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REDES COMPLEXAS

A ordem da escassez

Padrões descobertos em uma rede de milhares de açudes no Ceará podem ajudar a enfrentar secas e enchentes

ilustração gabriel bitarUma equipe internacional de físicos e hidrólogos se surpreendeu ao analisar como a água flui pelos rios e riachos que conectam as quase 4 mil barragens ou açudes da bacia hidrográfica do Alto Jaguaribe, no sudoeste do Ceará. Eles descobriram que, embora a maioria das barragens tenha sido construída sem levar em conta nenhum planejamento regional, juntas elas formam uma rede que está longe de ser aleatória. Ao contrário, a rede parece organizada de forma a fazer com que a água seja relativamente bem captada e distribuída pela região. “O homem do campo, mesmo tomando decisões locais, sem olhar para o todo, construiu um sistema muito próximo daquele que teria sido construído se fosse planejado para ser ótimo”, afirma o engenheiro hidráulico José Carlos de Araújo, da Universidade Federal do Ceará (UFC), um dos autores do estudo publicado em abril no site da revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS).

Várias propriedades dessa rede de açudes, em especial a frequência com que acontecem transbordamentos em série nos períodos de chuva, obedecem a padrões probabilísticos bem conhecidos dos físicos que estudam redes complexas como as redes de centrais elétricas, os neurônios no cérebro e a internet. Explorando essas regularidades matemáticas, seria possível intervir na rede para torná-la mais eficiente e menos vulnerável a secas, a enchentes e ao rompimento de barragens.

Inserido no polígono das secas, o Ceará sofre o ano todo com a estiagem, interrompida apenas na estação chuvosa, que dura de fevereiro a maio. A evaporação média anual ali supera de três a quatro vezes a precipitação, fazendo com que a maioria dos cursos d’água sejam efêmeros. Para complicar a situação, a maior parte de seu território é de rochas cristalinas, impermeáveis, cobertas por um solo raso, que quase não armazena água subterrânea.

Toda a água das chuvas escorreria direto para o mar não fosse pelas mais de 30 mil barragens espalhadas pelo estado, que formam uma das redes de açudes mais densas do mundo, com uma média de um reservatório a cada seis quilômetros quadrados. “Houve ao longo das décadas uma construção desenfreada dessas barragens, para dar certa segurança hídrica para as populações”, explica o hidrólogo George Leite Mamede, da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), autor principal do artigo na PNAS.

ARQUIVO DNOCSAçude Orós, o segundo maior do Ceará, na bacia do rio JaguaribeARQUIVO DNOCS

Os pesquisadores analisaram uma porção da bacia do Jaguaribe, o principal rio do Ceará, que vai de suas cabeceiras, no sudoeste do estado, na divisa com o Piauí, até onde o rio deságua no segundo maior açude cearense, o Orós. A chamada bacia do Alto Jaguaribe cobre uma área de 25 mil quilômetros quadrados, onde 500 mil habitantes vivem principalmente da criação de gado e da agricultura. Além do Orós, que é capaz de armazenar quase 2 bilhões de metros cúbicos de água, a bacia conta ainda com outros 17 açudes estratégicos de capacidade superior a 1 milhão de metros cúbicos, que garantem água mesmo durante períodos de secas contínuas de até três anos. Esses reservatórios estratégicos são monitorados constantemente pelos técnicos da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (Cogerh) do Ceará.

A maioria dos quase 4 mil açudes do Alto Jaguaribe, entretanto, são pequenas construções, com volume inferior a 100 mil metros cúbicos, feitas por fazendeiros e pequenos agricultores, às vezes com apoio das prefeituras locais, mas sem nenhum levantamento dos impactos que a obra poderia causar. “Além disso, eles não são usados racionalmente”, explica Araújo. “Não há um sistema de gestão para os pequenos açudes.”

De fato, essa profusão de reservatórios pequenos não é vista com bons olhos pela maioria dos gestores de recursos hídricos do estado. Primeiro, porque não conseguem suprir a população por toda a estação seca, pois armazenam pouca água e perdem muito dela por evaporação e infiltração. Depois, por estarem geralmente rio acima em relação aos grandes reservatórios estratégicos, os pequenos açudes retêm água que chegaria a esses últimos, onde o uso dela é mais bem controlado.

A vez dos pequenos
Mas o Grupo de Pesquisa Hidrossedimentológica do Semiárido da UFC, coordenado por Araújo, vem acumulando evidências de que os pequenos açudes têm seus aspectos positivos. O mais evidente é a distribuição espacial mais igualitária e econômica dos recursos hídricos pela região. Se toda a água escoasse diretamente para os grandes açudes rio abaixo, haveria um custo de energia para bombeá-la de volta.

GEORGE MAMEDE Açude Riacho Verde, um dos 4 mil reservatórios de pequeno porte da regiãoGEORGE MAMEDE

Os estudos do grupo também sugerem que os pequenos açudes retêm boa parte dos sedimentos arrastados pela água que, caso contrário, se acumulariam nos grandes açudes, diminuindo sua capacidade de armazenamento. Há ainda indicações de que a rede de pequenos açudes funcione como uma espécie de filtro para os grandes reservatórios, retendo a poluição gerada  sobretudo pela pecuária.

Mesmo com esses benefícios, porém, os pesquisadores alertam que a construção de mais pequenos açudes – que prossegue na região, ainda que em um ritmo menor que no passado – precisa parar. Um estudo liderado por Vanda Malveira, da UFC, e publicado em janeiro no Journal of Hydrologic Engineering, comparou o crescimento da rede de açudes no Alto Jaguaribe de 1961 a 2005 com o de redes simuladas por computador. Os pesquisadores concluíram que uma rede atinge um ótimo de aproveitamento de seus recursos hídricos quando a soma da capacidade dos açudes chega a três vezes o volume da água que escoa pela bacia anualmente. Além desse ponto, ultrapassado no Alto Jaguaribe nos anos 1990, não há ganho com novos açudes. A água que seria armazenada por um açude rio abaixo simplesmente é transferida para outro rio acima.

Intrigados com as semelhanças entre a rede real de açudes e a rede virtual otimizada, Mamede e Araújo procuraram a ajuda dos físicos especialistas em sistemas complexos Nuno Araújo, Christian Schneider e Hans Herrmann, do Instituto Federal Suíço de Tecnologia de Zurique (ETH), para analisar a dinâmica do transporte de água na bacia. O primeiro desafio da equipe foi determinar a localização e a área máxima de cada açude da bacia, desconhecidas para mais de 95% desses reservatórios. Caracterizaram os 3.798 reservatórios por imagens de satélite disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, tomadas em anos excepcionalmente úmidos (2004, 2008 e 2009). Em seguida, usando imagens de alta resolução do relevo obtidas pela Missão Topográfica Radar Shuttle, da Nasa, reconstruíram em computador o traçado de cada curso d’água da bacia, descobrindo assim como cada açude se ligava a outro.

Para a surpresa de todos, verificaram que não havia um valor típico médio para o tamanho dos açudes, cuja área varia de 10 mil a 10 milhões de metros quadrados. O mesmo vale para o número de suas conexões: há açudes isolados, conectados somente com o Orós, bem como outros interligados com quase 400 açudes. “Há uma heterogeneidade muito grande, o sistema não tem um tamanho característico”, explica Nuno Araújo. “Dizemos que é uma rede livre de escala.”

Com o mapa completo da rede e os dados de precipitação de 131 estações meteorológicas espalhadas pela região e dados de evaporação da estação Campos Sales, os pesquisadores criaram um modelo hidrológico que computou o quanto de água cada açude recebia e vertia diariamente, de 1991 a 2010. Descobriram que, nos dias de chuva intensa – pelo fato de os açudes receberem água de um ou mais rios e riachos, mas só verterem por uma única saída –, aconteciam transbordamentos em série. Em um efeito em cascata, o vertimento de um açude desencadeava o transbordo de outros rio abaixo. As cascatas geralmente envolviam apenas dois açudes, mas podiam com frequência considerável alcançar 10, 100 e até mil reservatórios.

As frequências com que cascatas de intensidades diferentes aconteceram obedecem a uma distribuição de probabilidade típica de outros fenômenos, como os terremotos e os blackouts em redes elétricas, que os físicos explicam por meio de modelos conhecidos como sistemas criticamente auto-organizados. Eles são chamados assim porque são sistemas feitos de muitas partes interagindo aparentemente de maneira aleatória, mas da qual emergem leis estatísticas simples, ditando que pequenas alterações têm chance de provocar grandes reações em cadeia pelo sistema.

No momento, o grupo da UFC usa esse modelo para quantificar o papel dos pequenos açudes em atenuar o impacto das enchentes nos grandes reservatórios. Eles esperam em breve acrescentar mais detalhes ao modelo, como o transporte de sedimentos e poluição e a integridade estrutural dos açudes, para que ele possa ser usado na avaliação de áreas de risco.

Artigos científicos
MALVEIRA, V. T. C. et al. Hydrological impact of a high-density reservoir network in the semiarid north-eastern Brazil. Journal of Hydrologic Engineering. v. 17, p. 109-17. 2012.
MAMEDE, G.L. et al. Overspill avalanching in a dense reservoir network. Proceedings of the National Academy of Sciences. v. 109, p. 7.191-95. 2012.

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