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Pesquisa na quarentena

“A pandemia chamou a atenção para o sentido do olfato”

Especialista na investigação de como se dá a percepção de odores pelo cérebro, Bettina Malnic passou a considerar aspectos clínicos a partir da capacidade do Sars-CoV-2 de causar a chamada anosmia

No escritório montado em casa, Bettina mantém intenso ritmo de trabalho

Gabi Malnic Barcellos

Quando começou a pandemia, e o IQ [Instituto de Química da Universidade de São Paulo] interrompeu as atividades presenciais, havia a sensação de que ficaríamos em casa sem poder trabalhar. Mas foi o oposto: muitos relatos vindos da Europa, onde a epidemia começou antes, indicavam perda de olfato em pacientes com Covid-19. Mesmo sendo minha área de pesquisa, tive uma quantidade enorme de coisas para entender, pensar e aprender em relação à perda de olfato como um sintoma da doença. 

Também continuaram todas as outras atribuições de professores que trabalham em universidades: atividades didáticas de graduação, pós-graduação e extensão, funções administrativas e participação em comissões e seminários. On-line, tudo isso continuou acontecendo e até se intensificou. Trabalhamos muito com camundongos transgênicos e cultura de células, então há uma manutenção que não pode parar. Como não há outra saída, mantivemos essa atividade reduzindo tudo ao mínimo necessário. 

Do meu ponto de vista, a pandemia trouxe o aspecto interessante de chamar a atenção para o sentido do olfato. Isso incentivou colaborações com os bioquímicos Deborah Schechtman e Alexandre Bruni, do meu departamento, e Isaias Glezer, da Unifesp [Universidade Federal de São Paulo]. Começamos a estudar o que se sabe sobre o vírus e como ele poderia causar a perda de olfato. A cada dia sai uma nova publicação sobre diferentes aspectos da correlação entre o olfato e a Covid-19, e estamos organizando todas essas informações em uma revisão.

Também estabelecemos uma colaboração com os rinologistas Fabio Pinna e Richard Voegels, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP [HC-FM-USP]. Estamos fazendo um levantamento remoto: um questionário aplicado a profissionais da saúde na linha de frente – médicos, nutricionistas, enfermeiros – de hospitais públicos e privados. Perguntamos os sintomas que a pessoa teve, incluindo perda de olfato e/ou de paladar, se trabalha ou não com pacientes de Covid-19, quais comorbidades tem. Vamos começar agora a analisar os resultados. Enfoques clínicos como esses não eram abordados antes no meu projeto de pesquisa, que envolve aspectos moleculares do olfato. Busco entender como o sistema olfatório é organizado, como a percepção de odorantes ocorre, como se regulam os genes envolvidos nesse sentido, e como ele afeta e modula diversos comportamentos. 

No início da pandemia era inverno na Europa, quando é muito comum a perda de olfato causada por resfriados e gripes comuns. Mas hoje se pode dizer que a anosmia causada pelo Sars-CoV-2 é diferente: não vem acompanhada por obstrução nasal e ocorre de maneira súbita. As características distintas nos dois casos indicam que a maneira como o vírus causa esse efeito é específica de como ele age. Há evidências de que o receptor ao qual o vírus se liga nas células – o ACE2 – não está presente nos neurônios olfatórios, que são responsáveis pela detecção dos odorantes. Por isso, se considerarmos que esse é o único receptor para o vírus no epitélio olfatório, o provável é que o vírus não possa infectar os neurônios.

Mas os receptores ACE2 estão presentes em células do epitélio olfatório que dão suporte para os neurônios e são elas que parecem estar envolvidas com a anosmia ligada à Covid-19. Se isso for confirmado, será uma indicação de que essas células têm outras funções importantes. Ainda não sabemos por que a perda de olfato ocorre quando elas morrem. 

Infelizmente camundongos não podem ser usados como modelo para esse tipo de estudo, porque o ACE2 deles é diferente do humano, e o Sars-CoV-2 não é capaz de infectá-los. Mas outros modelos animais, como o hamster-sírio-dourado, podem ser infectados e com eles é possível realizar experimentos para investigar como o vírus prejudica o sentido do olfato. 

Existem diferentes formas de alteração do olfato: anosmia, que é a incapacidade de sentir cheiros, hiposmia, quando a sua intensidade é menor, fantosmia, quando a pessoa percebe odores que não existem, cacosmia, quando sente cheiro ruim mesmo quando ele não existe. Esses problemas podem afetar muito a qualidade de vida das pessoas, mas os pacientes não são levados muito a sério quando procuram auxílio com queixas desse tipo. Anosmias podem estar também relacionadas com doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer. 

Ainda faltam tratamentos e muita pesquisa na área. Quando alguém tem uma infecção viral que pode causar uma anosmia, como exatamente isso acontece? Não sabemos se o epitélio olfatório humano é capaz de se regenerar tão bem como o dos camundongos, nem que células são atingidas. Será que podemos intervir nesse processo e melhorar os resultados?

Esta semana o IQ iniciou um plano de retomada parcial, com a recomendação de que se mantenham os trabalhos de forma remota no que for possível. O acesso aos laboratórios ocorrerá dentro de protocolos estabelecidos.

Eu continuo em casa, onde conseguimos improvisar três home offices: o meu, o do meu marido e o da minha filha, que tem 12 anos e já está bem independente. Basicamente, o trabalho junto ao computador tem sido muito intenso, procuro então equilibrar com outras atividades. Ponho um alarme para me lembrar de levantar a cada 40 minutos e alongar as costas. 

Participei recentemente de um congresso científico virtual em Portland, nos Estados Unidos. Antes, quando íamos a congressos de forma presencial, era preciso pedir licença e viajar. Ficávamos imersos em tempo integral, interagindo com outros cientistas. Agora, não. Enquanto estamos virtualmente no congresso, ao mesmo tempo as atividades locais continuam acontecendo, inclusive as tarefas domésticas. É uma sobrecarga enorme, uma situação que exige novas adaptações. É saudável manter uma rotina e fazer algo diferente no final de semana, nem que seja uma faxina.

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