Em 1981, durante uma crise política grave no governo Figueiredo, o todo-poderoso Golbery do Couto e Silva pediu demissão do governo. Aos jornalistas justificou-se: “Não me perguntem nada. Eu acabo de sair de Sucupira”. A referência à cidade fictícia da novela O bem-amado (1973) e à minissérie homônima (1980-1984), de Dias Gomes, num momento delicado como aquele, revela o poder, à época, das telenovelas como representação da realidade nacional e de como os brasileiros se reconheciam nessas representações. “A partir de conflitos de gênero, geração, classe e religião, a novela fez crônicas do cotidiano que a transformaram num palco privilegiado de interpretação do Brasil. O país, que se modernizava num contexto de modernização centrada no consumo, e não na afirmação da cidadania, se reconhecia na tela da TV em um universo branco e glamoroso”, explica Esther Hamburger, professora do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Universidade de São Paulo (USP) e autora do estudo O Brasil antenado (Jorge Zahar Editor). Ela analisou os novos rumos do gênero na pesquisa Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil contemporâneo, apoiada pela FAPESP e coordenada pelo sociólogo da USP Sérgio Miceli. O projeto reúne, além de Esther, outros pesquisadores de várias áreas e temas.
“No Brasil que se democratizava, a novela tratou em primeira mão de assuntos que pautariam a cena política na década seguinte. Mas, hoje, ela perdeu o seu status privilegiado de problematização das questões nacionais. Não consegue mobilizar a opinião pública, não é mais totalmente nacional e tampouco a vitrine do país. É provável que não seja mais capaz de sintetizar o país”, avisa a pesquisadora. “Afinal, aquele país centralizado, passível de uma representação hegemônica, não existe mais. Novos meios como TV a cabo e a internet tiraram da novela o seu caráter de arena de problematização. A sociedade mudou e há muita diversificação. A alfabetização aumentou e a TV não é mais o único lugar para achar informações”, observa. Para Esther, no país atual não é mais possível uma novela falar para toda a nação. “Não há mais um Brasil na TV, mas vários”, avalia.
Tadeu VilaniQueda
“A novela permanece estratégica na receita e na competição entre as emissoras de televisão, mas sua capacidade de polarizar audiências nacionais está em queda. O gênero abusa de mensagens de conteúdo social, enquanto perde seu diferencial estético e sua força polêmica. A nação já não é mais o tema central, porque os temas extrapolam fronteiras. Há cada vez me-nos referências a assuntos atuais e polêmicos. A opção é por campanhas politicamente corretas, muitas vezes em detrimento da dramaturgia, amarrando a criatividade dos autores”, diz Esther. Segundo a mas vários”, avaliapesquisadora, a estrutura de conflitos melodramáticos que sustenta a narrativa ainda se mantém, mas em histórias que voltam a se restringir a espaços imaginados como femininos, o público inicial dos primórdios da telenovela nacional, e de menor valor cultural. O gênero também não atrai mais tantos talentos criativos, com textos fracos e enredos repetitivos que insistem em velhos clichês e convenções que fizeram sucesso no passado. “Ainda assim, não se pode negar que a novela pode voltar a ter o impacto político e cultural de antes, influindo no comportamento e na moda. Ela ainda é um lugar onde se pode aprender algo, em especial o novo público predominante, abaixo das classes A e B”, fala.
Do apogeu à crise recente de queda de audiências foi um longo caminho. No início imperava o estilo “fantasia”, cheio de sentimentalismo, em produções dos anos 1960, como o exótico Sheik de Agadir, paradigma quebrado com o realismo de Beto Rockfeller, representação da contemporaneidade das classes médias emergentes. Nos anos 1970 romperam-se os limites do dramalhão, mas as novelas viraram vitrines do ser moderno: a moda e o comportamento. “A Globo, durante a ditadura, adotou o discurso oficial, mas entendeu que, nas novelas, ao invés de esconder os problemas, era melhor incorporá-los nas tramas, como fez em O bem-amado. Foi o início de uma crítica crescente ao processo de modernização”, lembra Mauro Porto, professor da Tulane University e autor da pesquisa Telenovelas and national identity in Brazil. O realismo tomou conta do gênero: uma pesquisa de 1988 revelou que 58% dos entrevistados queriam ver “a realidade” nas novelas e 60% desejavam que as tramas falassem da política. “Os autores, de uma geração de esquerda, se viam como responsáveis por um projeto nacional e de consciên-cia popular”, nota Porto. “As novelas registraram os dramas da urbanização, das diferenças sociais, da fragmentação da família, da liberalização das relações conjugais e dos padrões de consumo. Chegaram ao seu ápice quando falaram dos problemas da modernização como Vale tudo (1988) e Roque Santeiro (1985)”, diz Esther. Mas a TV Manchete trouxe uma leitura alternativa do país com Pantanal, pleno do exótico e do erótico, o que rompeu o ciclo político das novelas, inclusive na Globo, que se viu obrigada a emular o novo conceito. “O ‘efeito Pantanal’, porém, não deixou herdeiros e hoje foi esquecido.”
Tadeu VilaniIntimidade
“Nesse percurso, a telenovela criou um repertório comum pelo qual pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes se reconheciam, uma ‘comunidade imaginada’ de problematização do Brasil, da intimidade com os problemas sociais, veículo ideal para se construir a cidadania, uma narrativa da nação”, analisa Maria Immacolata Lopes, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Telenovelas. O modelo se desgastou e o país mudou. “Entre 1970 e 1980 houve uma mágica entre público e novela. Em Vale tudo, pela primeira vez se viu a corrupção num espaço público não político e as novelas estavam na vanguarda”, nota Esther. “Hoje a corrupção é banal, não é mais polêmica, só traz o tédio da repetição. Em 1988 era novidade; em 2011 é algo batido.” As novelas não estão mais antenadas com o país. “Mesmo a literatura contemporânea acadêmica estrangeira sobre televisão já não discute mais a telenovela brasileira e o ‘caso’ brasileiro perdeu espaço interna e externamente diante de uma renovação da ficção televisiva internacional, em especial os seriados americanos, que ganham espaço nos canais nacionais, um novo fluxo de importação de programação que as novelas haviam substituído nas décadas anteriores”, explica. Os sitcons de hoje, ao contrário do passado, quando eram “obras fechadas” e sem improviso, estão abertos aos indicadores de sucesso e podem mudar seu rumo enquanto estão no ar, trazendo alusões a elementos políticos e culturais da realidade americana e problematizando os EUA.
“Não temos a mesma audiência nacional com todas as classes e lugares. Tudo ficou mais popular e as novelas atendem esse público espectador com merchandising social, sexo, dinâmica de tramas que mudam toda hora, ação, assassinatos”, analisa. Para a pesquisadora, essa quebra na dramaturgia reduz ainda mais o escopo do público ao fazer cair o interesse de uma grande parte da au-diência. Esther cita novas alternativas como Cordel encantado, que remete às novelas fantasiosas. Há também a procura de novos autores e diretores ou o remake de antigos sucessos, como O astro, para recuperar fórmulas de sucesso do passado, mas, mesmo adaptadas, conservam sabor de “coisa velha”. “Não sabemos se os brasileiros ainda desejam o realismo, mas é certo que se cansaram das novelas urbanas no eixo Rio-São Paulo. Gostariam de conhecer novas rea-lidades e o aspecto regional antes desprezado ou caricaturado.” A renovação não é fácil, como mostra o fracasso de experimentações como Cidade de Deus ou Antonia. “Uma solução seria mostrar a violência das cidades, do tráfico, mas isso ainda é tabu nas novelas. O cinema se revelou mais ‘antenado’ ao mostrar os poderes paralelos das periferias, como em Tropa de elite. Ou, Dois filhos de Francisco, filme que traz um Brasil onde os humildes se realizam.” A novela, pela primeira vez, perdeu o bonde da história. Num escândalo recente, um colunista político não usou uma citação de novela, como Golbery, para falar do caso, mas o bordão do filme Tropa de elite: “Palocci, pede pra sair!”.
O projeto
Formação do campo intelectual e da indústria cultural no Brasil (nº 08/55377-3); Modalidade Projeto Temático; Coordenador Sérgio Miceli – Unicamp; Investimento R$ 534.463,00