Durante os nove meses em que transcorreu o levantamento de dados da pesquisa “Dar à luz na sombra”, a equipe coordenada pela professora Ana Gabriela Braga detectou uma divisão nas opiniões das mulheres encarceradas grávidas ou que têm filhos na prisão. O estudo – que não é quantitativo – deixou claro que parte das detentas desejava manter as crianças no presídio, ao lado da mãe, enquanto outras preferiam a separação para que os bebês ficassem longe do ambiente da cadeia. O trabalho indicou que entre as duas opções mais frequentes no atual sistema penitenciário brasileiro ambas são vistas como “menos ruim”.
“Hoje quase todos os estados têm ou ainda estão construindo apenas um único estabelecimento, geralmente localizado perto da capital, com alas específicas para gestantes ou mães de recém-nascidos”, diz Ana Gabriela, professora de direito penal da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Franca. Portanto, não está sendo cumprido o artigo 89 da Lei de Execuções Penais (LEP), acrescentado em 2009: “A penitenciária de mulheres será dotada de seção para gestante e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 meses e menores de 7 anos, com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa”. A análise de todas essas questões resultou, ao fim do estudo, em 30 propostas de políticas públicas para tentar melhorar a situação de violações constantes.
“O problema do exercício dos direitos relacionados à maternidade no sistema prisional não é, na maioria das vezes, criar leis, mas fazer valer as que já existem”, diz Ana Gabriela. Das 30 propostas formuladas pelo estudo, apenas cinco dependem de modificação da legislação em vigor, das quais três são objeto de projetos de lei em tramitação. “O direito à educação e ao trabalho não é garantido a todas as detentas, não há separação de unidades entre presas provisórias e condenadas e o tempo legal de garantia de permanência das mães com suas crianças não é respeitado”, prossegue a pesquisadora. “O prazo mínimo de seis meses na prática é um prazo máximo, porque é preciso esvaziar espaços para os recém-nascidos.” Na ausência de creches, os bebês são mantidos nas celas com as mães. Quando a criança é tirada da prisão, segue para abrigos ou é entregue a familiares, em geral à avó.
Podcast: Ana Gabriela Braga
A pesquisa coordenada por Ana Gabriela foi realizada no âmbito do projeto “Pensando o Direito”, da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O estudo se desenrolou em vários eixos: 50 entrevistas formais com especialistas no tema, 80 conversas com presas gestantes ou mães de bebês (baseadas em questionários-guia), criação de um grupo focal de discussões na cadeia de Franca e visitas a presídios femininos de capitais de seis estados e da Argentina, para ouvir detentas e funcionários e verificar instalações. Como conclusão, o trabalho gerou “recomendações de alterações legislativas, procedimentais e propostas de políticas públicas para minimizar o cenário sistemático de violações ao qual está exposta a maioria das mães em situação de prisão no Brasil”. Essas recomendações em grande parte são balizadas pelas emendas à LEP, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pelas Regras de Bangkok, conjunto de indicações sobre o tratamento de mulheres encarceradas aprovadas em 2010 pelas Nações Unidas do qual o Brasil é signatário.
A população carcerária feminina vem crescendo significativamente. Segundo dados da pesquisa, enquanto o aumento do ingresso de homens no sistema prisional entre 2000 e 2012 foi de 130%, o de mulheres foi de 246%. O número absoluto de mulheres presas em 2012 era de 35.072, correspondendo a 6,4% do total de pessoas encarceradas no Brasil. Não há estatísticas específicas sobre o número de crianças que estão com suas mães no sistema penal, o que justifica a qualificação de “população invisível” dada pelas pesquisadoras. O perfil da maioria das mulheres em situação prisional é descrito pelo estudo como “jovem, de baixa renda, em geral mãe, presa provisória suspeita de crime relacionado ao tráfico de drogas ou contra o patrimônio”.
O fato de o tráfico ser considerado crime hediondo pela legislação vigente é usado, segundo as pesquisadoras, para legitimar uma politica de encarceramento em massa. Ser qualificado de crime hediondo não é impeditivo legal para a concessão de liberdade provisória ou prisão cautelar para acusados ou condenados por tráfico, mas, segundo Ana Gabriela, “a questão moral pesa nas decisões de muitos juízes, que veem incompatibilidade entre ser traficante e boa mãe”. Segundo Luciana Boiteux, professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND-UFRJ), “há juízes que proferem decisões baseadas em argumentos como segurança e defesa da sociedade, contra direitos e garantias previstos expressamente nas leis”.
“As mulheres são o alvo mais fácil da política de guerra às drogas”, diz Ana Gabriela. “Sua posição no tráfico é subalterna e costuma se restringir ao transporte e manutenção das drogas em casa, o que permite conciliar a atividade com os cuidados domésticos. No entanto, é a ponta mais visível do crime organizado, o que as deixa mais vulneráveis.” Segundo as pesquisadoras, as prisões preventivas são numerosas porque se baseiam no testemunho dos policiais que fizeram a abordagem.
Outros problemas identificados são a falta de acesso à educação, que impede o direito de redução de pena por estudo, e o acesso precário à Justiça. “O sistema de defensoria pública é muito frágil, e muitas vezes as mulheres nem sequer têm contato com os juízes que decidem o destino da criança”, diz Ana Gabriela. “É comum não saberem onde estão os filhos por não receberem informação do seu destino.” De acordo com a pesquisadora, é frequente a ausência de comunicação entre a Justiça Civil, onde correm os processos de guarda das crianças, e a Justiça Penal, onde são julgados os crimes dos quais as detentas são acusadas.
A assistência médica à mãe e à criança, prevista e detalhada na LEP e nas regras de Bangkok, também é falha, de acordo com dados da pesquisa. “Todas as entrevistadas reclamaram do descaso com que essa atividade era exercida no interior da cadeia”, segundo o relatório final do estudo. “Apesar de a visita do médico ocorrer semanalmente, apenas uma detenta em cada cela pode dirigir-se a ele a cada vez, não havendo medicamentos específicos para determinadas moléstias e nem para todas as mulheres.”
Algemas
O trabalho intitulado “Mulheres e crianças encarceradas”, coordenado por Luciana Boiteux, da UFRJ, e Maíra Fernandes, presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, informa que, entre as detentas do presídio Talavera Bruce, no Rio, são comuns as queixas de que os agentes penitenciários desconfiam dos pedidos de atendimento médico e medicamentos. A maioria das detentas (53,7%) afirmou não receber atendimento ginecológico. Houve numerosos relatos de realização incompleta de exames pré-natal: algumas fizeram apenas ultrassonografia e outras só exames de sangue e urina. Além disso, constam denúncias de realização de partos com a detenta algemada. “Nunca deveriam ser feitos partos dentro da prisão, por ausência de condições de higiene e atendimento médico”, diz Luciana. “No Rio de Janeiro, não é sequer permitido o acompanhamento de um familiar durante o trabalho de parto.”
As recomendações da pesquisa “Dando à luz na sombra” são resumidas da seguinte forma: “Implementar políticas que tratem da permanência do bebê com a mãe, que privilegiem o desencarceramento e, em casos de manutenção da prisão, que essa convivência se dê em ambiente confortável e salubre para ambas as partes”. As pesquisadoras optaram por apresentar as propostas considerando, em todos os casos, a possibilidade de que sejam encaminhadas pelo Poder Executivo: quando se trata de recomendação de implementação ou alteração de lei, projeto de lei em tramitação ou elaboração de política pública.
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