.

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