Um filme ferroelétrico, constituído de finíssimas camadas de um material semicondutor, poderá ser utilizado para fabricação de memórias que equipam computadores e uma infinidade de aparelhos eletrônicos, com vantagens sobre os filmes ferromagnéticos empregados atualmente pela indústria de semicondutores na produção de chips. A capacidade de armazenamento desse novo material, criado em meados da década passada pelo Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), é até 250 vezes maior do que a das memórias convencionais. Sua durabilidade também é imensamente superior: em torno de 300 anos, ante cinco anos dos chips de hoje.
A novidade poderá trazer grandes benefícios para os consumidores e novos rumos para a indústria de informática e eletroeletrônica no âmbito nacional e internacional, segundo os pesquisadores envolvidos. Os trabalhos foram conduzidos por dois grupos de pesquisadores, um deles coordenado pelo professor José Arana Varela, do Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica (Liec) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Araraquara, e o outro pelo professor Elson Longo, do laboratório também chamado Liec, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Atualmente, Varela é o diretor-presidente da FAPESP e Longo, aposentado da UFSCar, atua no Liec da Unesp.
O desenvolvimento do filme ferroelétrico recorre a um novo método relativamente simples e de baixo custo de deposição química que utiliza um forno de microondas caseiro. Ele é produzido a partir de uma solução orgânica obtida de ácidos cítricos, presentes em frutas como limão e laranja. Essa solução é usada para preparação de um composto sólido e com estrutura química polimérica, semelhante à dos plásticos, que leva bário, chumbo e titânio como ingredientes. O composto é levado a um forno simples, com temperatura de até 300 graus Celsius, para retirada de alguns elementos orgânicos indesejáveis, como o carbono. Em seguida, é feita a cristalização do material em um aparelho de microondas doméstico para a obtenção de um filme fino de titanato de bário e chumbo.
“Tivemos que superar muitas dificuldades técnicas para conseguir desenvolver o filme ferro-elétrico. Quando iniciamos os trabalhos, há trinta anos, essa era uma área de pesquisa nova, já que todo mundo usava memórias magnéticas. Fazer memórias pelo método químico era, naquela época, a fronteira do conhecimento”, afirma Longo. “Quando decidimos começar a pesquisar esse novo material, não tínhamos competência na área. Levamos dois anos para fazer os primeiros filmes finos reprodutíveis e com qualidade”, diz ele. Segundo o pesquisador, um aspecto fundamental para o sucesso da empreitada foi o caráter multidisciplinar da equipe, formada por físicos, químicos e engenheiros.
Também foi importante a associação com cientistas de outros estados e do exterior para vencer obstáculos que surgiram ao longo do trabalho. “Buscamos trabalhar com grupos que tinham competência em áreas que não dominávamos”, recorda-se Longo. As pesquisas do grupo tiveram início depois de uma viagem de Varela aos Estados Unidos, quando ele teve contato com a nova tecnologia. “No seu retorno, percebemos a necessidade de desenvolver filmes finos focados nas áreas de memória, sensores e catalisadores”, conta Longo.
Como fazer
A fabricação de chips com memória ferroelétrica, no entanto, necessita de um ambiente ultralimpo e de profissionais capazes de fazer a deposição de filmes finos. Entende-se por filme, aqui, qualquer película muito fina que separa duas fases de um sistema, ou forma a própria interface dessa separação. Eles originam-se entre dois líquidos, como acontece entre a água e o óleo, entre um líquido e um vapor ou na superfície de sólidos. As pesquisas na área de filmes finos sólidos – com espessura menor do que um micrômetro (milionésima parte do metro) – evoluem de forma significativa devido às vantagens desse material, principalmente na miniaturização de equipamentos eletrônicos.
“Grandes grupos industriais dos Estados Unidos, Europa e Ásia estão investindo milhões de dólares na obtenção de filmes finos ferroelétricos porque eles são compatíveis e de fácil integração com a atual tecnologia de produção de circuitos integrados que usam chips de silício e de arseneto de gálio”, afirma Longo. Em 2010, pesquisadores da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, foram além e conseguiram criar um filme de titanato de európio ao mesmo tempo ferromagnético e ferroelétrico, o que foi considerado uma proeza, já que quase não há na natureza materiais que possuam simultaneamente as propriedades ferroelétrica (eletricamente polarizados e sem condução de corrente) e ferromagnética (com campo magnético permanente).
O titanato de európio, quando submetido ao fatiamento em camadas nanométricas, esticado e posicionado sobre um composto de disprósio – elemento químico do grupo dos lantanídeos, assim como o európio –, apresenta propriedades ferromagnética e ferroelétrica melhores do que as conhecidas atualmente.
Para Jacobus Willibrordus Swart, professor da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Sistemas Micro e Nanoeletrônicos (INCT/Namitec), financiado pelo governo federal e a FAPESP, existem boas chances de as memórias ferromagnéticas ocuparem espaço no mercado, mas isso ainda deve levar algum tempo. “Pode soar estranho, mas a indústria de microeletrônica e semicondutores é muito conservadora. Ela só parte para novos materiais quando há uma necessidade urgente e uma demanda justificada”, diz ele.
“As memórias ferromagnéticas possuem vantagens técnicas comprovadas. Mas, para que elas tenham futuro, é preciso que elas se mostrem comercialmente viáveis”, diz Swart. Segundo o pesquisador, a troca de um material em uso – no caso as memórias magnéticas – por um novo envolve ajustes tecnológicos, novos processos de aprendizado e riscos de queda de produtividade na fabricação de chips.
Energia otimizada
Entre as vantagens do uso de filmes ferroelétricos na preparação dos dispositivos eletrônicos, em comparação com as cerâmicas ferromagnéticas utilizadas para memória, eles apontam o menor tamanho, baixo peso, alta velocidade de escrita e leitura e baixa voltagem de operação. “Atualmente, nas pastilhas dos semicondutores com 1 centímetro quadrado de área é possível arquivar 1 megabyte (MB) de informações. Com a nova memória, será possível arquivar no mesmo espaço 250 MB”, destaca Longo. Além disso, os materiais ferroelétricos permitem a construção de memórias eletrônicas que não necessitam o mínimo de energia para funcionar. “A capacidade de armazenar informações está ligada ao arranjo de seus átomos”, diz Longo.
Cada célula de memória consiste de um único transistor de acesso conectado a um capacitor ferroelétrico, dispositivo que armazena energia num campo elétrico. O transistor atua como um interruptor, permitindo que o circuito de controle leia ou escreva os sinais 0 e 1, do sistema binário, a serem armazenados no capacitor. O princípio utilizado é o mesmo dos semicondutores magnéticos empregados nos cartões de crédito comuns e bilhetes de transporte. “A diferença é que os cartões magnéticos precisam ser encostados a uma leitora para passar a informação, enquanto os cartões ferroelétricos podem ser lidos a uma distância de até seis metros”, explica Longo. A leitura é feita por radiofrequência. O chip, de cerca de 2 milímetros quadrados de área, não é aparente. Embutido nos cartões ou em celulares, por exemplo, ele possui um sistema de proteção contra hackers.
Há quatro anos, chegou a ser cogitada a possibilidade de construção de uma fábrica para produção de semicondutores ferroelétricos em São Carlos, cujo investimento remontaria a R$ 1 bilhão. Inicialmente, a memória de acesso aleatória ferroelétrica, ou FeRAM, também conhecida como memória não volátil – já que, uma vez removida a energia, a informação continua armazenada –, seria produzida com tecnologia desenvolvida pela empresa norte-americana Symetrix, criada há duas décadas nos Estados Unidos pelo brasileiro Carlos Paz de Araújo, professor de engenharia elétrica na Universidade do Colorado. Pelos entendimentos iniciais, o CMDMC, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cedip) da FAPESP, teria participação ativa no desenvolvimento de novas memórias ferroelétricas e de novos materiais.
“Infelizmente, as negociações não avançaram e a Symetrix decidiu instalar sua fábrica na China. Foi uma pena, pois, além da fábrica em si, estimamos que outras 300 a 400 novas empresas da cadeia produtiva seriam instaladas na região”, informa Elson Longo. Segundo ele, o sucesso do negócio esbarrou na dificuldade de obtenção de recursos para construção da unidade em São Carlos. “A Symetrix chegou a iniciar conversas com um investidor privado nacional, contatado por nós, mas a negociação não se concretizou. A instalação de uma indústria de semicondutores é complexa e envolve interesses diversos, que não foram contemplados”, conta Longo. A tecnologia desenvolvida por Araújo e sua equipe foi licenciada pela Panasonic, no Japão, onde é utilizada em cartões de metrô, trens e nas carteiras de habilitação.
No supermercado
A memória ferroelétrica poderá ser utilizada também como componente na fabricação de carros e em supermercados. No setor automotivo, ela poderá fazer parte de um sistema anticolisão, uma tecnologia patenteada pela Symetrix. “Com essa memória é possível instalar um sistema de segurança no carro com sensores na faixa do infravermelho, que funcionarão como câmeras de visão noturna para detectar a presença de pessoas, animais ou carros parados, numa faixa de 100 a 200 metros à frente do veículo”, explica. Nos supermercados, a utilização da memória ferroelétrica no lugar dos códigos de barras permitirá um controle integrado dos produtos. Informações como data de validade do produto, nome do fabricante, preço, estoque e quantidade comprada serão colocadas em um dispositivo do tamanho de uma pontinha de alfinete. “Não é apenas um código de barras, mas uma memória inteligente”, diz Longo.
“Cada etiqueta com um chip embutido poderá custar menos de R$ 0,02”, ressalta Varela. O consumidor que for às compras saberá antecipadamente quanto gastou ao passar a uma distância de três ou quatro metros de um painel. Caso concorde em finalizar a compra, antes de sair pela porta será feito o débito ou crédito do cartão que carrega no bolso. “Enquanto um cartão magnético (igual aos de crédito ou débito) dura de quatro a cinco anos, o ferroelétrico pode ser utilizado até 1 trilhão de vezes nas funções escrever e ler de forma elétrica (a forma como as informações são gravadas na memória ferroelétrica), o que dá uma média de vida útil de 300 anos”, explica Varela. Uma das razões para esse menor tempo de vida útil dos cartões magnéticos é a necessidade do contato direto para a leitura.
O grupo da Unesp de Araraquara sintetizou recentemente outro material promissor com propriedades ferro-elétricas, a ferrita de bismuto, uma liga de bismuto, ferro e oxigênio. Pode ser uma alternativa às memórias convencionais, por ter baixo consumo de energia. “O ponto fraco é a elevada corrente de fuga, o que diminui sua aplicabilidade. Estamos trabalhando para reduzir a corrente de fuga”, diz Longo. Segundo ele, até agora a principal aplicação do novo material, sintetizado por russos e norte-americanos, é no desenvolvimento de sensores.
A pesquisa que resultou nos filmes finos de titanato de bário e de chumbo faz parte de uma corrida mundial com cerca de 30 anos de percurso para superar um dos problemas da microeletrônica: o tamanho da célula de memória. Esta peça está sendo reduzida a cada ano com o objetivo de aumentar o número de dispositivos e proporcionar maior capacidade de arquivamento e processamento de dados para os computadores. Os cientistas ligados ao grupo que deu origem ao CMDMC começaram a estudar os materiais ferroelétricos em 1992. O conhecimento originado desses estudos resultou na publicação de 208 artigos científicos em revistas nacionais e internacionais. Desde 2000, quando esse Cepid foi criado, foram formados 18 doutores e 22 mestres em materiais ferroelétricos.
As novidades apresentadas pelas equipes dos professores Longo e Varela, que juntos coordenaram três projetos temáticos da FAPESP – Desenvolvimento de Cerâmicas e Filmes Ferroelétricos através do Controle da Microestrutura, Síntese e Caracterização de filmes finos e Cerâmicas Ferroelétricas e Influência da Texturização e de Defeitos Cristalinos nas Propriedades Ferroelétricas de Filmes Finos e Cerâmicos –, poderão, no futuro, reduzir a histórica dependência brasileira de importação de dispositivos semicondutores, que atingiu US$ 4,9 bilhões em 2011, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) – valor 10% superior ao do ano anterior.
O mercado mundial de semicondutores é bilionário e, de acordo com informações da Semicondutor Industry Association (Associação da Indústria de Semicondutores, em português), movimentou US$ 299,5 bilhões em 2011, um recorde histórico. Há alguns anos, o governo brasileiro tenta, sem sucesso, atrair uma multinacional de semicondutores para o país. Em 2010, foi inaugurada a fábrica da Ceitec, em Porto Alegre. A estatal, ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, é apontada como o embrião da fábrica de semicondutores brasileira.
Os projetos
1. Desenvolvimento de Cerâmicas e Filmes Ferroelétricos através do Controle da Microestrutura (nº 1998/14324-0) (2000-2012); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Coordenador Elson Longo – Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos, UFSCar; Investimento R$ 21.025.671,96 por ano para todo o CMDMC
2. Síntese e Caracterização de Filmes Finos e Cerâmicas Ferroelétricas (nº 2000/01991-0) (2000-2005); Modalidade Auxílio Pesquisa – Projeto Temático; Coordenador José Arana Varela – Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica, Unesp; Investimento R$ 1.319.395,06
3. Influência da Texturização e de Defeitos Cristalinos nas Propriedades Ferroelétricas de Filmes Finos e Cerâmicos (nº 2004/14932-3) (2005-2009); Modalidade Auxílio Pesquisa – Projeto Temático; Coordenador José Arana Varela – Laboratório Interdisciplinar de Eletroquímica e Cerâmica, Unesp; Investimento R$ 704.506,70
Artigos científicos
COSTA, C. E. F. et al. Influence of strontium concentration on the structural, morphological, and electrical properties of lead zirconate titanate thin films. Applied Physics A: Materials Science & Processing. v. 79, n. 3, p. 593-97, 2004.
SIMÕES, A. Z. et al. Electromechanical properties of calcium bismuth titanate films: A potential candidate for lead-free thin-film piezoelectrics. Applied Physics Letters, v. 88, p. 72916-19, 2006.
De nosso arquivo
Magnéticas e sensíveis – Edição nº 175 – setembro de 2010
Memórias de futuro – Edição nº 153 – novembro de 2008
Investimento de peso – Edição nº 144 – fevereiro de 2008
Condutor ao forno – Edição nº 97 – março de 2004
Maior capacidade de memória – Edição nº 52 – abril de 2000