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Pesquisa na quarentena

“À noite, acompanho conferências médicas sobre Covid-19”

Durante o dia, de casa, a pediatra Magda Carneiro-Sampaio discute com os colegas sobre o atendimento a crianças e adolescentes com doenças crônicas

Maria Clara SampaioMagda Carneiro-Sampaio se mantém ligada às equipes médicas mesmo sem sair de casaMaria Clara Sampaio

Como sou do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas [da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – HC-FM-USP] e coordeno a pediatria clínica do ICr [Instituto da Criança e do Adolescente, uma das unidades do HC], estou em contato direto com as equipes médicas, mesmo sem sair de casa.

Começo as reuniões a distância, por computador, às 8 horas, com a equipe administrativa. Temos de discutir muito o que fazer, porque as verbas estão exíguas e devem ficar ainda mais. Temos de estar extremamente atentos, para depois não haver outros problemas.

O serviço de pediatria do HC está menos sobrecarregado porque a Covid-19 acomete pouco as crianças. Por isso, muitos pediatras foram chamados para atender adultos, porque não havia gente suficiente. E os pacientes gostaram. Outro dia recebi uma carta de uma moça agradecendo porque, segundo ela, quem manteve o tio-avô dela vivo no hospital foi uma pediatra.

Mas já tivemos 53 casos de Covid-19 em crianças e adolescentes, quase todos com comorbidades [outras doenças], como doenças genéticas ou neoplasias [câncer]. Infelizmente, já perdemos três pacientes, dois deles com doenças genéticas. Os com imunodeficiências primárias e mesmo os transplantados de fígado não tiveram problemas. Asma, a doença crônica mais comum na infância, não tem sido um fator de risco. 

A Covid-19 é uma doença extremamente paradoxal, porque supostamente deveria atingir também quem tem essas comorbidades, mas felizmente isso não ocorre. 

Tenho discutido regularmente essas situações com os pesquisadores e com os pós-graduandos. Em maio, publicamos um artigo sobre esse enigma do Sars-Cov-2 que poupa as crianças.

Outro grupo de risco são os recém-nascidos de mães com Covid-19. As mães e os filhos estão saindo bem do HC. Só tivemos duas complicações com mães. Queremos saber se esse vírus, ainda tão desconhecido, pode causar problemas de desenvolvimento no começo da gravidez, como ocorre com o vírus zika. Não vimos ainda nem encontramos nenhum relato sobre isso. Temos um protocolo com leite materno para recém-nascidos cirúrgicos na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] neonatal do HC, que não parou. 

Quando encontramos alguma criança ou adolescente com sintomas de Covid-19, colocamos em uma ala reservada do instituto que ganhou o nome de ‘gripário’. Se deu positivo, vai para a enfermaria do HC central, o ‘covidário’.

Na pediatria clínica do Instituto da Criança, que agora é também do Adolescente, estão uns 200 médicos, de todas as especialidades, exceto oncologia, hematologia e transplante de medula óssea, e mais o pronto-socorro. Nesse momento o ambulatório está suspenso, mas queremos reabrir logo. Não podemos esperar muito mais, porque acompanhamos cerca de 18 mil crianças com doenças crônicas.

Duas vezes por dia vejo os dados dos pacientes que entraram e saíram. Por ser do grupo de risco, não posso acompanhar pessoalmente, mas converso o tempo todo com os médicos que estão lá, para discutir os casos mais graves e complexos.

Os pacientes crônicos estão sendo atendidos por telefone. Quando algum deles não está bem, pedimos para ir ao instituto para ser mais bem avaliado e fazer exames. As enfermarias estão com metade da ocupação normal, a UTI está cheia, com pacientes com outras doenças. Temos hoje em torno de 150 leitos ocupados, incluindo as UTIs, as enfermarias e o Itaci [Instituto de Tratamento do Câncer Infantil, ligado ao ICr]; habitualmente são 240 leitos. 

Conseguimos manter as aulas para os internos e médicos residentes, embora com menos pacientes, mas se discute mais os poucos casos dos quais eles cuidam. As cirurgias, de otorrinolaringologia, oftalmologia e outras, é que pararam. Estamos vendo como recuperar o tempo perdido para o pessoal dessa turma se formar e recebermos a do próximo ano.

À noite tenho assistido lives [apresentações ao vivo], simpósios e conferências sobre Covid-19 e imunologia clínica. Hoje [25 de junho], tenho duas, uma do Children’s Hospital of Philadelphia [dos Estados Unidos] e outra de um pesquisador do ICB [Instituto de Ciências Biomédicas] da USP. Temos muito a aprender.

Não vi nenhum filme nesse tempo. Às vezes, vejo um pouco de jornal na televisão e me arrependo, porque as notícias são muito ruins.

Não saio de casa. No máximo vou até o térreo, quando vem alguém do instituto ou do hospital para eu assinar documentos.

Tenho uma “dona de casa”, Alzenir Reis, que está comigo há 25 anos e morando aqui nestes tempos. Ela achou mais adequado permanecer aqui do que ir para a casa da família dela. Ela prepara a comida e cuida da casa, mas também estuda, faz supletivo no Colégio Estadual Rodrigues Alves, na avenida Paulista. Aqui ela pode usar internet e tem a supervisão de minha filha Maria Clara.

Maria Clara é historiadora e professora da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, em Marabá, mas está aqui desde o começo de maio. Ela dá aula na graduação e na pós. Já perdeu vários alunos por causa da Covid-19, uma delas de 20 anos, com duas crianças pequenas, por falta de assistência. O hospital de emergência de Marabá simplesmente fechou em várias ocasiões, pela impossibilidade de atender o excesso de demanda. 

Minha outra filha, Anna Dulce, é musicoterapeuta e está na casa dela. Todo dia a gente liga a câmera [do computador] e almoçamos juntas. Ela é voluntária no Instituto Central do HC e todas as tardes ajuda nas altas dos pacientes. Já teve dois momentos que achou que estivesse infectada, mas não se contaminou.

Por dia, umas 40 pessoas têm alta do HC. É uma festa, mas nem sempre. Outro dia pediram para Dulce não fazer festa com um mocinho que estava saindo, já recuperado, porque a mãe dele tinha morrido de Covid-19 e ele não sabia ainda.

 

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