Moro em um apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo, e já tinha o costume de ficar bastante em casa. Quando soube que precisaríamos iniciar o isolamento social, estava finalizando o doutorado realizado no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo [FFLCH-USP]. Foi um trabalho um tanto quanto solitário, no meu caso, sobretudo por envolver uma investigação teórica no campo da filosofia política, a partir da leitura de obras clássicas.
Fiz dupla titulação, na USP e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, na França. A versão em português estava praticamente finalizada, faltando apenas alguns ajustes. Então, quando chegou a pandemia, estava me dedicando à redação da tese em francês e bem acostumado a essa situação de trabalho domiciliar e solitário. Não senti que meu trabalho foi afetado, justamente por não depender de estudos de campo. Mesmo antes da pandemia, eu já trabalhava bastante em casa. Por sorte eu já tinha feito o empréstimo da maioria dos livros de que precisava. Os que não estavam comigo acabei comprando ou buscando versões publicadas na internet. Para quem trabalha no campo da teoria, o mais importante é o acesso aos textos.
Do ponto de vista prático, eu diria que a pandemia não me trouxe grandes empecilhos. Claro que do ponto de vista pessoal, no que diz respeito à diminuição dos momentos de lazer, encontrar os amigos, ir ao cinema, que são coisas que eu gosto de fazer, isso acabou deixando a rotina mais cansativa. Como vivo com a minha companheira, pudemos fazer atividades a dois que nos ajudaram a relaxar um pouco. Moramos em um apartamento pequeno, mas conseguimos organizar o espaço para atender as necessidades de ambos.
Fui bolsista da FAPESP desde a iniciação científica, realizada durante a graduação em ciências sociais e concluída em 2012 pela USP. Também tive apoio da Fundação no mestrado e no doutorado. Esse suporte foi fundamental para a construção da minha identidade como pesquisador, pois passei a ver na pesquisa o meu ofício. Minha pesquisa teve por objeto, desde então, a história do pensamento político, com ênfase na história da tradição liberal na França a partir da Revolução Francesa, em 1789. No mestrado, concluído em 2015 pela FFLCH, estudei dois autores do século XIX, François Guizot [1787-1874] e Alexis de Tocqueville [1805-1859]. Já no doutorado, trabalhei o “problema do arbítrio” no pensamento do escritor e político franco-suíço Benjamin Constant de Rebecque [1767-1830]. Por conta da dupla titulação, passei o ano de 2018 em Paris, além de ter cumprido mais um curto período por lá no fim de 2019.
A defesa da tese ocorreu em novembro de 2020, de forma virtual e na língua francesa, com a participação de professores daqui e da França. Nessa época eu também estava participando de um concurso para professor substituto na Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ] e a data da seleção coincidiu com a da banca. Terminada a defesa, corri para o concurso, para ser avaliado dando uma aula. Foi um dia bastante intenso, tudo em frente ao computador. Senti falta de poder sair para comemorar o resultado da defesa, que foi bem recebida e elogiada pelos avaliadores. Fiz isso em casa, apenas com minha companheira. Não passei no concurso da UFRJ, mas, apesar da correria, esse foi um preparo para outro concurso, que prestei pouco depois, na Universidade Federal da Bahia [UFBA].
No final do ano passado, tive uma notícia que me deixou surpreso e muito feliz: a de que tinha sido um dos três vencedores do Grande Prêmio Capes de Tese 2021. Fui contemplado na área de Ciência Política e Relações Internacionais com o Grande Prêmio Oscar Niemeyer, concedido pelo Colégio de Humanidades. Para a premiação, cada programa indica uma tese. A minha foi representando o Programa de Pós-graduação em Ciência Política da USP. Os trabalhos são avaliados por uma comissão de cada área. Depois, uma nova comissão é formada para escolher, entre os contemplados com os prêmios das áreas específicas, os três vencedores do Grande Prêmio. Eu fui o primeiro a receber o Grande Prêmio de Humanidades pela área de Ciência Política, o que me deixou muito contente, pois esse foi um reconhecimento da teoria política. Em dezembro de 2021, viajei a Brasília com minha orientadora, a professora Eunice Ostrensky, para participar da cerimônia de entrega dos prêmios, na sede da Capes [Coordenação de Avaliação de Pessoal de Nível Superior]. Um pouco antes disso, em outubro de 2021, soube que minha tese também havia recebido menção honrosa no Prêmio Tese Destaque USP na Grande Área de Ciências Humanas. Além do certificado e do troféu, com o Grande Prêmio da Capes ganhei uma bolsa de pós-doutorado de 12 meses no exterior – ainda estou definindo para qual instituição irei e se será possível conciliar essa bolsa com uma Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior [Bepe] aprovada pela FAPESP para um estágio na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Gostei muito de ter recebido o prêmio pouco antes da publicação da tese, no final do ano passado, sob o título Quando é preciso decidir: Benjamin Constant e o problema do arbítrio [Appris].
Minha pesquisa não tem relação direta com a temática da pandemia, mas cito no trabalho um artigo do cientista político britânico David Runciman, publicado no The Guardian em março de 2020, em que ele analisa como o papel do arbítrio acaba se tornando mais evidente em momentos excepcionais, como os que vivemos desde a eclosão da crise sanitária, quando medidas extraordinárias precisaram ser adotadas, muitas vezes em estado de exceção, que é um conceito central da teoria política. Na tese, trato do que chamo de “problema do arbítrio” na obra de Benjamin Constant. O problema do arbítrio está relacionado a situações que não se fundamentam em leis ou em princípios preestabelecidos, podendo por vezes contrariar o quadro legal. O argumento é o de que Constant abordou a questão do arbítrio por um caminho diferente do estado de exceção, que podemos considerar uma maneira clássica de entender o lugar do arbítrio na política. Com isso, minha tese acabou por dialogar com a atualidade, por essa via do estado de exceção e das medidas não previstas legalmente. Não apenas em relação à pandemia, uma vez que nosso contexto político, de modo geral, caracteriza uma situação excepcional em que temas como o arbítrio e a decisão adquirem uma atualidade candente.
Ainda durante a pandemia iniciei minhas atividades como professor substituto na UFBA. Foi a minha primeira experiência como docente. Lecionei no Departamento de Ciência Política da instituição. Ministrei diferentes disciplinas de introdução a temas da ciência política para estudantes de cursos variados, como serviço social, geografia, filosofia, jornalismo, além dos bacharelados interdisciplinares. Foram pouco mais de cinco meses de trabalho remoto. Agora quero ter a experiência de ser professor na sala de aula mesmo, presencialmente.
Também com bolsa FAPESP, nesse momento estou desenvolvendo pesquisa de pós-doutorado no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos [UFSCar]. No trabalho, abordo a repercussão de autores franceses do século XIX na teoria política contemporânea. Minha participação no grupo de estudos de filosofia política da UFSCar até o momento foi toda on-line. Aliás, desde que iniciei o pós-doutorado, no segundo semestre de 2021, todas as atividades têm transcorrido de forma virtual.
No final de dezembro, minha companheira e eu testamos positivo para Covid-19. Comecei a sentir os sintomas bem na véspera do Natal. Íamos fazer uma ceia pequena com parte da família dela, mas o diagnóstico não permitiu. Tivemos que ficar em isolamento entre o Natal e o Ano-Novo. Os sintomas foram leves, com febre baixa e dor de garganta um pouco mais acentuada, mas, como já estávamos com as duas doses da vacina, não tivemos nada mais grave.
Penso que a pandemia radicalizou o sentimento de incerteza sobre o futuro, tanto a curto quanto a longo prazo, pois tudo passou a ser muito mais instável. As produções que ocorrem no campo da pesquisa científica, que é uma área que vive de projetos de médio e longo prazos, acabaram sendo influenciadas por essas incertezas. Mesmo com a vacinação, ainda não sabemos se nos próximos meses, ou até anos, precisaremos continuar lidando com a necessidade de distanciamento físico, ainda que em uma escala menor. E há o receio de novas pandemias. Pesquisadores e instituições terão de aprender a lidar com isso, seja trabalhando com prazos mais flexíveis ou contemplando, em seus planejamentos, quadros de incerteza.
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