Imprimir PDF Republicar

Farmácia

A liberação das artérias

Pesquisadores criam biomarcador que detecta formação de placas de gordura em artérias e descobrem no plasma um potente vasodilatador

Duas descobertas de um grupo da Universidade de São Paulo (USP) abrem novas possibilidades de prevenção e combate à aterosclerose, doença que bloqueia a circulação nas artérias grandes e médias, e pode provocar derrames e infartos. Em quatro anos de trabalho, a equipe da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) coordenada por Dulcinéia Saes Parra Abdalla desenvolveu, primeiro, um marcador que facilitará o diagnóstico da enfermidade, pois identifica a fração de uma lipoproteína – chamada LDL negativa – que desencadeia a aterosclerose.

Em outra frente do projeto, comprovou a existência no plasma humano de duas estruturas que funcionam como reservatórios de óxido nítrico – um poderoso vasodilatador -, como atesta o artigo publicado neste mês na revista Biochemistry. Caso essas substâncias apresentem o mesmo comportamento observado em laboratório, poderão ser usadas no tratamento da aterosclerose e na prevenção de derrames e infartos. Os dois avanços envolvem um dos mais sérios problemas de saúde pública: calcula-se que a aterosclerose afete cerca de 10% da população mundial com mais de 50 anos, sobretudo homens. Idade avançada, hiperlipidemia (alto nível de gordura no sangue), hipertensão, diabetes, tabagismo, sedentarismo e herança familiar são fatores de risco de desenvolver a doença.

Marcador enganado
O trabalho começou nos anos 90 e envolveu o desafio de estudar as lipoproteínas, partículas esféricas constituídas por proteínas na superfície e gorduras (lipídios) por dentro. As lipoproteínas se formam em vários lugares do organismo e assumem funções distintas. Quando se originam no sangue, são chamadas LDL (proteína de baixa densidade, com baixa concentração de triglicerídeos e altos níveis de colesterol) e distribuem colesterol para os tecidos periféricos.

Já a LDL negativa – formada em processos oxidativos – é a responsável pela aterogênese (formação de lesões arteriais), que faz surgir a aterosclerose. Isso acontece, entre outros motivos, porque células imunológicas chamadas macrófagos capturam partículas de LDL e formam células repletas de gordura, que se acumulam junto à parede das artérias, bloqueando progressivamente a circulação do sangue. Embora os mecanismos de deflagração fossem razoavelmente conhecidos, havia uma pedra no caminho. Devido à complexidade das lipoproteínas, os marcadores até então existentes eram enganados: identificavam só a LDL total, e não a fração negativa, o que não permitia afirmar que se tratava de um processo de aterosclerose.

Método não-invasivo
A equipe de Dulcinéia desenvolveu, então, ensaios para consolidar e validar um marcador inequívoco: fabricou em laboratório um anticorpo monoclonal – produzido por clones de uma célula – que aponta a presença exclusiva da LDL negativa. “Atualmente o diagnóstico é feito por meio de exames como a cineangiocoronariografia, em que um cateter é introduzido nas artérias, e o contraste injetado permite visualizar as coronárias. Conseguimos obter uma forma não-invasiva de avaliar a doença”, diz a pesquisadora. Por ser um método mais simples, sensível e não-agressivo, ela espera que se torne um procedimento de rotina feito a partir de solicitação médica, como os exames de hemograma.

Ao final do trabalho, Dulcinéia confirmou que o marcador é eficiente para detectar a presença e a quantidade da LDL negativa, tanto na corrente sangüínea quanto nas lesões já presentes nas artérias: “Ele é adequado para informar a probabilidade de se desenvolver a doença e os estragos que ela já causou. E faz isso de uma forma simples, podendo ser aplicado em escala ampliada”.

A próxima etapa será aplicar o teste em estudos clínicos e de intervenção que envolvam seres humanos. Para a pesquisadora, o trabalho é um grande avanço para avaliar a evolução da aterosclerose, e o marcador ajudará a definir o tratamento para cada caso.A equipe encaminhou ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) um pedido de registro de patente que engloba o anticorpo monoclonal e suas possíveis aplicações comerciais e terapêuticas. Durante os estudos, o grupo da USP teve a colaboração de Alex Sevanian, da Universidade do Sul da Califórnia, de pesquisadores da Universidad de la Republica, em Montevidéu, e do Instituto de Química da USP.

Poluente vital
Na outra parte do trabalho, os pesquisadores demonstraram, pela primeira vez, que estruturas presentes no plasma humano podem ser reservatórios do potente vasodilatador sintetizado pelo próprio organismo, o óxido nítrico – eleito em 1992 a molécula do ano pela revista Science . “Uma das mais surpreendentes descobertas da última década”, ressalta a pesquisadora, “foi a demonstração de que gases poluentes como o óxido nítrico (NO) e o dióxido de nitrogênio (NO2) são produzidos no organismo humano.” Pesquisas confirmaram que, além de importante sinalizador do sistema cardiovascular, o óxido nítrico é sintetizado em células nervosas e difunde-se rapidamente, ativando células vizinhas.

“Esse gás pode modular muitas funções orgânicas, desde a regulação da função hormonal até o comportamento.” Estudos feitos no exterior haviam comprovado que os pacientes com aterosclerose têm capacidade menor de vasodilatação. Havia uma forte suspeita de que isso ocorresse porque o óxido nítrico reagia com outros alvos, e não com as artérias. Um desses locais de reação poderia ser a própria LDL total.

Com base nessas premissas, e a partir de um ácido graxo – o linoléico -, o grupo sintetizou em laboratório um modelo experimental que confirmou: quando entra na LDL, o óxido nítrico origina dois produtos – os lípides nitrados e os nitrosilados – que funcionam como reservatórios do vasodilatador. Com essa referência em mãos, a equipe voltou a atenção para o plasma humano e verificou que os dois produtos também se manifestam nele. “A grande dúvida é saber se, no sangue, eles também agem como reservatórios do óxido nítrico, já que o que acontece em laboratório nem sempre se repete na prática. É um dos próximos passos que pretendemos dar”, revela Dulcinéia.

Se confirmada a hipótese, os médicos terão à disposição uma nova possibilidade de terapia: os dois produtos, que são atóxicos, podem liberar o óxido nítrico que acumularam. “Com isso, podem aliviar os sintomas da doença e evitar o risco de isquemias e infartos”, diz a pesquisadora.

O projeto
Possíveis Conexões entre Hipertensão e Hipercolesterolemia, em Relação à Aterosclerose: Vias de Inativação do Óxido Nítrico e Oxidação de Lipoproteínas (nº 97/05090-3); Modalidade Projeto temático; Coordenadora Dulcinéia Saes Parra Abdalla – USP; Investimento R$ 1.028.474,02

Republicar