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Economia

A moeda autoritária

Projeto discute a delicada relação entre a autoridade do Banco Central e a política

Os políticos devem suspirar, nostálgicos, pelos tempos em que, como dizia Washington Luiz, “governar é construir estradas.” “Uma das rupturas de época mais significativas na América Latina diz respeito aos novos critérios de legitimação, pelos quais categorias ‘econômicas’ foram convertidas em valores sociais e em critérios de desempenho político por meio dos quais a sociedade julga seus governantes”, analisa a cientista política Lourdes Sola. “Objetivos antes percebidos como ‘econômicos’, tais como estabilidade e disciplina monetária, tornaram-se inteligíveis para a população e para os formadores de opinião, passando a fazer parte de suas aspirações e expectativas, a ponto de adquirir o estatuto de ‘bens públicos'”, observa a pesquisadora, coordenadora do Projeto Temático Construção da autoridade monetária e democracia: a experiência brasileira no contexto da integração econômica em escala global, realizado com apoio da FAPESP.

Hoje, nota a professora, da capacidade de se obter uma hipoteca para uma nova casa até a taxa geral de inflação da economia, tudo é, de alguma forma, determinado pela política monetária e financeira do governo. “Logo, é preciso um foco mais amplo, que aborde a autoridade monetária como modalidade específica de autoridade política.” Lourdes nota que, com a democratização, a estabilidade macroeconômica passou a funcionar como ativo eleitoral importante, já que a massa do eleitorado estava cansada das antigas políticas econômicas baseadas em choques e num crescimento movido à hiperinflação. “Daí decorre um desafio para os governos das novas democracias: eles dependem, em grande parte, do acesso aos mercados internacionais de capital para manter a estabilidade econômica; a qual, por sua vez, é necessária para responder a outras demandas que o eleitorado de massa associa à democracia, ou seja, desenvolvimento econômico e maior bem-estar material.”

Credibilidade
Um dilema político mais do que hamletiano, pois significa agradar ao mesmo tempo os interesses, no geral díspares, de investidores estrangeiros e do eleitorado interno. “O acesso aos capitais internacionais está condicionado à obtenção de credibilidade financeira, cuja conquista passa pela desregulamentação dos mercados domésticos e pelo livre fluxo de capitais como principais mecanismos de ajustamento.” Essa forma de integração, no entanto, leva a uma crescente exposição a choques exógenos.

“Isso ocorre num contexto de democratização que introduziu na cena política um eleitorado de massa que se caracteriza pela baixa tolerância à instabilidade e às trajetórias recessivas da economia, provocadas pelo alto grau de exposição a ‘choques externos'”, avalia. “Tudo ficou evidente na última eleição, quando, do lado da classe política, uma vez constatado que o grosso da população era favorável à estabilidade, os candidatos de oposição a reivindicaram como um valor, ou seja, se apresentaram como parcialmente continuístas. O PT e Lula, aliás, mais do que qualquer outro, como se lê na ‘Carta aos brasileiros'”, lembra a autora. Daí, se a reestruturação da autoridade monetária está no topo da lista das reformas institucionais, no cume dessa nova estrutura está a delicada questão da autonomia do Banco Central (BC).

Louco
“A consolidação de um novo desenho institucional, com a autonomia do BC, ainda depende de maior aprofundamento das discussões e de seu entendimento pela sociedade”, afirma o ministro da Fazenda, Antonio Palocci. “Se em algum momento eu entender que a autonomia do BC poderá baixar os juros, serei louco se não o fizer”, afirmou o presidente Lula em sua primeira coletiva. “No entanto, o que parecia provável, o projeto de autonomia funcional do BC em 2003, frustrou-se, embora se tratasse de uma decisão em via de ser concretizada, pois, naquele ano, foi viabilizada a reforma constitucional (o artigo 192, da Constituição de 1988, que redefinia as atribuições e a estrutura da instituição), um passo adiante em direção à autonomia. Aprovada, aliás, no Congresso, no governo Lula, com apoio da oposição, do PT e da base aliada.”

A grande disponibilidade de recursos no mercado financeiro internacional, a chamada liquidez, deu ao governo brasileiro a oportunidade de adiar o projeto de autonomia. Muito dinheiro em oferta diminuiu a preocupação com o risco e isso fez baixar a pressão internacional pela reestruturação do BC. “Mas, cedo ou tarde, o mercado vai ficar menos ativo e a pressão retornará, trazendo de volta o projeto, um estímulo importante para recuperar a confiança dos mercados”, avalia a pesquisadora. Na base de tudo está o medo constante dos investidores estrangeiros nas mudanças ocorridas no calor das disputas eleitorais, que fazem do Brasil um mar de incertezas, palavra odiada pelo mercado financeiro. Daí o desejo de um BC “livre de pressões políticas”.

Mas livre de quem? O próprio presidente Lula, em entrevista, declarou que, em seu governo, o BC já tinha autonomia, incluindo-se aí um presidente “blindado” com o status de ministro de Estado. “É uma autonomia de fato, mas parcial”, diz a autora. O preço da liberdade é a eterna vigilância: o chavão da Guerra Fria também se poderia aplicar ao projeto do BC: quem será o guardião do guardião? “As questões a serem discutidas são a natureza e os limites da autonomia, bem como os procedimentos pelos quais devem ser fixadas as metas de inflação, cabendo ao Executivo/Congresso fixá-las e cabendo a um BC dotado de autonomia operacional cumpri-las”, avalia. “Um segundo aspecto é trazer para o debate público o desenho institucional de um BC autônomo, respeitadas as características do contexto brasileiro. A ilusão dos que defendem o modelo ortodoxo (antidemocrático a meu ver) é pressupor que só existe um modelo de autonomia, quando, na verdade, apesar de serem autônomos, os BCs dos Estados Unidos, Japão, Alemanha e França são muito distintos”, lembra a pesquisadora. Vale lembrar que o Banco da Inglaterra adquiriu sua autonomia em 1997, num governo do Partido Trabalhista.

O Banco Central do Brasil foi criado em 31 de dezembro de 1964. Antes dele, a autoridade monetária era exercida pela Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), pelo Banco do Brasil e pelo Tesouro Nacional. “O BC nasce num regime autoritário e tem um caráter tardio em relação aos BCs dos demais países latino-americanos. Mais: a centralização dos instrumentos monetários na instituição também se deu de forma atrasada. De 1965 a 1985, o BC compartilhou controles sobre a oferta monetária do país com o Banco do Brasil”, observa Lourdes. Curiosamente, em 1964, havia intenções sérias de fazer da instituição um instrumento autônomo em relação à política, uma proposta que foi derrotada, três anos depois, na Presidência de Costa e Silva, por causa do expansionismo econômico do então ministro Delfim Netto. “A história da autoridade monetária no Brasil do pós-guerra, porém, tem menos a ver com a natureza do regime político do que com o compromisso prioritário com o crescimento acelerado e a industrialização substitutiva.”

Centralismo
Após anos de centralismo político, a Constituição de 1988, ressalta a autora, trouxe “a devolução dos poderes econômicos e decisórios às instâncias estaduais, antes da liberalização política na órbita federal, o que ajuda a explicar as dificuldades enfrentadas pelo Executivo, mais tarde, sempre que se tratava de estabelecer uma autoridade coordenada e de implementar uma estratégia acordada que implicasse o apoio dos governadores.” Os estados passaram a agir como forças centrífugas para a descentralização monetária, em especial ao usar seus bancos estaduais para emitir dinheiro (Banespa, Banerj, entre outros), uma espécie de rebelião contra a autoridade constitucional do BC. Além disso, com a inflação em alta, os grandes ganhadores eram os bancos, incluindo-se os bancos públicos: a cada ano, entre 1990 e 1993, o setor bancário gerava receita inflacionária na base de 4% do PIB, com os bancos públicos se apropriando de dois terços do total.

O fim da hiperinflação, a partir de 1994, virou o jogo para o BC. “A capacidade da instituição para disciplinar os bancos estaduais deve ser vista como um processo gradativo que começa no princípio de 1980 e que foi imposto pelas crises sucessivas vividas por esses bancos.” Mais uma vez o dilema era político: a conciliação entre realidade democrática descentralizada, o federalismo brasileiro e a necessidade de uma centralização monetária no BC, a fim de instaurar a desejada estabilidade econômica. “O modelo de federalismo adotado gradativamente ao longo do processo de democratização influenciou a ordem monetária ao gerar uma multiplicidade de centros de poder rivais do governo federal”, diz a autora. “Assim, enquanto a autonomia estatutária do BC não estiver assegurada por um ato de delegação da classe política e, portanto, do Legislativo, a atual autonomia da instituição continua a depender do fiat do presidente, ou seja, de uma decisão política, e não de uma restrição institucional”, avisa Lourdes. “Mas o Legislativo não parece interessado no assunto. A agenda é pobre e  não inclui a autonomia do BC, porque não é um objetivo relevante em termos eleitorais.”

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