“[…] o Brasil não é para principiantes”. Retomando a frase ouvida no cotidiano de quem vive no Brasil, Regina Facchini e Isadora Lins Franca disparam o início da conversa a respeito de Direitos em disputa: LGBTI+, poder e diferença no Brasil contemporâneo. O livro por elas organizado nos instiga e convida a adentrar nos diferentes territórios em que gêneros e sexualidades são o centro de disputas políticas. Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas intersexo (LGBTI+) e demais identidades de gênero e sexuais que estão fora da norma cisgênera e heterossexual têm vivido, nas últimas duas décadas, avanços na conquista por direitos, mas também reações de desqualificação, violência e apagamento dessas existências.
Nas cinco seções do livro são apresentados e analisados os diferentes cenários nos quais essas disputas são travadas. Resultado de múltiplas autorias, como lembrado no prefácio assinado por Júlio Assis Simões, a obra foi escrita por pessoas que têm participado com militância, ativismo, e produções acadêmicas implicadas ética e politicamente com o tema dos direitos e da cidadania LGBTI+.
Acompanhamos, ao longo da leitura, que em sua luta para existir, a população LGBTI+ não pode ser considerada principiante no Brasil atual. Os processos de violência e discriminação vividos têm sido cada vez mais pesquisados e visibilizados, principalmente pelos movimentos sociais organizados que denunciam, questionam e produzem conhecimento. Conforme evidencia o livro, às vezes essa produção de conhecimento se dá de forma antagônica à academia, ao Estado e às políticas públicas. Em outras ocasiões, justamente a partir de conhecimentos produzidos na universidade, LGBTI+ atuam na construção de uma participação ativa e coletiva, diante das atuais políticas antigênero e antissexualidade.
Somos imersos em um contexto atravessado por dispositivos de guerra produzidos pelas políticas anti, tais como o “kit gay”, a “ideologia de gênero”, a “cura gay”, a “escola sem partido”, criados pelos grupos conservadores (fundamentalistas religiosos e moralistas), organizados para produzir pânico moral na sociedade. As formas de expressão de gêneros e sexualidades, não garantistas da manutenção do cis-heteropatriarcado, são consideradas perigosas para a “família” e para as “crianças”. Alguns dos territórios que essas pautas morais têm procurado tomar conta, produzindo negação e dificuldades de acesso a direitos da população LGBTI+, é o das políticas públicas voltadas à educação e à saúde.
A abordagem interdisciplinar presente na obra, com a produção de textos de distintos campos do conhecimento, oferece novas perspectivas analíticas e tensionamentos nos estudos sobre o tema dos direitos de LGBTI+. Uma das preocupações é tomar LGBTI+ como sujeitos políticos, em suas diferenças e vivências singulares dos processos de opressão, e na sua luta por reconhecimento como sujeitos de direitos. A leitura dos textos é acessível a todos os públicos, independentemente do nível de conhecimento sobre o tema, sem que com isso tenha sido preciso deixar o rigor teórico-conceitual e analítico de lado.
No livro encontramos também ferramentas analíticas sobre as relações de poder, no processo complexo e não linear de (des)construção das políticas de gênero e sexualidade, em uma “democracia” existente em um Estado de exceção (ou ainda em um Estado que segue em processo de democratização, como indicam as organizadoras), principalmente após 2014. Na obra destacam-se as formas de explicitação dos modos como poder e diferença se apresentam e se engendram, nas políticas de gênero e sexualidade do Brasil contemporâneo, e as consequentes mudanças na maneira de tratar esse tema, nas produções de investigações científicas e em diferentes áreas do conhecimento.
A escalada das ofensivas antigênero e antissexualidade na política é situada em perspectivas interseccionais, ressaltando determinados marcadores, como raça, classe e idade, em um país em que desigualdades e opressão se tornam cada vez mais mortais para a população LGBTI+. Ganham, com os textos reunidos nessa obra, a produção de conhecimento e os ativismos em gênero e sexualidade, no processo de construção de uma atuação teórico-ético-política sobre os direitos LGBTI+.
Leonardo Lemos de Souza é professor associado da Faculdade de Ciências e Letras, campus de Assis, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
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